O Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para clarificar a norma sobre os “critérios de inclusão e exclusão de dadores por comportamento sexual”, nomeadamente em relação aos dadores homens que têm sexo com outros homens.
O secretário de Estado deu uma semana ao grupo de trabalho para analisar o estudo realizado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa). Neste estudo, o Insa “seguiu um plano de trabalho especificamente desenvolvido para responder às questões colocadas” pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (ISPT), nomeadamente “uma avaliação do impacto da alteração da proibição de doação de sangue por parte dos homens que fazem sexo com outros homens” e a “modelação do impacto da alteração do atual período de suspensão para a dádiva de sangue dos homens que fazem sexo com outros homens de 12 meses para seis e três meses”, respondeu fonte oficial do instituto ao Observador.
Governo vai rever critérios de exclusão de dadores de sangue por comportamento sexual
“Estamos em crer que aquilo a que se vai chegar é, certamente, uma igualdade e não discriminação com base em qualquer tipo de orientação sexual. O que está em causa são os comportamentos de risco e nada mais do que isso”, disse Válter Fonseca, diretor do Departamento da Qualidade na Saúde da DGS, na audição conjunta da Comissão da Saúde com a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República.
O grupo criado pelo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, vai incluir representantes da DGS e do ISPT, conforme comunicado do gabinete do governante. E deveria, segundo o mesmo comunicado, ser constituído também, a título consultivo, por entidades da sociedade civil. O Observador contactou a Federação Portuguesa de Dadores Benévolos de Sangue (Fepodabes), a Ilga, a Abraço, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros, mas nenhuma destas organizações tinha sido convidada até à data de publicação deste artigo.
“Não percebemos como é que a federação não foi chamada”, diz ao Observador Alberto Mota, presidente da Fepodabes. O dirigente diz que há cerca de três semanas, já depois da situação de discriminação que veio a público, escreveu ao conselho diretivo do IPST a pedir uma norma clara sobre quem pode e quem não pode ser doador — porque não podem ser os profissionais do centro de colheita a decidir — e a declarar que a federação e os respetivos membros são “contra a discriminação”.
Um estudo interrompido pela pandemia
O estudo “Comportamentos de risco com impacte na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores: Critérios de Inclusão e Exclusão de Dadores por Comportamento Sexual” foi desenvolvido pelo Insa com o apoio de um grupo de trabalho, que constitui a Comissão de Acompanhamento — com um representante da DGS do IPST, do Fórum da Sociedade Civil para o VIH/SIDA, da Ilga e “quatro peritos em áreas-chave: epidemiologia das doenças infeciosas, doenças infeciosas e imunohemoterapia” —, disse fonte oficial do instituto ao Observador.
A comissão foi criada em 2019, mas a pandemia de Covid-19 suspendeu as reuniões durante o ano de 2020. A última reunião foi na semana passada, quando o estudo foi apresentado à Comissão de Acompanhamento, conta ao Observador Marta Ramos, diretora executiva da Associação Ilga Portugal. Marta Ramos diz que o estudo tem uma conclusão clara: não existe necessidade de haver critérios específicos para grupos específicos, concretamente, em relação aos homens que têm sexo com outros homens. Uma perceção que está de acordo com o anúncio de Válter Fonseca na Assembleia da República.
De facto, a norma 009/2016, de setembro de 2016, não impedia os homossexuais ou homens que têm sexo com outros homens da doação de sangue, mas não era clara quanto ao facto de não poderem ser excluídos. “Claro que uma nova norma tem de ser testada e ajustada”, diz Marta Ramos. Mas, neste caso, não houve sequer margem para perceber se a inclusão de homens que têm sexo com outros homens teve impacto na quantidade de unidades de sangue infetadas com doenças transmissíveis pela transfusão ou não.
A norma prevê que quem tenha comportamentos sexuais de risco, como mudança recente de parceiro ou relações sexuais com pessoas infetadas, tenha uma suspensão temporária da atividade como doador. Mas os homens que tiveram sexo com outros homens não chegam sequer a poder revelar se tiveram ou não comportamentos de risco, porque são eliminados quando respondem à pergunta sobre a sua orientação sexual, segundo as associações. Uma pergunta, porém, que não consta do “Questionário para dadores de sangue” a que o Observador teve acesso.
