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Depois de uma semana em que foi visada pelas declarações que fez à RTP a justificar a exoneração da provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e da sua equipa, a ministra da Segurança Social foi ao parlamento em modo de contra-ataque e deixou a frase: “A provedora encontrou um cancro financeiro, mas tratou com paracetamol”.
Rosário Palma Ramalho procurou desmontar os argumento de Ana Jorge sobre as medidas que estavam a ser adotadas para contrariar a situação financeira delicada da instituição, pondo em causa a sua eficácia e até responsabilizando o trabalho feito pelo agravamento dos défices e prejuízos.
Para a ministra da Segurança Social, a gestão da Santa Casa falhou em toda a linha e deixou a Santa Casa pior do que a encontrou. Não conseguiu recuperar receitas, aumentou custos, não apresentou um plano de reestruturação consistente, e só conseguiu um resultado positivo com a “bengala” dos financiamentos do Estado. E guardou para o fim o grande anúncio de quem será o novo provedor, Paulo Alexandre Sousa.
O novo provedor da Santa Casa viu anulada em tribunal inibição para cargos bancários em Moçambique
Mas no meio dos ataques e contra-ataques, as explicações de Rosário Palma Carvalho deixaram algumas dúvidas.
Quando questionada sobre as declarações à RTP nas quais acusava a mesa de ter tomado decisões em benefício próprio argumentou que a frase estava fora de contexto. Sobre a pergunta relativa aos despedimentos previstos na Santa Casa que terá feito a Ana Jorge — Rosário Ramalho negou ter defendido despedimentos coletivos (mas não ter colocado a pergunta) e remeteu essa questão para a gestão da instituição.
Estes foram alguns dos temas que ficaram em aberto mas também houve outros ao longo de quatro dias (em duas semanas) de audições sobre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Uma antecâmara de uma eventual comissão de inquérito parlamentar? É o que querem alguns partidos. O Bloco de Esquerda juntou-se às intenções lançadas pela Iniciativa Liberal e pelo Chega, mas cuja viabilização depende do PSD, uma vez que não se espera que os socialistas votem a favor.
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Situação financeira da Santa Casa agravou-se (após a gestão de Ana Jorge, diz ministra)
Foi logo na sua intervenção inicial que Rosário Ramalho disparou uma série de dados negativos sobre os resultados da gestão de Ana Jorge.
Não foi implementado plano estratégico de recuperação. A única medida comunicada foi a eliminação de suplementos de 40 dirigentes no valor de um milhão de euros, mas o efeito positivo foi anulado pelo acordo de empresa e por um aumento de custos de 147 milhões para 151 milhões em 2023 e o plano pana 162 milhões. Os custos subiram 11 milhões de 2023 para cá. O acordo de empresa vai agravar estes custos, citando dois acordos com o pessoal de enfermagem e os médicos, que preveem um aumento de 20% — 10% em 2024 e 10% em 2025, o que “compromete a SCML com encargos futuros” que a mesa não terá indicado.
Para enfrentar o problema internacionalização da Santa Casa, a provedora decidiu suspender as operações no Brasil e liquidar empresas, mas essa decisão foi executada sem plano de desinvestimento que pudesse mitigar as contingências. Passou-se de perdas de 50 milhões de euros para um valor estimado de 80 milhões, devido a contingências identificadas pela própria instituição em 30 milhões de euros. Números que estão alinhados com a narrativa defendida pelos ex-administradores da Santa Casa Global afastados por decisão da mesa agora exonerada.
A ministra acusa Ana Jorge de ter suspendido, inexplicavelmente, a venda da sociedade gestora do hospital da Cruz Vermelha, o que custou 29 milhões de euros à Santa Casa. E diz que a instituição que tem 55% da sociedade gestora transferiu responsabilidades para a Parpública de três milhões de euros — o conselho de auditoria da Santa Casa diz o contrário no seu parecer às contas de 2023. O processo de venda foi entretanto retomado, mas o saldo negativo para a Santa Casa é de 33 milhões de euros. Em explicações avançadas ao Observador já depois da publicação desta artigo, fonte oficial do Ministério do Trabalho e Segurança Social indica que 30 milhões de euros é relativo ao dinheiro e garantias já pagas pela Santa Casa à sociedade gestora do hospital, e que começaram ainda com Edmundo Martinho, e que os três milhões de euros se reportam ao investimento que cabe à SCML até ao final do ano (2023).
A ministra estranha que o plano de atividade e orçamento para 2024 preveja um acréscimo de 12% das receitas para 214 milhões. “Não percebo o racional [dessa projeção] face à tendência de descida no primeiro trimestre”, com as receitas a caírem 10% no primeiro trimestre.
