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Quem foi Elizabeth Eleanor Siddall?
A pergunta devia ser de resposta fácil, mas não o é. Passados 156 anos da sua morte trágica e prematura e da abertura da sua campa por ordem do marido, Lizzie, como era chamada por aqueles que lhe eram mais próximos, permanece tão enigmática como parecia ser em vida. O seu rosto, um dos mais famosos da História da Arte, pouco diz, mas foram muitos aqueles que tentaram encontrar no seu olhar, retratado por alguns dos mais importantes artistas ingleses do século XIX, uma sombra da melancolia que consumiu os seus últimos anos de vida e que parece tê-la levado ao suicídio. Com os seus versos, assim como com a sua pintura, não foi diferente — durante décadas, a sua produção artística, acusada de não ter valor nenhum, só parecia interessar do mero ponto de vista biográfico ou pela sua ligação a Dante Gabriel Rossetti, com quem casou depois de um longo noivado, dois anos antes de morrer. Talvez por aí seria possível descobrir a verdadeira Lizzie. A trágica Lizzie.
Mas será que a mulher de Dante Gabriel Rossetti, um dos grandes impulsionadores do movimento pré-rafaelita, que buscava a inspiração na pintura anterior a Rafael, foi apenas isso? A modelo para a famosa Ophelia de Millais, para a Viola de Deverell e para a Sylvia de Hunt?
Serena Trowbridge pensa que não. Ainda que seja difícil separar o mito da realidade, a professora de Literatura Inglesa na Birmingham City University acredita que é possível descobrir a verdadeira Lizzie através daquilo que verdadeiramente a definia — o seu trabalho. O seu novo livro, My Ladys Soul: The Poems of Elizabeth Eleanor Siddall, é assim uma tentativa de colocar a mulher de Dante Gabriel Rossetti no lugar que realmente lhe pertence, não no das mulheres que inspiraram os grandes poetas e pintores, mas junto daqueles que participaram nas grandes revoluções artísticas. Elizabeth Siddall também foi pré-rafaelita, tal como o homem com quem casou e que muitos dizem ter contribuído para o seu fim precoce. Elizabeth Siddall também foi artista.
My Ladys Soul: The Poems of Elizabeth Eleanor Siddall é, nesse sentido, uma pedra no charco, tal como foram os estudos editados por Jan Marsh há alguns anos, que procuraram apresentar a inglesa como uma artista com qualidades próprias. O livro de Trowbridge, publicado no final de setembro pela Victorian Secrets, uma editora inglesa independente especializada em livros de e sobre o século XIX, é o primeiro a reunir toda a obra poética de Siddall — os 15 poemas que lhe são atribuídos, e que não eram editados conjuntamente desde 1978, e alguns fragmentos, até agora inéditos. Apesar de ser um conjunto pequeno de poesia, estes textos “são suficientes para dar uma ideia de que tipo de poetiza ela era”. Através de uma análise tanto quanto possível crítica (aqui o número de poemas é também problemático), Serena Trowbridge procurou afastar a verdade poética do mito, ainda que, como a própria admitiu, isso seja difícil.
“Os mitos que circulam em torno dela são muitos”, escreveu a professora de Literatura Inglesa, sugerindo que “é talvez a qualidade lendária da sua vida, fúnebre e melancólica, que é apelativa”. “Siddall é, como Jan Marsh discutiu de forma perspicaz em The Legend of Elizabeth Siddal, constantemente mitológica, e essas mitologias são reformadas e reformuladas para satisfazer as nossas necessidades. Marsh, juntamente com outros, tentou separá-la dos seus próprios mitos, mas é muito difícil fazê-lo, tão insistentes e penetrantes são as histórias que circulam em torno da sua figura desvanecente.” É talvez por isso que “a sua vida parece criar mais interesse do que o seu trabalho” — “poucas figuras foram capazes de agarrar a imaginação popular”.
A vida e lenda de Elizabeth Siddall
Durante anos, a data de nascimento de Elizabeth Eleanor Siddall não passou de pura especulação. O branqueamento de muitos factos por William Michael Rossetti, irmão de Dante Gabriel, os mitos que foram surgindo e os relatos pouco fundamentados ajudaram a que, com o passar do tempo, fosse difícil descobrir a verdade no meio de tanta mentira. Foi só no final dos anos 70 que se soube com certeza que Siddall nasceu a 25 de julho de 1829, em Hatton Gardens, em Londres, graças ao trabalho de uma funcionária do Public Record Office. Pode-se considerar, como fez Jan Marsh, que foi nessa data que “começou o ainda incompleto processo de apresentar Elizabeth Siddal com uma história independente da de Rossetti e da da Irmandade Pré-Rafaelita”, que culminou com a publicação do livro de Serena Trowbridge.