“A tónica é no comportamento e não na orientação sexual”
Quando saiu a norma de 2016 sobre quem podia ser ou não dador de sangue parecia estar resolvido o critério que impedia que os homens que tinham sexo com outros homens de o fazer. Mas a discriminação com base na orientação sexual e nos estereótipos continuou e continua e tornou-se ainda mais visível quando, numa altura em que os bancos de sangue estavam quase em rutura, houve dadores a serem impedidos de cumprir a doação por serem homossexuais. O Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) abriu três inquéritos este ano devido a estas práticas discriminatórias.
A norma de 2016, com os “critérios de inclusão e exclusão de dadores por comportamento sexual”, determina que sejam suspensos temporariamente os dadores que tenham mantido relações sexuais com pessoas infetadas com os vírus da hepatite B e C, com o VIH ou com outros agentes transmissíveis pelo sangue, ou pessoas que tenham um novo parceiro sexual há menos de seis meses. Isto vale para homens e para mulheres, independentemente da orientação sexual (que nem sequer é referida).
A parte da norma propriamente dita não deveria suscitar dúvidas, como referem as associações. O problema estará na fundamentação que consta no mesmo documento, admitiu esta terça-feira Válter Fonseca, diretor do Departamento da Qualidade na Saúde da DGS. A fundamentação faz referência a um “documento técnico-normativo da DGS mais antigo que identifica alguns grupos de risco para a infeção VIH e é esse conjunto de grupos que refere alguns conceitos, como o de homens que tiveram sexo com outros homens — e esta referência cruzada merece certamente uma clarificação”, disse na audição conjunta na Assembleia da República.
Na audição, Válter Fonseca disse que é necessário “informar, quer os profissionais de saúde, quer o público em geral, que a tónica é no comportamento e não na orientação sexual”, ou seja, se a pessoa teve comportamentos sexuais de risco, quer seja heterossexual, homossexual ou adote qualquer outra orientação sexual. Marta Ramos reconhece que “existem comportamentos de risco, sim, mas estes não dependem da orientação sexual”.
Em termos de prevalência da infeção com VIH, Cristina Sousa, presidente da Abraço, diz que continua a haver mais infetados entre os heterossexuais, mas destaca que, nos últimos três ou quatro anos, a transmissão tem crescido nos homens que têm sexo com outros homens. Cristina Sousa diz, no entanto, que também é neste grupo que se fazem mais diagnósticos precoces — enquanto nos heterossexuais os diagnósticos são tardios. A presidente da Abraço defende, assim, uma clarificação da norma que “evite discriminação e homofobia”.
Contradições na aplicação da norma
“O que se passou em Lisboa despertou para um problema adormecido”, diz ao Observador Alberto Mota. O presidente da direção da Fepodabes refere-se ao caso de um homem que denunciou ter sido discriminado quando tentou dar sangue a 23 de janeiro, no posto fixo de doação do IPST.
Perante as questões que lhe eram colocadas sobre as potenciais parceiras, o candidato a dador corrigiu e disse que tinha um parceiro. Depois disso, foi-lhe dito: “Então não pode doar sangue. Homens que fazem sexo com homens não podem doar sangue”. Os dois médicos do IPST que fizeram a triagem ao homem depois de este ter estado horas na fila à espera para doar sangue são alvo de processos de inquérito pelo instituto, noticia a Lusa.
O terceiro caso em que foi aberto um processo de inquérito por alegadas práticas discriminatórias na doação de sangue por parte de homens homossexuais diz respeito a um médico do instituto que respondeu, por email: “Os homens que têm sexo com homens estão impedidos de dar sangue. Este critério não [é] nacional. É internacional. Muitos dos países da Europa e do mundo têm essa regra para defesa da saúde do doente que recebe a unidade de sangue”.
Maria Antónia Martins, presidente do IPST, contrariou esta informação e disse que existem diferentes critérios, com diferentes períodos de suspensão para os homens que têm sexo com homens e durante o qual não podem dar sangue. “Os nossos profissionais não são pessoas discriminatórias, são pessoas inclusivas, são funcionários públicos que tudo dão a esta instituição”, disse Maria Antónia Martins esta terça-feira, na audição conjunta da Comissão da Saúde e da Comissão de Assuntos Constitucionais.
