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Eça ou Camilo? Da oposição aparente aos temas que os aproximam

De um lado método, do outro caos. Uma obra acabada, outra atirada de chofre. A poucos dias da ida de Eça para o Panteão Nacional alinhamos neste jogo de salão (em que é possível escolher ambos)

Podia ser a versão portuguesa da pergunta “Tolstói ou Dostoievski?”, que Steiner transformou num belo livro. É claro que todos podemos gostar de ambos, mas o que torna divertido este jogo de salão é a consciência de que a preferência por um ou por outro nos dá imediatamente um vislumbre certeiro sobre uma personalidade. Eça mais cidade, estrangeirado, progresso, burguesia, Camilo mais povo, campo, tradição, vernáculo. De um lado método, do outro caos. Uma obra acabada, lambida e relambida para que não ficasse uma palavra fora do sítio, outra atirada de chofre, cheia de romances repetitivos e centelhas de génio no meio de enredos preguiçosos, que resolvem numa penada o que Eça constrói cuidadosamente por páginas e páginas.

Mas o que torna a oposição interessante, ao mesmo tempo, é que ela precisa de ser explicada. A preferência por Eça (cujos restos mortais serão trasladados na próxima quarta-feira, dia 8 de janeiro, para o Panteão Nacional) ou Camilo não nos revela imediatamente uma personalidade no sentido comum do termo, traz qualquer coisa ao mesmo tempo mais circunscrita e mais vasta. Um novo Calisto Elói, vivendo ainda sob a batuta moral da Patuleia, pode preferir Camilo, e percebemos em que moldes é que o prefere, mas um artista caótico, um fura-vidas decadente, também. A diferença pode vir de vários ângulos, mas mostra ao mesmo tempo como estão em confronto duas mundividências essenciais. Não precisamos de grande explicação – o Eça cola-se imediatamente à pele dos convivas do Pé Leve com a mesma facilidade com que se gruda à dos emigrados rezingões que exasperam com a produtividade do país. O que isto demonstra é que há uma realidade complexa debaixo do mundo que a literatura nos traz. Todos temos várias imagens de Eça e de Camilo que servem como filtro interpretativo da realidade, e o que nos interessa é perceber porquê.

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Habitualmente, e é isto que justifica a oposição no campo dos estudos literários, já que de outra forma poderíamos sempre dizer que se tratava apenas de uma oposição aparente, já que há muito – temas como o adultério, a propensão para o humor, as personagens-tipo… – que os aproxima, trata-se a disjunção como um problema de ordem. Ou seja, quando falamos de oposição, o que está em causa não é a diferença absoluta, mas a posição em relação a um eixo comum. A oposição entre Pessoa e Eça não é tão clara como entre Eça e Camilo porque não há um problema comum entre os primeiros: não são contrários, são simplesmente estrangeiros.

Eça e Camilo podem funcionar como oposição; todos percebemos que correspondem de alguma maneira, a dois estilos, ou até, mais do que isso, a um tipo de oposição fundamental em relação a todas as coisas. Podemos aplicar um Eça/Camilo em relação à forma de vestir, à Religião, aos círculos sociais. Ora, esta possibilidade diz-nos várias coisas sobre a disjunção em causa. Em primeiro lugar, demonstra que há uma espécie de unidade fundamental sobre ela, que é talvez o mais difícil de identificar. Isto é, se a diferença fosse concreta, uma questão política de esquerda ou direita, um elitismo contra um folclorismo, esgotar-se-ia aí. Poderíamos montar um puzzle de oposições entre um e outro, mas também de comunhões. Não é bem esse o caso: percebemos que há alguma espécie de unidade nesta oposição, que ela é mais profunda, e que tem talvez que ver com um modo de encarar a vida que se aplica da mesma maneira aos vários problemas. Identificar o centro desse modo de ver a vida é talvez o problema central da crítica literária sobre um autor, acima de tudo porque procurá-lo obriga ainda a dar um passo atrás.