Filha de Charles Siddall — um ferreiro oriundo de uma família de artesãos de Sheffield — e Elizabeth Eleanor Evans, Elizabeth Siddall (apelido que se escrevia com dois “l” e não com um, como Rossetti a aconselhou a fazer, sendo por essa razão que aparece de diferentes formas consoante as publicações) terá tido uma educação pobre, ainda que não se saiba exatamente qual era o seu nível de escolaridade. Terá começado a trabalhar muito cedo, provavelmente como costureira, emprego referido por algumas fontes. O mítico relato da sua descoberta coloca-a numa loja de toucas (um tipo de chapéu muito popular entre as senhoras no século XIX) em Cranbourne Street, Londres, por volta de 1850. Foi aí que, de acordo com o relato de F. G. Stephens, membro original da Irmandade Pré-Rafaelita — fundada em oficialmente em 1848 por Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais — e autor de uma biografia de Rossetti, foi vista pelo pintor Walter Deverell, quando tinha 21 anos:
“Walter Deverell, que estava muito aborrecido com a conversa das senhoras sobre as mais recentes compras, durante uma visita a um estabelecimento de renome onde se faziam toucas com a sua mãe, (…) decidiu (…) espreitar por detrás do balcão, onde, no fundo da loja, um grupo de assistentes faziam chapéus segundo a mais recente moda. Entre essas donzelas, estava sentada uma de uma rara beleza, alta, elegante, magra, de cintura fina (…). O seu cabelo abundante era de um ruivo acastanhado escuro, com madeixas loiras, e estava compactamente enrolado e preso à sua pequena cabeça, que a natureza colocou sobre o pescoço como uma torre. (…) A sua pele, mais pálida do que morena, (…) era suave, enquanto os seus traços faziam lembrar uma estátua de bronze italiana”.
Deverell percebeu que tinha de a pintar, e pediu à sua mãe que convencesse a donzela ruiva da loja de toucas a pousar para ele. Elizabeth aceitou, e pouco tempo depois serviu de modelo a Viola, numa representação da Cena IV, do Ato II, da comédia de William Shakespeare Twelfth Night. Viola, a náufraga, aparece sentada do lado esquerdo do quadro, disfarçada de Otario. Foi a primeira vez que Lizzie se sentou em frente a um pintor.
Walter Deverell, “pobre rapaz, morreu novo”, em 1854, “e nunca conseguiu fazer justiça à donzela”, escreveu Stephens em 1894, fazendo eco da opinião expressada por William Michael Rossetti, que defendeu que o jovem pintor não tinha conseguido captar a beleza de Lizzie: “O rosto não dá muito a ideia de como era a dela, no entanto, não é totalmente diferente dela”, escreveu o irmão de Dante Rossetti, conhecido como o secretário da Irmandade Pré-Rafaelita, que ajudou a fundar. A verdade é que, como afirmou Jan Marsh, Elizabeth Siddall “não era nem bonita nem amada”. Ao contrário do que foi escrito muitos anos depois, Lizzie não foi escolhida pela sua beleza deslumbrante, mas pela sua vulgaridade. Basta olhar para as modelos preferidas dos pré-rafaelitas para perceber que não poderia ter sido assim — eram mulheres comuns, com empregos banais, que roçavam o indecente. Jane Burden, por exemplo, que viria a casar com William Morris e tornar-se numa das principais amantes de Rossetti, trabalhava num teatro; Dolores, amante de Swinburne, era amazona num circo.
É contudo a partir dos relatos desfasados e dos quadros para os quais Lizzie serviu de modelo que é possível ter uma ideia do seu rosto. Dos retratos que lhe foram tirados em vida, parece ter sobrevivido apenas um, de fraca qualidade. As restantes fotografias parece terem sido destruídas por Rossetti, que, depois da morte de Elizabeth Siddall, admitiu a Georgiana Burne-Jones, mulher do pintor Edward Burne-Jones e amiga de Lizzie, quando esta lhe pediu uma para recordação, que nenhuma tinha sido preservada porque não eram satisfatórias. Em vez disso, Rossetti ofereceu à Lady Burne-Jones uma fotografia de um desenho. É curiosamente a Georgie Burne-Jones que devemos uma das mais fiéis descrições de Siddall: tinha uma “tez rosada” e uma “figura esguia e elegante”, costumava usar vestidos simples e o cabelo, “vermelho escuro”, “preso frouxamente, caindo de forma suave”. O poeta William Allingham descreveu-a nas suas memórias como “doce, gentil e atenciosa, com um gosto pela arte e poesia”.
Numa outra versão dos factos, não foram os pré-rafaelitas que se aproximaram de Lizzie, mas o contrário. Num obituário da inglesa, publicado no Sheffield Telegraph a 28 de fevereiro de 1862, o autor, o artista e designer local William Ibbitt relatou que teria sido Siddall a abordar William Deverell com o intuito de lhe mostrar os seus desenhos. Elizabeth Siddall ambicionava tornar-se artista, e terá sido encorajada a praticar por Deverell e por outros pintores do círculo pré-rafaelita. Terá sido talvez com o intuito de se aproximar de artistas profissionais e começar a frequentar os seus estúdios, que, supõe Jan Marsh em The Legend of Elizabeth Siddal, Lizzie terá cedido ao pedido de Deverell e dos outros pré-rafaelitas para pousar para ele, um trabalho que não era bem visto na época e que era muitas vezes comparado ao de uma prostituta. O que é certo é que, entre 1850 e 1852, período em que a arte pré-rafaelita deu um grande passo em frente, Siddall, elevada a musa do movimento, pousou para diferentes pintores e diferentes figuras, sendo a “Ophelia”, de Millais, a mais conhecida. “Um movimento de sonho tem de ter a sua mulher de sono. Se Miss Siddal não tivesse existido, teria sido necessário inventá-la”, escreveu William Gaunt, em The Pre-Raphaelite Tragedy.