Alberto Mota diz também que nunca recebeu do instituto qualquer indicação para discriminar homossexuais e que nenhum dos promotores da doação de sangue das associações que representa discriminam pessoas com base na orientação sexual. Marta Ramos, por sua vez, diz que a norma tem de ser não só clara quanto a quem pode ou não pode dar sangue, mas quais as penalizações para quem não respeitar a norma.
O que se passa lá fora e as mudanças recentes
A nível internacional a situação é muito variável, disse a presidente do IPST na audição desta terça-feira. Entre os 27 Estados-membros da União Europeia, Estados Unidos, Austrália e Canadá, “seis têm uma suspensão definitiva para a dádiva de sangue de homens que têm sexo com homens, nove mantêm uma suspensão por 12 meses, três têm uma suspensão por seis meses, três por quatro meses, quatro por três meses e cinco têm neste momento uma avaliação individual”, apontou, acrescentando que no caso do Reino Unido há uma suspensão por três meses, sendo este um país com “uma avaliação de risco extraordinariamente bem feita”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a norma que bania homossexuais de doar sangue foi criada numa altura em que se sabia pouco sobre a infeção com VIH e que poucas pessoas com sida sobreviviam, em 1985 — mas manteve-se até 2015. A partir daí, a regra passou a ser que um homem tinha de estar um ano sem fazer sexo com outro homem para poder dar sangue. A escassez de doadores e as necessidades causadas pela pandemia, fizeram com que o regulador americano (FDA, Food and Druga Administration), em abril de 2020, alterasse de 12 para três meses o período de abstinência sexual. Esta orientação vai manter-se pelo menos 60 dias depois de levantada a declaração de emergência por causa da pandemia Covid-19.
No Reino Unido, também era pedido um período de abstinência aos dadores homens que tivessem tido sexo com outros homens — 12 meses, desde 2011. Seis anos depois entrou em vigor a atual norma que determina que serão excluídos todos os dadores homens que tenham tido sexo oral ou anal com outro homem nos três meses que antecederam a colheita. Prevê-se, no entanto, que esta regra mude no verão deste ano: os homens que têm sexo com outros homens que mantiveram o mesmo parceiro por três meses ou mais vão poder doar sangue. Além disso, todas as pessoas, independentemente do género ou orientação sexual, têm de ficar três meses sem praticar sexo anal com novos ou múltiplos parceiros se quiserem doar sangue. Já aqueles que mantiveram apenas sexo oral podem doar sangue.
A Reuters fez um levantamento das regras e restrições em vários países do mundo e verificou, por exemplo, que a Croácia, Eslovénia, Islândia, Malásia, Singapura, Trinidade e Tobago e Ucrânia baniam permanentemente das doações de sangue homens que tivessem tido sexo com outros homens; enquanto, pelo menos, 17 países não apresentavam restrições, incluindo a África do Sul, Argentina, Espanha, Hungria e Itália.
Um artigo científico publicado na revista The Lancet também analisou as restrições impostas a homens que têm sexo com outros homens, incluindo as mudanças ocorridas nas políticas espanhola e italiana, onde as exclusões foram substituídas por programas de avaliação de risco. “Não houve alterações na frequência de doações positivas para o VIH em Espanha nos anos que se seguiram à mudança da política, ainda que alguns relatórios apontem para um aumento recente, potencialmente porque houve um aumento na procura de testes”, escreveram os autores do artigo. “Da mesma forma, em Itália, esta mudança de política não levou a um aumento nas doações de sangue positivas para o VIH, sugerindo que permitir que homens que têm sexo com outros homens sejam doadores não põe em risco o banco de sangue.”
Em Portugal, aquilo que se pediu ao Insa foi que analisasse que impacto tinha, nas infeções transmitidas por transfusões, a alteração da suspensão definitiva para um período de suspensão de 12 meses e destes para um período de seis meses ou de três meses.
Atualizado às 12h25 com a resposta da Ordem dos Enfermeiros