"Camilo e Eça não entram certamente na idade de ouro do romance sobre a infância; falta-lhes, até, a gramática para analisarem o seu próprio mundo através da linguagem da pedagogia e da infância. No entanto, por virem ao mundo – e reflectirem, nos seus romances, essa mesma preocupação – na idade da análise sobre o interior e a vida familiar, tanto um como outro acabam por ter um princípio de vida estranho a essas mesmas vidas que reflectem."

Ao assumir que há um ponto decisivo na maneira de ver a vida, que há de facto uma ordem organizada, em que um ponto superior como que organiza toda a visão sobre o resto do mundo, entramos no problema de uma forma já condicionada. Há muitos estudos sérios feitos com esta premissa: a ideia de Gaspar Simões de que há em Eça um problema fundamental relacionado com o perfilhamento tardio, que moldaria a sua perspectiva sobre as mulheres e lhe daria uma espécie de frieza cínica, é filha disto mesmo. A própria aplicação da psicanálise à crítica literária parte do mesmo pressuposto.

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No entanto, esta maneira de ver a vida pode não estar condicionada por um subordinante e ter, ainda assim, uma unidade, embora com formas diferentes. Isto é, imaginemos que há em Camilo uma espécie de repulsa pelo quotidiano familiar, que na sua biografia se expressa pelo abandono de duas das suas mulheres na altura em que estas têm bebés pequenos ou prestes a nascer. Podemos olhar para a sua obra como uma tentativa de clarificação deste impulso, com a glorificação dos amores não cumpridos, a atribuição de foros nobiliárquicos amorosos aos casos vividos à distância e com a demonização das figuras que mais representam o estabelecimento doméstico, como os brasileiros regressados a Portugal “para assentar”. No entanto, este momento-chave pode não ser o ponto de partida, mas o ponto de chegada. Isto é, Camilo poderia ser atraído por um romance como o que existe entre Teresa e Simão ou pela história da mãe privada do convívio do seu filho tal como no-la conta o Padre Dinis, e conduzir a história a um ponto em que ela se transforme numa diatribe contra os casamentos forçados, a proibição dos impulsos amorosos da juventude, etc. Pode parecer o mesmo, mas a segunda hipótese traz-nos um problema novo. O que é que atrai numa história para ser tratada desse modo? Não se trata de saber de que modo é que se vai organizar o caos da realidade; trata-se de perceber como é que se escolhe a parcela do caos que vai ser torneada até se tornar o que o escritor quer mostrar. Percebemos que até nisto o processo de Camilo e Eça é bem diferente: enquanto num ressumbram memórias familiares, lendas genealógicas, uma espécie de gosto pela recuperação do esquecido, no outro a contemporaneidade, a acuidade social, a preocupação com o varrimento de uma espécie de consciência comum da sociedade é muito mais importante.

No entanto, mesmo nisto há qualquer coisa que escapa. É difícil dizer que esta oposição tem um dado fundamental, porque ela se dá em muitos problemas, aparentemente sem relação. Podemos falar da disjunção na linguagem. Há nitidamente uma linguagem camiliana e outra queirosiana, mas também há uma sociedade dos Egas e dos Abranhos que não é nitidamente – e alargamos propositadamente o espectro – das Ricardinas e dos Eusébios Macários. Juliana e Vitor Hugo José Alves, para falar do mesmo universo, são concebidos sob pressupostos antagónicos. Ora, é possível falar de uma relação entre a perspectiva linguística e a social? A oposição é a mesma, aplicada a objectos diferentes, ou é outra? Nesse caso, o que temos é uma série de problemas a que, por um milagre do destino, dois génios se aplicaram com clareza suficiente para percebermos sempre a diferença de perspectivas, ou há de facto uma unidade não revelada, que faz dos “problemas do século” um problema só, singular mas mais geral.

A oposição obriga-nos a pensar em tudo isto. No problema prévio do propósito da crítica literária, no problema do modo como se organizam as preferências estéticas, as opiniões, no fundo, as visões da vida, as várias oposições concretas e o modo como se expressam, e ainda outra coisa.