Elizabeth Siddall terá pousado pela primeira vez para William Dante Rossetti no final de 1851, depois de ter colaborado com William Holman Hunt. Lizzie foi escolhida por Rossetti para servir de modelo à figura de Delia, numa aguarela baseada nuns versos do poeta latino Tíbulo. A correspondência da época mostra que a inglesa pousou para John Everett Millais depois disso, entre fevereiro e março de 1952. O fundo da pintura de Millais estava praticamente terminado por essa altura, faltando apenas a figura de Ophelia, afogada no rio. A história de como a cena da tragédia Hamlet, de Shakespeare, ganhou vida é uma das mais famosas — Lizzie passou horas a fio dentro de uma banheira com água, aquecida por velas. Numa das sessões, Millais, concentrado no trabalho, não terá reparado que as chamas ter-se-iam apagado. Lizzie nada disse, mas ficou doente. O pai dela escreveu ao pintor ameaçando processá-lo pelo seu descuido e Millais acabou por pagar todas as despesas médicas.
Foi a única vez que Elizabeth Siddall pousou para Millais. Depois de “Ophelia”, Lizzie começou a colaborar exclusivamente com Dante Gabriel Rossetti, que recorria à sua figura para todas “mulheres poéticas e bíblicas”, como refere Jan Marsh. Em troca, tornou-se seu tutor e ensinou-a a pintar, como mostram alguns dos desenhos que fez dela durante este período. Terá também sido nesta altura que a relação dos dois se tornou em algo mais, o que também é corroborado pelos esboços do pintor — nestes, Lizzie aparece em poses descontraídas, lendo um livro ou recostada num cadeirão, com o seu longo cabelo solto. Havia intimidade entre aluna e mestre. Segundo Marsh, terá também sido por volta de 1853 que começaram a surgir os primeiros sintomas da doença de Lizzie — essa doença que, até hoje, ainda ninguém conseguiu descobrir qual era. Em 1854, foi diagnosticada com uma curvatura da espinha pelo Dr. Garth Wikinson e internada temporariamente num sanatório em Harley Street. No ano seguinte, recebeu um diagnóstico mais favorável — a sua fraqueza foi atribuída a stress.
Segundo Jan Marsh, não existem evidências de que Elizabeth Siddall sofresse de alguma doença em concreto. “Neuralgia — um termo cunhado no século XIX para descrever dores de cabeça intermitentes, como as enxaquecas — é uma condição muito vaga, não é uma doença”, escreveu a investigadora em The Legend of Elizabeth Siddal. “Não é possível fazer um diagnóstico retrospetivo, mas suspeito que muitas referências contemporâneas à doença, feitas por Lizzie, pelo seu marido e pelos seus amigos fossem exageradas ou falsas. Algumas delas eram eufemismos para distúrbios mentais e — certamente nos últimos dias da sua vida — toxicodependência. (…) Os seus receios ou a sua morte provam que ela sofresse de alguma doença física.”
Uma das hipóteses avançada por Marsh nos seus estudos é a de que a alegada doença de Lizzie poderia ser uma estratégia para esta poder fugir às obrigações sociais desagradáveis ou uma tentativa de aristocratização (aos olhos da sociedade de então, as mulheres do povo não ficavam doentes, tinham uma saúde de ferro). Verdade ou mentira, o que é certo é que os relatos da convalescência de Lizzie continuaram depois de 1854. Preocupado, o crítico literário John Ruskin, que tinha sido em grande parte responsável pela fama que os pré-rafaelitas tinham adquirido, aconselhou-lhe médicos e chegou até a pagar-lhe uma viagem a França para se curar. O escritor William Howitt, adepto do espiritismo, levou-a a sessões em que se tentava comunicar com as almas do outro mundo. Com o passar dos anos, e à medida que a relação com Rossetti ia esfriando, a doença de Siddall foi piorando.
Apesar da aparente má vontade Dante Gabriel Rossetti, que depois de vários anos de relacionamento e falsas promessas continuava a não avançar com o pedido de casamento, é bem possível que o pintor e poeta tivesse perdido o interesse por Lizzie. No livro The Legend of Elizabeth Siddal, Jan Marsh relata que, depois da viagem que Siddall fez a França, no final de 1855, “a situação emocional foi alterada”. Enquanto Elizabeth Siddall estava em Nice, Rossetti conheceu a atriz Ruth Herbert, que se tornou sua modelo. Já depois do regresso da mulher a Londres, em maio de 1856, Ford Maddox Brown deu conta de alguns problemas entre o casal, com Holman Hunt a dar conta, no mês seguinte, do surgimento de uma outra figura feminina, Annie Miller, que Rossetti levava descaradamente para todo o lado. Estas foram apenas duas das muitas modelos e amantes do pintor. Segundo Marsh, Rossetti já não gostava de Siddall, “mas não sabia como resolver a questão em relação à qual estava ligado por uma questão de honra”. Em vez disso, foi ela que teve de tomar uma decisão — os dois separaram-se definitivamente em 1858, depois de várias discussões.
Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddall passaram dois anos sem se ver. Quando se reencontraram, em 1860, Siddall estava gravemente doente e viciada em láudano, que tinha começado a tomar em grandes quantidades depois da morte do pai, em julho de 1859. Rossetti terá sido chamado pelos familiares de Lizzie, talvez por acreditarem que o seu estado se devia ao facto de o pintor nunca ter tomado a iniciativa de casar com ela. Ao vê-la naquele estado, Dante Gabriel Rossetti prometeu-lhe que, se melhorasse, casariam. Lizzie melhorou e os dois deram o nó a 23 de maio de 1860, na St. Clemens Church, em Hastings. A lua de mel foi passada em França.