A ministra desvalorizou, por outro lado, as receitas conseguidas pela mesa de Ana Jorge com o pagamento de 35 milhões de euros da Segurança Social por serviços prestados pela Santa Casa durante a pandemia. Considerou que foi uma operação extraordinária, que não sendo ilegal, teve um “efeito mistificador sobre os resultados da Santa Casa” porque sem esse montante a instituição teria apresentado prejuízos superiores a 30 milhões de euros. E concluiu que foi “uma gestão virada para o passado e em guerra com a anterior administração [de Edmundo Martinho] e totalmente dependente de dinheiros públicos.”
A exoneração após recusa de renúncia e a “vitimização” de Ana Jorge
Rosário Ramalho confirma que Ana Jorge colocou o cargo à disposição na primeira reunião que teve a seu pedido. Gesto que apreciou, mas recusou porque queria a colaboração da provedora para resolver a grave situação da instituição.
Mas “depois de quase um mês de nenhuma colaboração” e com a “situação a degradar-se e nenhuma informação”, algo teve de mudar. A 29 de abril, às 13h30, informou a mesa de que seria substituída, dando a possibilidade de saírem pelo próprio pé. Deu algumas horas, até às 17h30/18h, para a provedora pensar, mas as notícias sobre a exoneração começaram a chegar antes e “posso garantir que não vieram do meu gabinete”.
“Pelas 17h00, a provedora ligou ao meu chefe de gabinete a dizer que ninguém se demitia”. Pelas 17h30 foram assinados os despachos de exoneração. A justificação de “atuações gravemente negligentes” é a que está prevista na lei, justifica a ministra para quem — e apesar da equiparação ao estatuto de gestor público — a demissão por conveniência não era aplicável. Rosário Ramalho confessou ter ficado “muito surpreendida com a imagem de vitimização da provedora” e diz que a inação custou muito dinheiro aos cofres exauridos. Afirmou que “não houve reestruturação, foram tomadas medidas avulsa e contraditórias”. E considera que uma “gestão displicente equivale a uma gestão negligente”.
“Até temos informação de que, ao longo da tarde, foram assinados vários contratos por um membro da mesa envolvendo responsabilidades adicionais da SCML num valor perto de 3 milhões de euros. É mera coincidência?”, questiona, citando uma notícia do jornal Sol e da Página Um.
Mas, para a ministra, o que mais pesou foi a “preocupante deterioração da atividade de assistência e apoio social da Santa Casa no concelho de Lisboa” — uma denúncia feita num comunicado da Câmara de Lisboa conhecido no dia da exoneração de Ana Jorge — sem contudo fundamentar com números.
Rosário Ramalho reconhece que Ana Jorge recebeu uma herança difícil, mas considera que a provedora exonerada, apesar de ser uma “excelente médica pediatra” não tinha o perfil necessário (financeiro) para o momento difícil que a Santa Casa atravessa. E não poupou ao anterior Governo e à antecessora, Ana Mendes Godinho, a responsabilidade política pela escolha feita para a mesa da instituição.
Afinal quem aumentou os salários da gestão?
Se o aumento dos custos com o pessoal é explicável pelo acordo de empresa, já o alegado aumento dos vencimentos da administração da Santa Casa ficou por clarificar. Confrontada com as declarações feitas à RTP na semana passada em que justificava a demissão da mesa, e que Ana Jorge considerou caluniosas e rudes, a ministra da Segurança Social justificou que a expressão de decisões em benefício próprio que atribuiu à administração da Santa Casa foram retiradas do contexto.
Sobre os aumentos salariais da mesa, que foram categoricamente desmentidos pela ex-ministra Ana Mendes Godinho e por Ana Jorge, a atual ministra apontou para o relatório e contas de 2023 (que recebeu um dia depois de ter demitido a mesa e que ainda não homologou). Este documento indica uma subida de 18% na remuneração dos órgãos sociais e que, especificamente no caso da mesa, o aumento foi de 20%. Note-se que em 2023, a mesa tinha seis elementos e que em 2022 eram cinco (após de uma demissão).
Santa Casa já reconheceu perdas de 53 milhões na internacionalização e admite que podem ser maiores
A ex-provedora desmentiu qualquer aumento que não decorra de atualizações decorrentes do Orçamento do Estado. No entanto, os vencimentos da administração da Santa Casa não estão associados a medidas orçamentais. São fixados por despacho do ministro da tutela que tem como referência os valores previstos no estatuto do gestor público. Ana Jorge indicou que a Santa Casa segue o despacho de 2013 assinado pelo então ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares. E Ana Mendes Godinho confirmou que enquanto esteve em funções na pasta — período em que nomeou a mesa — não assinou qualquer despacho a atualizar salários da mesa.