O facto de estas oposições se organizarem em torno de certos assuntos obrigam-nos a olhar para eles como problemas, de um modo que, encarados por si sós, talvez não os encarássemos. Isto é, o adultério em Camilo parece apenas um pretexto narrativo, sem grande profundidade; mas o facto de aparecer em Eça e em Camilo, e tratado de maneiras que denunciam personalidades diferentes obriga a encará-lo como problema da oposição. O que é que faz do casamento um dos temas centrais do romance do século XIX? Uma análise a partir da oposição impõe os seus próprios temas, dá-nos uma garantia de que não somos apenas nós a olhar para um espelho: o objecto impõe-se e obriga a uma organização própria, em torno dos contrastes que uma e outra personalidade acentuam. Nesse sentido, é a própria obra que impõe o caminho da análise, mostrando-se viva e fazendo da crítica um trabalho que não depende apenas de si próprio e dos seus pressupostos. Ora, não há maior alegria do que sentirmo-nos novamente surpreendidos por uma obra de que gostamos, e a oposição, não é preciso sermos demasiado hegelianos para o sabermos, resulta sempre em qualquer coisa diferente. Aqui analisaremos dois aspectos que nos parecem significativos nesta análise comparativa, apenas como demonstração do que queremos dizer. No entanto, naturalmente, a obra de Camilo e de Eça poderia ser alvo de muito mais comparações deste género.

A infância

A infância enquanto tema romanesco não é propriamente do século XIX. Há uma experimentação anterior, com Rousseau, mas a verdadeira febre dos primeiros anos é trazida, naturalmente, pela psicanálise. Manifesta-se de várias formas – e há até uns arremedos anteriores, como no poema dos treze anos de Castilho, embora aí seja tão importante o lado popular quanto o infantil – do tipo de discurso, que teve influência sobretudo num veio pouco explorado da poesia modernista, que em Espanha deu Llorca e por cá deu “O menino de sua mãe”, de Pessoa, no meio de outros poetas mais esquecidos, à transformação do “trauma original” numa espécie de fim do enredo policial, em que os romances são construídos em torno de um mistério sobre o acontecimento fatal que terá moldado o carácter de uma personagem.

"O romance é visto como crónica de costumes, o realismo tem também qualquer coisa de jornalístico, neste sentido da obsessão com o seu próprio tempo. Não se trata de um exclusivo ou sequer de uma novidade portuguesa: é assim com Balzac, com Dickens, ou com Zola. O que acontece com os maiores escritores, como é o caso de Eça ou Camilo, é que esta obsessão com o tempo migra para uma consciência dessa mesma obsessão."

Ou seja, a literatura contemporânea explorou até ao limite as possibilidades da infância enquanto tópico literário mas, nesse aspecto, tanto Eça como Camilo são romancistas do seu tempo. O romance do século XIX é essencialmente privado, é mesmo a forma encontrada para responder ao interesse pelas vidas íntimas, pelos ambientes familiares, pela condução dos dias sem propósito, dias esses que um discurso histórico, sobretudo um discurso ainda muito marcado pela história política, tem dificuldade em captar. Ainda assim, a infância é claramente secundária nas obras de Eça e de Camilo. Eça tem um romance educativo n’Os Maias, com a já muito estafada linha interpretativa dos diferentes tipos de educação, à inglesa (a de Carlos) e à portuguesa (de Eusebiozinho), mas mesmo aí parece haver uma espécie de imunidade à educação, à infância e à forma como se passam os primeiros anos.