Para assinalar o seu casamento com Elizabeth Siddall, Dante Rossetti pintou-a como “Regina Cordium”, “rainha dos corações”. O quadro, com corações e cruzes sobre um fundo dourado, mostra Lizzie com o seu cabelo ruivo solto, os ombros expostos e um colar de contas vermelhas, também com um coração. Trata-se de uma bonita homenagem, que alguns acreditam esconder sinais do verdadeiro motivo da união dos dois — a doença de Siddall. O tom esverdeado da sua pele e a flor que segura, um amor-perfeito, podem ser sinónimos do estado de saúde da modelo — para os vitorianos, o amor-perfeito era um símbolo da lembrança, e estava mais associado aos mortos do que aos vivos.
A saúde de Elizabeth Siddall terá melhorado substancialmente depois do casamento, mas parece ter piorado novamente depois de ter engravidado, no final desse ano. A gravidez foi difícil e, a 2 de maio de 1861, Lizzie deu à luz uma bebé, que nasceu morta. No final de 1861, teve um aborto. Apesar de fisicamente ter recuperado com rapidez, psicologicamente nunca mais voltou a ser a mesma. Georgiana Burne-Jones costumava contar que, certo dia, quando ela e o marido foram visitar os Rossetti à casa onde viviam em ChathanPlace, no centro de Londres, depararam-se com Lizzie sentada numa cadeira baixa, embalando um berço vazio. Quando entraram no quarto, Siddall virou-se para Burne-Jones, e disse-lhe baixinho: “Silêncio, Ned. Vais acordá-la!”. Para William Michael Rossetti, o destino de Lizze já estava escrito: “A sua doença destrutiva, acompanhada por uma neuralgia, continuou o seu curso fatal e os seus dias poderiam apenas ter sido prolongados, na melhor das hipóteses, por alguns anos”.
Uma morte muito melancólica
O mito de Elizabeth Siddall nasceu verdadeiramente com a sua morte. No dia 14 de fevereiro de 1862, o Daily News anunciou que tinha sido “levado a cabo um interrogatório” no dia anterior, no Hospital de Bridewell, “por causa do corpo” de Elizabeth Eleanor Rossetti, “mulher de Dante Gabriel Rossetti, artista, que mora no n.º 14 de Chatham Place, Blackfriars”. O jornal afirmava que Lizzie tinha morrido três dias antes “devido a circunstâncias muito melancólicas”, na sequência de uma overdose de láudano. A morte da mulher de Dante Rossetti tinha apanhado todos de surpresa, mas a hipótese de suicídio não se punha: “Ela não tinha expressado vontade de morrer, muito pelo contrário. Na verdade, estava a pensar sair da cidade por um dia ou dois, e tinha mandado fazer uma capa nova que pretendia usar nessa ocasião”.
O dia anterior à morte de Elizabeth Siddall decorreu normal. Ao final da tarde, o casal deixou a sua casa em Blackfriars e apanhou uma carruagem até ao Hotel Sablonniere, em Leicester Square, para jantar com um amigo, o poeta Algernon Charles Swinburne. Dante e Elizabeth regressaram a Chathan Place pelas 20h, mas o poeta voltou a sair para ir ao Working Men’s College, deixando Lizzie sozinha. Quando regressou a casa, por volta das 23h30, encontrou-a na cama, inconsciente. Rossetti pensou imediatamente no láudano, que ela tinha de tomar todas as noites para conseguir dormir. Olhou em redor e encontrou o pequeno recipiente de vidro vazio em cima da mesa de cabeceira. Siddall tinha tomado o frasco inteiro.
Rossetti tentou acordá-la. Vendo que não conseguia, assustou-se e decidiu chamar um médico, o Dr. Hutchinson de Bridge Street, que tinha atendido Lizzie em abril, quando esta perdeu a filha. Hutchinson chegou a Blackfriars pelas 23h45. Siddall estava em coma. O médico fez-lhe uma lavagem ao estômago e tentou despertá-la, mas sem sucesso. Desesperado, Dante Rossetti foi tocar à porta de Ford Maddox Brown, seu amigo próximo. O pintor relatou anos depois que Rossetti lhe apareceu em meias — tinha tirado as botas quando chegou a casa para não acordar a mulher e nunca mais se tinha lembrado de as calçar.
Elizabeth Eleanor Siddall morreu às 7h20 de 11 de fevereiro, uma terça-feira, na presença do Dr. Hutchinson e de outros três médicos. Tinha 32 anos, e não 29 como anunciou o Daily News. Depois de feita a autópsia, foi decretada “morte acidental”.
O velório durou seis dias. Durante esse tempo, Rossetti pediu insistentemente aos médicos que lhe dissessem que Lizzie não estava realmente morta, mas em transe por causa do láudano, tintura de ópio (a partir da qual é feita a heroína) prescrita com regularidade no século XIX como analgésico e tranquilizante. A resposta era sempre a mesma: ela tinha mesmo morrido. Siddall foi sepultada na campa da família Rossetti, no cemitério de Highgate, nos arredores de Londres. Era ali que tinha sido enterrado em 1854 o pai de Dante Gabriel, o exilado político italiano Gabriel Rossetti. “Nos anos que se seguiram, à medida que a fama de pintor e poeta do seu marido crescia, ela foi apenas lembrada por um pequeno círculo de amigos e familiares”, escreveu Jan Marsh em The Legend of Elizabeth Siddal.
