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“Anuncio a minha candidatura a Presidente dos Estados Unidos.” Quando Donald Trump fez este discurso no seu resort de Mar-a-Lago, em 2022, as suas hipóteses de voltar a ser eleito como chefe de Estado dos norte-americanos pareciam curtas. Os republicanos tinham acabado de ser derrotados nas eleições intercalares para o Congresso. Trump estava manchado pela associação à violência da invasão ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, que lhe valeu um (segundo) processo de impeachment. Vários outros processos judiciais pendiam sobre ele, incluindo um que resultaria mais tarde numa condenação em primeira instância.
E, no entanto, dois anos depois, Trump aqui está novamente a vencer uma eleição e a tornar-se novamente Presidente dos EUA. Pelo meio, manteve uma campanha com o seu conhecido estilo aguerrido, teve de adaptar a estratégia quando Joe Biden foi substituído por Kamala Harris e foi vítima de uma tentativa de assassinato. Até à última, tudo parecia estar em aberto, com as sondagens a repetirem uma e outra vez um provável empate técnico nos swing states decisivos.
Na madrugada desta quarta-feira, porém, começou a desenhar-se um retrato claro, apesar de os votos ainda estarem a ser contados (e poderem demorar dias a serem formalmente conhecidos): a não ser que Kamala Harris conseguisse fazer um passe de mágica e arrebatar os swing states do norte (Michigan e Wisconsin) mais a Pensilvânia, Donald Trump seria provavelmente o novo Presidente dos Estados Unidos da América. Horas depois, com a projeção confirmada de que o republicano venceu o estado mais cobiçado, o sonho de Harris e dos democratas ficou completamente estilhaçado.
A subida face a 2020, até em território “inimigo” como Manhattan
A noite começou morna, a demorar até se conhecerem resultados dos primeiros swing states. Durante várias horas, só estavam confirmadas vitórias em dois dos sete swing states (Carolina do Norte e Geórgia), para Donald Trump. Mas, em teoria, isso não significava uma vitória certa — e nem é exatamente surpreendente. Nestes dois estados do sul, a história recente mostra que são território mais favorável aos republicanos: a Carolina do Norte só votou democrata em presidenciais quando os candidatos foram Jimmy Carter (1976) e Barack Obama (apenas na eleição de 2008) e na Geórgia Bill Clinton (1992) e Joe Biden (2020) foram os únicos democratas a vencer ali nos últimos quarenta anos.
Mas, ao longo da noite, a tendência dos votos que iam sendo contados nos outros swing states não parecia favorável a Kamala Harris e deixava em evidência um facto: Trump conseguiu melhorar largamente a sua margem em múltiplos condados, quando comparado com a eleição de 2020. A subida é visível até em áreas que historicamente têm sido bastiões dos democratas. Em Manhattan, no coração de Nova Iorque, Trump subiu 9 pontos percentuais. Há quatro anos perdeu New Jersey por 16 pontos percentuais contra Joe Biden — esta madrugada ficou atrás de Kamala Harris por apenas 5.
Às 2h da manhã em Washington DC (7h em Lisboa), chegava a machadada final: Donald Trump era confirmado como vencedor na gigante Pensilvânia, o prémio de 19 votos no colégio eleitoral mais disputado e desejado pelos dois candidatos.
“A economia, estúpido” nunca pareceu fazer tanto sentido
Donald Trump foi um Presidente que desafiou todas as convenções. Não admira, por isso, que também consiga desafiar ideias feitas como as de que um antigo Presidente alvo de impeachment está politicamente morto, como aconteceu com Richard Nixon, ou de que a sombra de processos judiciais molda a perceção dos norte-americanos sobre um candidato ao ponto de não lhe conceder o seu voto.
O que explica então este sucesso? Haverá muito a dissecar nos próximos dias sobre a sociologia da América atual, o papel do carisma deste candidato e como o sistema eleitoral do país pode ditar uma eleição. Mas, no imediato, há um ponto que salta à vista. Ao longo dos últimos meses, as sondagens mostraram uma e outra vez que, para os norte-americanos, que dois temas os preocupam mais do que quaisquer outros: a economia e a imigração.
Isso era evidente a um mês desta eleição no levantamento feito pela Gallup, onde 52% dos eleitores definiam a economia como um tema “extremamente importante” antes de irem votar — o valor mais alto desde a crise financeira de 2008. Por contraste, o tema do aborto, uma das principais bandeiras de Harris nesta campanha, surgia bem mais abaixo de assuntos como a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal e a imigração — todos tópicos muito mais presentes na campanha de Trump.
A 23 de outubro, um artigo do Wall Street Journal ilustrava como a inflação — que atingiu o pico em meados de 2022 — deixou uma cicatriz profunda entre os norte-americanos, que não sentiam aumentos bruscos nos preços de bens com esta dimensão desde o final da década de 1970 e início da de 1980. “Isso significa que”, notava o jornal, “a maioria dos americanos ou não eram nascidos ou eram crianças quando as preocupações com o preço das coisas eram omnipresentes — acompanhadas pelas bolas de espelho e calças à boca de sino”.
A tendência foi sentida pelo Observador no terreno ao longo dos últimos dias: o preço dos combustíveis foi apontado uma e outra vez por vários eleitores como o barómetro para a sua qualidade de vida — e para o seu voto. Na presidência Trump, diziam, o gasóleo era mais barato. Era o símbolo da vida que já esteve melhor e o desejo de regressar a isso.
Trump conquista metade do voto latino. Homens jovens e as minorias podem ter feito a diferença
Para além da questão da economia, com eleitores a quererem castigar os democratas pelo rombo que sentiram no bolso ao longo dos últimos quatro anos (com uma inflação associada ao pós-Covid e à guerra na Ucrânia), há ainda um elemento que a campanha de Donald Trump soube explorar de forma exímia. Durante décadas, os analistas políticos deram como certo que os jovens e as minorias eram grupos fortemente pró-democratas; esta eleição veio provar que isso pode estar a mudar e que Trump é precisamente o candidato republicano dos últimos tempos que mais tem conseguido aproximar-se destes grupos, sobretudo entre os eleitores homens.
Os dados mostram que em condados urbanos, como Pittsburgh e Filadélfia (na Pensilvânia), Trump terá conseguido um resultado muito superior ao que obteve em 2020. E quem são os eleitores novos que conquistou? Muito provavelmente negros e latinos, que têm forte presença nas grandes cidades. No Texas, por exemplo, ao longo dos tempos os democratas têm vencido nos condados de Starr e Cameron, com forte presença de hispânicos; desta vez, Trump arrebatou ali a vitória. O New York Times estima que, a nível nacional, o candidato terá conseguido aumentar a sua vantagem de um terço do voto dos latinos para alcançar metade do voto da comunidade. “É altura de enterrar esta utopia da solidariedade entre pessoas de cor”, resumiu um ativista pelos direitos civis ao jornal.
O estilo abrasivo de Donald Trump e as suas declarações mais polémicas não o prejudicaram nesta eleição; ou, pelo menos, não se sobrepuseram às prioridades da maioria dos norte-americanos, relacionadas sobretudo com o custo de vida, incluindo junto das minorias e até de imigrantes há muitos anos no país. Desde 2016, quando o magnata do imobiliário decidiu mergulhar na política, abriu-se um caminho transformador para a sua vida, mas também para toda a América. Desde então, todas as tendências políticas que conhecemos foram-se desfazendo em pó aos pés de Trump. Esta noite, aconteceu mesmo. Só com um candidato assim seria possível assistir a um comeback desta dimensão.