Há também uma personagem cuja análise psicológica começa na infância, e em quem encontramos uma versão desenvolvida da mentalidade afectada e caricaturada de Eusebiozinho, que é obviamente o padre Amaro, educado apenas entre mulheres, coisa que lhe dá um tipo de sensibilidade e uma fraqueza moral que Eça associa ao clericalismo. Há que notar, no entanto, que este tipo de história da personagem e esta espécie de determinismo progressista, em que determinada educação produz determinados efeitos, só se encontra no primeiro romance de Eça – aquele em que as ideias são também mais “artificiais”, isto é, retiradas dos seus modelos romanescos – e depressa corrigidos. A história de Carlos da Maia é, em parte, uma contra-história de Amaro, em que a educação contrária produz perversões do mesmo tipo. Ou seja, há em Eça uma espécie de intuição céptica em relação ao pedagogismo oitocentista que olha para as crianças como uma espécie de livro em branco. Eça apanha o o tempo em que o optimismo pedagógico é mais claro: o tempo em que se começa a escolaridade obrigatória e os liceus do estado, em que se multiplicam casas de órfãos e obras de misericórdia infantis de todo o tipo, da Casa Pia à Casa do Gaiato, para não falar das grandes escolas e orfanatos (com os de Muller, na Prússia, à cabeça) que invadem a Europa. Ainda assim, no mesmo ano em que Raul Pompeia publica no Brasil o Ateneu, que consiste exactamente na história de uma criança, Eça parece imune aos encantos infantis e até mesmo à eficácia do esforço pedagógico. Uma sombra no Eça crente no progresso e apologeta do desenvolvimento civilizacional que encontramos nos jornais?

Já em Camilo, há também crianças, sim, mas surgem normalmente como um esteroide sentimental, que acentua a infelicidade das mães, mostra a pureza dos amores proibidos que geram frutos angelicais, ou a malvadez dos maridos que castigam esposas infiéis privando-as das visitas dos filhos. Há órfãos – até fortunas dissipadas a acolhê-los – mas são instrumentos de uma história paralela, parte de um enredo misterioso ou ocasião para fazer vir ao de cima um carácter de algum tipo. A ideia de que há um modo de funcionar específico da infância – ideia que funda e legitima a própria noção de pedagogia – e de que as relações da criança com o mundo irão de algum modo moldar as formas de reagir do adulto está bem longe das preocupações de Eça e Camilo.

"Os grandes prosadores do renascimento são cronistas e historiadores, o século XVIII traz-nos sátiros, moralistas, poetas; o século XIX, porém, traz-nos sobretudo escritores preocupados com o seu tempo. O romance é visto como crónica de costumes, o realismo tem também qualquer coisa de jornalístico, neste sentido da obsessão com o seu próprio tempo."

Isto não quer dizer, contudo, que não tenham sobre os primeiros anos um olhar importante. As crianças como arma, como veículo de chantagem, como actores secundários, podem não ser apenas um reflexo de uma indiferença; podem ser reflexo de um modo próprio de sentir a infância. Nesse particular, a infância do próprio Camilo pode ser reflexo disso. Ele próprio filho de uma união ilegítima – embora, ao que parece, tenha sido legitimado antes da morte do pai – viu ambos os progenitores morrerem antes dos seus onze anos, e passou a infância à guarda de uns tios, embora numa situação complicada, visto que a sua herança teve de ser administrada por um tutor que não estaria sempre de bem com a tal tia, dando azo a uma série de disputas; de casa da tia, passou para casa da irmã mais velha, passeou de escola em escola, dando mesmo ideia de ter passado a infância como um peão incómodo nas mãos de uma família que não sabia bem o que fazer com ele.

Nesse sentido, as crianças da obra de Camilo, no seu papel secundário, podem lembrar uma vivência da própria infância; é de salientar, aliás, que num dos seus primeiros romances, Camilo põe como grande vilão o marquês de Montezelos. Ora, o marquês é ficcional, sim, mas Montezelos não: Montezelos era o nome da quinta dos pais de Camilo, que este não herdou, no meio das complicações relacionadas com a gestão do seu património. Camilo, aliás, bem mais do que Eça, entra constantemente num jogo de aproximação da ficção à realidade, e um dos métodos mais comuns para o fazer passa pela demonstração dos graus de parentesco que o ligam às personagens da história – ou não fosse, segundo o próprio, o seu tio o protagonista de Amor de Perdição – como que forçando pela ficção o fortalecimento dos seus laços familiares.