Depois do enterro, começaram a surgir as primeiras histórias. Dizia-se que a morte de Siddall não tinha sido um acidente, e que a mulher se tinha suicidado porque não aguentava mais as traições de Dante Gabriel Rossetti. Uns diziam que Lizzie era paranoica, que estava convencida de que o marido a traía com as suas modelos mas que isso não era verdade; outros juravam que Rossetti tinha saído de casa naquela noite não para ir ao WorkingMen’s College, mas para ir ter com a amante, Fanny Cornforth, uma antiga prostituta que tinha conhecido no final da década de 1850 e que tinha servido de modelo para o quadro “BoccaBaciata”. Nesta versão, Siddall teria descoberto tudo e, num ato de desespero, teria tomado o frasco inteiro de láudano. Antes de morrer, teria escrito uma carta a Rossetti em que o acusava de ter destruído a sua vida, e que este tinha encontrado junto ao seu corpo. A missiva teria sido posteriormente destruída por Madox Brown.
Apesar de não existirem indícios de que alguma destas coisas tenha acontecido, a história ficou. Elizabeth Siddall ficou conhecida para a posteridade como a musa que tinha sido descartada pelo seu amante pintor depois de ter perdido a beleza e o encanto. A partir daí, a história daquilo que se julga saber sobre a sua vida criou sempre “mais interesse do que o seu trabalho”. Como escreveu Serena Trowbridge: “Ela parece existir na nossa consciência do período vitoriano como uma mulher que representa as mulheres reprimidas, negligenciadas e caídas em desgraça desse tempo”.
Depois da morte, o cabelo continuou a brilhar
No dia do funeral, antes de fecharem o caixão, Dante Gabriel Rossetti, “num impulso de dor”, decidiu “reunir os manuscritos de um grande número de poemas”, os favoritos de Lizzie, que tinha reunido num caderno a seu pedido, e colocá-los junto ao peito da mulher, relatou William Sharp, numa das primeiras biografias do pintor. Uma vez que ela estava morta, os versos que tinha escrito a pensar nela já não tinham utilidade. Deviam ser enterrados com ela.
Os anos foram passando e Rossetti foi-se esquecendo do caderno que jazia debaixo de sete palmos de terra no cemitério de Highgate. A poesia parecia interessar-lhe pouco — entre 1862 e 1868, publicou apenas três sonetos, “Soul’s Beauty”, “Body’s Beauty” e “Venus Verticordia”, dois deles escritos para acompanhar quadros seus. O reatar do romance com Jane Morris parece ter mudado tudo, dando a Rossetti um novo motivo para pegar na pena e para pensar mais seriamente na publicação da sua obra poética. Terá sido assim que o pintor terá chegado à conclusão que os manuscritos que tinha colocado no caixão de Elizabeth Siddall lhe faziam falta e que não podia continuar a ignorar o facto de ter enterrado “tão bom trabalho”, nas palavras de Sharp.
Por mais romântico que o biógrafo tenta tentado pintar o quadro da exumação de Lizzie, justificando a decisão de Dante Rossetti com as suas alegadas ambições artísticas, tudo indica que o caixão terá sido aberto por mero interesse — dizia-se que o pintor estava a passar por dificuldades financeiras e que não estava a conseguir encontrar compradores para os seus quadros. Um livro de poesia podia resolver esse problema. Por essa altura, começou também a ser evidente que não estava bem de saúde. E tinha começado a tomar cloral.
Foi com o apoio dos amigos mais próximos que, em 1869, Dante Gabriel Rossetti decidiu abrir a sepultura de Elizabeth Siddall. O principal impulsionador da exumação terá sido Charles Augustus Howell (como o próprio pintor admitiu posteriormente em carta ao amigo e poeta Algernon Charles Swinburne), que muito provavelmente esperava ganhar alguma coisa com o caso. Howell, nascido na cidade do Porto, era uma personagem de caráter duvidoso, que serviu de inspiração a uma das histórias de Sherlock Holmes, The Adventure of Charles Augustus Milverton. Foi também ele que, acompanhado por quatro amigos do poeta e pintor inglês, recuperou os manuscritos e relatou o que se passou naquela noite de 5 de outubro: quando abriram a sepultura e se aproximaram, os homens aperceberam-se de que Lizzie continuava tão bela como antes. O seu cabelo ruivo, que brilhava à luz da lanterna, enchia o caixão — tinha continuado a crescer mesmo depois da sua morte.
Todas as fontes documentais corroboram a versão de que Rossetti não esteve presente na exumação. Ainda assim o poeta parece ter sentido a necessidade de justificar o ato aos que lhe eram mais próximos: “A verdade é que ninguém aprovaria mais isto do que ela (…). Se lhe fosse possível, teria encontrado o livro na minha almofada na noite em que ela foi enterrada; e se ela conseguisse abrir a sepultura, mais nenhuma mão seria necessária”, escreveu a Swinburne. Com a publicação dos poemas, Dante Gabriel Rossetti ganhou 800 libras. Lizzie, por seu turno, tornou-se numa lenda.