Segundo Rosário Palma Ramalho, o despacho de 2013 diz que o vencimento é fixado pela tutela mas não por equivalência ou indexação aos gestores públicos e sim “por referência”, o que juridicamente é diferente. O despacho define os critérios para que essa equiparação possa ser feita, como os contributos do volume de emprego, ativo líquido ou volume de negócios. O despacho tem em conta o relatório do exercício de 2011, “quando a SCML era ainda a instituição que estávamos habituados que fosse”.
Os critérios que contam para a fixação dos vencimentos são: contributo do esforço financeiro público para o resultado operacional (peso de 20%); volume de emprego da empresa (20%); ativo líquido (30%) e volume de negócios (30%).
O despacho não foi revogado nem alterado, mas Rosário Palma Ramalho justifica que, à luz dos estatutos da instituição, a SCML deve “solicitar nos vários exercícios a aplicação dos critérios de referência, não é a própria mesa que o deve aplicar”. “Este despacho é para a situação concreta reportado a um ano em que a saúde financeira da Santa Casa não era de 30 milhões de passivo”. Ou seja, a ministra remete o ónus para as mesas da Santa Casa que estiveram em funções desde 2013, onde se incluem as equipas de Pedro Santana Lopes e Edmundo Martinho, para além de Ana Jorge.
Considerando que os vencimentos devem acompanhar a evolução dos indicadores financeiros da Santa Casa, como argumentou Rosário Ramalho, teria sido a partir de 2020/2021, quando a instituição começou a apresentar prejuízos (ainda que atribuídos à pandemia), que as remunerações deveriam ter sido revistas. A ministra não revelou se irá rever em baixa os vencimentos da nova mesa que irá nomear em função da deterioração da situação financeira da instituição.
Auditoria “fechada num cofre” por ordem da ex-ministra e as informações “simples” pedidas à Santa Casa
Rosário Ramalho contrariou as afirmações de Ana Jorge sobre o prazo e entrega dos documentos que pediu sobre a situação da Santa Casa na primeira reunião realizada. Confirmou ter enviado um email com pedidos de vários documentos, mas acrescenta que “alguns eram bastante simples” com elementos que “qualquer empresa conseguiria responder”.
Durante a sua audição, Ana Jorge leu uma lista exaustiva de 35 documentos e informações exigidos pela tutela, vários dos quais com informação personalizada sobre funcionários e dirigentes e evolução da respetiva remuneração, o que a levou a pedir um parecer da comissão de proteção de dados. A ministra desmente: “não foram pedidos dados com nomes” e desmente também ter recebido toda a informação pedida que, segundo Ana Jorge, teve de ser entregue em mão numa pen tal era o peso dos dados em causa. Rosário Ramalho disse ter obtido resposta a 16 pedidos a 10 de maio, mas que os restantes não foram enviados.
E a falta de informação também contribuiu para a decisão de afastar mesa, alegou. “Na ausência de informação prestada pela provedora, o gabinete fez a avaliação com base na informação que tinha”, como o plano de atividades e orçamento de 2024, aprovado pela anterior ministra, a autoria forense na versão que “pensámos que seria a último porque nos foi dito que seria a última”, mas afinal não foi.
Sobre a auditoria ao negócio da internacionalização, Rosário Palma Ramalho explica que o tema da SCML não constava da pasta de transição e que questionou a anterior ministra sobre a situação na instituição. Ana Mendes Godinho terá explicado que essa auditoria era forense, ou seja, analisava eventuais “ilegalidades sobre a ação da Santa Casa Global”. A ex-ministra também terá dito que pediu que o relatório da auditoria fosse classificado.
É por isso que Rosário Palma Ramalho afirma que não o divulgou (os deputados tinham pedido acesso ao documento) e que pediu um parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Ou seja, o não envio não tem a ver com o segredo de justiça, mas com essa classificação do documento.
“A auditoria está fechada num cofre no Ministério” e “demorou” até que a própria conseguisse ter acesso. “Demorámos uns dias a chegar a essa auditoria (…). A senhora ministra [Ana Mendes Godinho] disse que está classificado” porque enviou para o Ministério Público, explicou. E garantiu: “Todos os documentos que puderem ser disponibilizados serão. [Sobre] esse [auditoria], como está nessa situação e foi enviado para o MP, pedimos um parecer à CADA”.