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Camilo e Eça não entram certamente na idade de ouro do romance sobre a infância; falta-lhes, até, a gramática para analisarem o seu próprio mundo através da linguagem da pedagogia e da infância. No entanto, por virem ao mundo – e reflectirem, nos seus romances, essa mesma preocupação – na idade da análise sobre o interior e a vida familiar, tanto um como outro acabam por ter um princípio de vida estranho a essas mesmas vidas que reflectem. Todos os biógrafos de um e de outro o salientam; apesar de ser normal, à época, viver afastado dos pais, como aconteceu com Eça, que viveu primeiro com uma ama em Vila do Conde, depois com uma avó perto de Aveiro, o que é menos normal é que alguém com uma experiência dessas passe depois parte da sua vida a escrever romances sobre cenas familiares sem que isso de alguma maneira reflicta a sua própria experiência. Daí que quer Eça, quer Camilo sejam, apesar do aparente papel secundário da infância nas suas obras, apetecíveis heróis de biografias psicanalíticas, como a que fez Gaspar Simões, ou como os magníficos estudos de Pedro Luzes sobre o mecanismo de “cessão” dos filhos a partir do caso de Eça de Queirós. Mesmo os amores proibidos de Camilo e Ana Plácido têm sempre, sejam as narrações hagiográficas ou delatoras, o fantasma do abandono anterior, por parte de Camilo, das mulheres anteriores e seus bebés, numa demonstração da difícil relação com a infância, motor oculto dos romances de um e de outro.

Os jornais

O jornal é o veículo literário mais poderoso do século XIX. Todos os escritores escrevem em jornais, estes circulam por toda a parte, há jornais sobre todos os temas, pelo que qualquer, já não dizemos escritor, mas homem do século tem uma relação particular com os jornais e molda parte da sua visão do mundo em relação a eles.

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Note-se, ainda, que há uma diferença grande entre os jornais do século XIX e as gazetas oitocentistas, quase todas a cargo de um único autor, e de uma maneira ou de outra mais idiossincráticas. A ideia básica do jornal oitocentista é a notícia, ao contrário do que acontece com a gazeta, mesmo quando a notícia já aparece apenas comentada no jornal. Frisamos esta ideia óbvia por uma razão muito simples: porque isto impõe um domínio da actualidade sobre os modos de escrever que poucos escritores, antes do século XIX, tiveram. Os grandes prosadores do renascimento são cronistas e historiadores, o século XVIII traz-nos sátiros, moralistas, poetas; o século XIX, porém, traz-nos sobretudo escritores preocupados com o seu tempo. O romance é visto como crónica de costumes, o realismo tem também qualquer coisa de jornalístico, neste sentido da obsessão com o seu próprio tempo. Não se trata de um exclusivo ou sequer de uma novidade portuguesa: é assim com Balzac, com Dickens, ou com Zola. O que acontece com os maiores escritores, como é o caso de Eça ou Camilo, é que esta obsessão com o tempo migra para uma consciência dessa mesma obsessão.

Quer um, quer outro, têm uma consciência clara de que vivem os tempos do jornal, que o impede de ser, nas suas obras, o lugar imperscrutável de onde se observa tudo. O jornal é um ponto central até mesmo nas obras romanescas de Eça e Camilo, e satirizado pelo papel social que tem na época.

"[Na obra de Eça] Os jornais são lugares de vinganças e vaidades comezinhas, joguetes de políticos, receptáculos de opiniões artificiais – que o diga A Capital!, o romance mais dedicado ao mundo da imprensa – mas, sobretudo, o eco de uma política absolutamente teatral, pejada de oportunistas e de actores que, na verdade, não têm nenhum tipo de pensamento nem diferença."