Ironicamente, os últimos dez anos da vida de Dante Gabriel Rossetti também foram marcados por problemas de saúde, aparentemente relacionados com um colapso nervoso que teve no verão de 1872. Depois dessa data, Rossetti nunca mais voltou a ser o mesmo — tornou-se quase num eremita, vivendo como um recluso, primeiro em Kelmscott Manor (onde passou alguns verões na companhia dos Morris, mantendo um caso com Jane mesmo debaixo do nariz do marido, que parecia não se importar), no sul de Inglaterra, e depois em Cheyne Walk. O seu estado parece ter piorado substancialmente em 1874, depois de Janey o ter deixado de vez. Começou a ouvir vozes e a passar as noites em branco. Tinha a mania da perseguição e, nos períodos mais complicados, deixava de conseguir pintar ou escrever e dizia que as paredes sussurravam. Os sussurros eram as vozes dos seus inimigos. A par disto, terá cedido ao vício do cloral, que começou a tomar depois da morte de Lizzie.
Até hoje, ainda não se sabe ao certo qual a natureza do seu estado. Em abril de 1882, numa última tentativa de recuperar a saúde, viajou até Birchington-on-Sea, uma localidade inglesa a nordeste de Kent onde um amigo tinha uma casa de campo. Morreu no dia 9, domingo de Páscoa. A seu pedido, não foi sepultado em Highgate, mas a 120 quilómetros de Lizzie, no terreno da AllSaintsChurch, em Birchington-on-Sea. A 11 de abril, a revista literária londrina Athenaeum anunciou: “Morreu um dos homens mais talentosos do nosso tempo”.
“Ida”, a modelo que foi sobretudo pintora
Os interesses artísticos de Elizabeth Siddall parecem ter sido moldados “pela sua experiência enquanto modelo” e pela sua “imersão no mundo da Irmandade Pre-Rafaelita”, como escreveu Serena Trowbridge na introdução ao seu livro. Terá começado a pintar, orientada por Dante Gabriel Rossetti, por volta de 1852, mas, como demonstrou Jan Marsh, o seu interesse pela arte terá começado muito antes.
Estima-se que até à data da sua morte tenha produzido perto de 100 trabalhos, maioritariamente durante a década de 1850. Apesar de Rossetti ter guiado os seus primeiros passos, Siddall tinha uma criatividade muito própria, acabando por conquistar a admiração e respeito de artistas como William Morris e do crítico John Ruskin. Para uma mulher a viver na primeira metade do século XIX, era um feito impressionante: “É notável que ela tenha afirmado a sua pretensão a um papel criativo do qual o seu género, a sua classe e a sua ocupação tendiam a exclui-la”, afirmou Jan Marsh no livro Pre-Raphaelite Sisterhood.
Juntamente com Rossetti, John Ruskin foi um dos seus principais impulsionadores. O crítico de arte parecia ter uma verdadeira adoração por ela — chamava-lhe “Ida”, o nome da “estranha princesa-poetiza” do poema “ThePrincess” de Alfred Lord Tennyson, e chegou a ser seu patrono durante um ano. Pagou-lhe 150 libras em troca de trabalhos seus e financiou uma viagem a Paris, França, para “expandir os seus horizontes artísticos e culturais” e também para receber tratamento para a sua já então frágil saúde. Quando conheceu Lizzie, por intermédio de Rossetti, Ruskin declarou que os seus trabalhos eram “muito melhores” do que os dele e tentou comprá-los a todos.
O próprio Dante Gabriel Rossetti parecia apreciar o trabalho da mulher, uma vez que, depois da sua morte, tratou que os seus desenhos e esboços fossem fotografados e reproduzidos em volumes para homenagear a sua arte. Sabe-se que quatro destes volumes chegaram a ser distribuídos a amigos. Segundo Jan Marsh, os negativos das imagens chegaram aos dias de hoje, mas as fotografias nunca mais voltaram a ser reproduzidas.
O reconhecimento do mérito artístico de Elizabeth Siddall parece não se ter ficado pelo círculo mais fechado de conhecimentos. De acordo com Serena Trowbridge, um “indicador da importância cada vez maior de Siddall enquanto artista” foi a inclusão de quatro dos seus trabalhos (“We Are Seven”, The Haunted Tree”, “Clerk Saunders” e “Study of a Head”, que se acredita ser o seu auto-retrato) e de alguns dos seus desenhos (inspirados por Tennyson e Browning) numa pequena exposição organizada por Madox Brown em Russell Place, Londres, em junho de 1857. Siddall foi a única mulher a participar na mostra londrina, lado a lado com pintores estabelecidos, como William Holman Hunt ou John Everett Millais. Hunt, que nunca teria visto o seu trabalho de Lizzie, tê-lo-á comparado ao de Walter Deverell, que admirava. Em resposta, Rossetti terá dito que era muito melhor.
A exposição de Russell Place foi a primeira e única exibição pública do trabalho de Elizabeth Siddall (talvez por motivos de saúde, sugeriu Trowbridge). Na sequência desta, Ruskin conseguiu que vários dos seus esboços e uma aguarela, “Clerck Saunders and Mary Margaret”, fossem vendidos a um norte-americano, Charles Eliot Norton, amigo do crítico literário. Foi “o ponto alto da sua carreira”. Dentro do seio da Irmandade Pré-Rafaelita, Siddall chegou a ser convidada para ilustrar uma coletânea de baladas escocesas organizada por William Allingham e para participar no chamado Moxon Tennyson, uma edição ilustrada dos poemas de Alfred Lord Tennyson comissariada por Edward Moxon. Publicada em 1857, esta contou com a participação dos pré-rafaelitas Millais, Hunt e Rossetti. Este último pediu para que Ford Madox Brown, Arthur Hughes e Elizabeth Siddall também fossem incluídos, elogiando as qualidades dos seus alunos. Lizzie começou a trabalhar nestes projetos, não chegando, porém, a completá-los.
Apesar da dedicação com que Elizabeth Siddall mergulhou na pintura, não chegou a dominar inteiramente a técnica, com os seus quadros a apresentarem várias falhas, sobretudo ao nível anatómico. “Mas no mundo dos pré-rafaelitas isso não era importante”, como salientou Jan Marsh. Rossetti, por exemplo, preferia trabalhos que provinham da imaginação, e encorajava os seus alunos a fazerem o mesmo”. As qualidades de Lizzie eram outras: “Apesar da falta de compreensão anatómica, o trabalho [de Siddall] é notável pela rigidez espinhosa característica dos desenhos dos primeiros pré-rafaelitas e pela sua expressividade emotiva”. A forma como abordou os temas escolhidos é diferente de tudo o resto, aproximando-se muita vez dos pintores naïves do que da Irmandade Pré-Rafaelita.
“Ela abordou os temas pré-rafaelitas com o seu estilo único, que compensava pela falta de realização técnica (parece que nunca aprendeu a desenhar, pelo menos da forma como isso era entendido no século XIX)”, escreveu Marsh, defendendo que, nos dias de hoje, Lizzie “podia ser caracterizada como uma pintora primitiva ou naïve”. Considerando que Siddall “não era ignorante” e que tinha perfeita noção da corrente artística dominante, Marsh lembrou que os temas escolhidos pela artista não era assim tão distantes dos “padrões da época”, ainda que fossem tratados de forma diferente”.
Numa altura em que as artes inglesas estavam a ser promovidas para “desafiar a superioridade artística francesa”, Elizabeth Siddall ia buscar inspiração às mesmas fontes que muitos dos seus contemporâneos. A sua principal influência parece ter sido o imaginário medieval (também evidente nos seus poemas). As baladas reunidas por Sir Walter Scott (que também inspiraram parte da poesia de Rossetti), a obra de William Shakespeare e a Bíblia parecem ter sido as suas principais fontes, como mostram trabalhos como “Lady Macbeth”, “Jephthah’s Daughter”, “Lady Affixing Pennant to a Knight’s Spear” e “Sir Patrick Spens” (estes dois últimos, produzidos por volta de 1856, podem ser vistos na Tate Britain, em Londres).
Alfred Lord Tennyson também inspirou algumas das suas obras, a começar pelo desenho “The Lady of Shalott”, o seu primeiro trabalho datado, de 15 de dezembro de 1853. O curioso é que na altura em que fez o desenho, Tennyson, que viria a tornar-se num dos poetas mais populares do século XIX, ainda estava a ganhar adeptos, sobretudo entre os pré-rafaelitas. “LadyofShalott” de Siddall foi, por isso, uma das primeiras interpretações do poema homónimo (escrito em 1832), que seria mais tarde imortalizado pelo pintor John William Waterhouse, com ligações já bem mais tardias aos pré-rafaelitas, em 1888.
Siddall foi também uma das primeiras artistas a interessar-se pelo chamado ciclo arturiano, já presente na figura da Lady of Shalott. O conjunto de desenhos sobre Sir Galahad, um dos cavaleiros do Rei Artur explorados por Tennyson na obra Idylls of the King, mostra claramente o interesse de Lizzie nesta temática. “O obra é uma das primeiras representações de temas arturianos na arte pré-rafaelita, indicando Siddall como uma das primeiras a desenvolver os motivos medievais que se tornariam numa marca da escola”, referiu Jan Marsh em The Legend of Elizabeth Siddal. A única diferença é que a segunda geração de pré-rafaelitas inspirou-se mais na obra de Sir Thomas Malory, autor de Le Morte d’Arthur, do que em Tennyson.
Jan Marsh acredita que outra fonte de inspiração seria a poesia do próprio Rossetti. Os temas tratados por Lizzie coincidiam muitas vezes com os do seu mestre, Rossetti, mas, como refere a sua biografia disponível no site da Tate, “a sua relação [artística] era recíproca”. Houve alturas em que colaboraram (como em “Sir Galahad and the Holy Grail”) e Dante Rossetti chegou até a copiar as composições de Siddall para um dos seus quadros. O desenho “A Parable of Love” (também conhecido por “Love’s Mirror) mostra um jovem, com vestes antigas, a ensinar uma mulher a pintar, guiando a sua mão enquanto ela tenta desenhar o seu retrato. Uma obra claramente influenciada por Siddall, como referiu Jan Marsh.