Em Camilo, isso vê-se de várias maneiras, mas a mais interessante está na própria estrutura folhetinesca dos romances. Há em Camilo esta incorporação do estilo folhetim, associado aos jornais, como há em alguns dos escritores mais interessantes da época, com Dostoievski à cabeça. Ora, esta apropriação de um estilo que está nitidamente abaixo das suas possibilidades é uma constante na vida e obra de Camilo e diz muito sobre o seu modo de ver a época. Camilo começou a sua carreira literária sob suspeita, precisamente porque se oferecia para escrever igualmente em jornais das mais diferentes correntes políticas. Ele próprio dizia ser capaz de escrever romances ultramontanos e anticlericais, cartistas ou legitimistas; não dizia apenas, provou-o. É desconcertante que o escritor de O Judeu, que gira em torno de António José da Silva e dos males da Inquisição, do poder monárquico absoluto e do fechamento da sociedade de setecentos seja, já não dizemos o escritor do Marquês de Pombal, mas o homem que se gabava de ter andado com as milícias miguelistas a combater pela bandeira branca (coisa de que, aliás, alguns biógrafos duvidam). Do mesmo modo, é desconcertante que o escritor de Amor de Perdição seja o mesmo de Eusébio Macário, mesmo que neste se disfarce a experiência com uma aposta sobre a capacidade para escrever um romance naturalista. A verdade é que tudo isto denota, ao mesmo tempo, uma espécie de indiferença pelo espírito de facção consagrado pelo liberalismo – com, depois, os jornais dos históricos a apoiarem-se todos uns aos outros, o mesmo com os dos regeneradores, ou antes dos radicais, etc. – e um modo próprio de lidar com ele. O mundo partido do liberalismo é, para Camilo, quase um palco de teatro. É difícil perceber o que é que Camilo pensava politicamente; há uma atracção pelo mundo Antigo que choca com um moralismo que ia contra os seus próprios costumes. O que não é difícil é perceber que esta visão sobre os mundos em conflito é em Camilo o alimento mais fértil para a sua obra. Esta está cheia de personagens-tipo, de um modo que não é simplesmente satírico. O que está em causa não é apenas encontrar um brasileiro fielmente retratado, mas uma ideia mais ampla: a de conseguir uma representatividade do seu mundo que passa por identificar, e escrever, todos os modos de pensar, de relação com o mundo, com o campo, com o dinheiro, sendo capaz de o fazer em vários planos: não só a partir de fora, do riso, mas até na sua própria perspectiva, sempre em mudança conforme o que é útil para a narração, o que lhe dá um toque Shakespeareano.

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Com Eça, há também uma relação óbvia – talvez mais óbvia, até, entre jornais e política. Eça também começou a sua carreira literária num jornal, com uma militância política algo artificial. O Distrito de Évora, financiado por Eugénio de Almeida, devia ser feito de acordo com as ideias deste, pelo que Eça, o redactor, devia adaptar-se à linha planeada. No entanto, como no caso de Camilo, não é sequer na sua obra jornalística – e As Farpas mereceriam uma análise própria, que aqui não poderemos fazer – que há a sua reflexão mais importante sobre o papel dos jornais. Estes, na sua obra romanesca, são destratados com a mesma impiedade com que tudo o resto é destratado. Os jornais são lugares de vinganças e vaidades comezinhas, joguetes de políticos, receptáculos de opiniões artificiais – que o diga A Capital!, o romance mais dedicado ao mundo da imprensa – mas, sobretudo, o eco de uma política absolutamente teatral, pejada de oportunistas e de actores que, na verdade, não têm nenhum tipo de pensamento nem diferença. É sintomático que as personagens políticas mais famosas de Eça e Camilo – Calisto Elói no caso de Camilo, o Conde de Abranhos, a que poderíamos juntar o Pacheco das Cartas de Fradique Mendes, no caso de Eça – tenham no currículo traições espectaculares aos seus partidos, discursos inócuos e pouco mais do que uma consagração da mediocridade geral. Esta ideia, de que a política parlamentar é feita de opiniões falsas, inimigos imaginários, indignações e virtudes artificiais tem em Eça um impacto profundo. Há nele, claro, um gosto pela sátira que o leva a rir-se de todas estas personagens, mas a principal consequência disto é outra: a absoluta impenetrabilidade deste mundo a ideias verdadeiras ou importantes, que faz dos homens verdadeiros tão impotentes quanto a galeria que se vê n’Os Maias. O tédio baudelairiano tem os mesmo recortes do drama folhetinesco: a noção de que se está num mundo de consciências embrutecidas, em que nada pode penetrar profundamente. Uns desistem, outros carregam no drama a ver se o mundo acorda, mas todos lidam com esta estranha sina: a de um amor pela palavra e pelo seu poder transformador, ao mesmo tempo que vêem como, à volta, nada disso tem importância.

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