Deaborah Cherry, em The Cambridge Companion to the Pre-Raphaelites, foi mais longe: na entrada referente a Elizabeth Siddall, a especialista defendeu que o seu trabalho não foi apenas influenciado por Rossetti e pelo Pré-Rafaelismo — também Siddall terá exercido influência sobre o movimento, transformando o cenário e estilo medievais, caracteristicamente seus. “Em meados da década de 1850, Siddall tinha desenvolvido um estilo artístico distinto, caracterizado por várias camadas de composição, espaços fechados, figuras subtis e cores como joias, onde a mobília, o vestuário e as dobras volumosas das tapeçarias, assim como a execução a aguarela, trabalhavam conscientemente as linguagens visuais pré-modernas”, escreveu Cherry.
A voz de uma mulher
Diz a lenda que foi depois de descobrir um poema de Tennyson numa folha amachucada de jornal, usada para embrulhar um pedaço de manteiga, que Elizabeth Siddall se começou a interessar por literatura. A história — uma de muitas que contribuiu para uma imagem de uma mulher de origens muito humildes, com pouca formação — é provavelmente mentira, mas não há forma de saber como é que a poesia entrou na vida de Lizzie. Mesmo durante a sua vida, amigos e conhecidos nunca mencionaram a sua produção poética, o que levou Trowbridge e também Marsh a suporem que se tratava de algo mais privado.
Violet Hunt, filha do pintor Alfred Hunt (que embora não tivesse nada a ver com William Holman Hunt, tinha ligações aos pré-rafaelitas), foi a única a afirmar que Siddall escrevia desde os 11 anos. A versão estabelecida é contudo a de que Elizabeth Siddall começou a escrever antes de 1854, a data avançada por William Rossetti. Curiosamente, terá sido nesse ano que Lizzie terá sido apresentada por Dante Rossetti à irmã Christina, que também escrevia poesia. Christina Rossetti é muitas apontada como a grande representante do pré-rafaelismo literário, ocupando um papel ainda mais importante do que o de James Collinson, que também era pintor, como apontou Helena Barbas na introdução à antologia poética dos pré-rafaelitas por si organizada, a única a reunir poemas escritos pelos membros da Irmandade em português.
Ao todo, conhecem-se 15 poemas de Elizabeth Siddall, a maioria escrita sob a forma de baladas. A estes juntam-se seis pequenos fragmentos, publicados pela primeira vez por Serena Trowbridge. Estes são muito difíceis de ler e nunca foram acabados, o que levou a que nunca despertassem muito interesse. É também nesse aspeto que a edição da Victorian Secrets é pioneira.
No que diz respeito aos restantes poemas, estes também raramente foram editados. A primeira tentativa de publicação foi feita pelo próprio Dante Gabriel Rossetti, depois da morte de Lizzie. Rossetti queria que Christina incluísse seis poemas (“True Love”, “A Year and a Day”, “Dead Love”, “Shepherd Turned Sailor”, “Gone” e “At Last”) no livro de poesia The Prince’s Progress (1866), mas a irmã afastou elegantemente a sugestão afirmando que eram demasiado tristes para serem publicados “em massa”. Para Trowbridge, este comentário reforça “a leitura biográfica” dos textos — Christina parecia acreditar que, se os publicasse, estaria a expôr “as dores pessoais da cunhada”. Esta ideia já tinha sido avançada por Jan Marsh em The Legend of Elizabeth Siddal — para a investigadora, teria sido o próprio Dante Rossetti a aperceber-se que os poemas poderiam tornar-se numa “lembrança desconfortável da sua morte não natural”, acabando por os por “de lado”. “A sua existência foi escondida durante muitos anos.”
Foi só depois da morte de Rossetti, em 1882, é que os poemas de Siddall viram a luz do dia, por intermédio do cunhado, William. William Michael Rossetti, que depois da morte dos irmãos (Gabriel morreu em 1882 e Christina em 1894) tomou em mãos a empreitada de divulgar os seus trabalhos, publicou os 15 poemas de Elizabeth Siddall em diferentes volumes, entre 1895 e 1906. Depois disso, a par com a figura da sua criadora, estes foram caindo no esquecimento. “Foram citados de tempos a tempos em biografias e outros relatos do círculo pré-rafaelita até à publicação da edição limitada da Wombat Press [o vombate era o animal favorito de Rossetti], em 1978”, referiu Marsh, responsável por um dos poucos trabalhos críticos sobre a produção poética de Siddall. Só voltaram a ser publicados na íntegra este ano, por Serena Trowbridge.
Os versos de Elizabeth Siddall podem ser divididos em duas grandes temáticas (identificadas por Jan Marsh em The Legend of Elizabeth Siddal, um dos poucos livros que presta atenção à produção poética da artista): um primeiro, com poemas que lidam “de uma maneira ou de outra” com a tristeza e a morte, como é o caso de “Life and night are falling from me”; e um segundo, com textos que falam do “amor que passa”, como em “Oh never weep for love that is dead”. Existem poemas em que as duas temáticas se juntam, mas, de uma forma geral, os versos sobre a morte são mais melancólicos, enquanto que os que falam de amor são marcados pelo ressentimento.
Os temas abordados por Siddall levaram a que, ao longo de várias décadas, diferentes autores interpretassem os seus textos de uma perspetiva mais biográfica, procurando encontrar neles indícios da sua relação trágica com Dante Gabriel Rossetti. “O silent wood I enter thee”, por exemplo, tem sido sempre “lido biograficamente, talvez em parte devido ao comentário de Violet Hunt de que Rossetti tinha o hábito de se deitar na floresta. De acordo com Hunt, (…) ele também se propôs a Siddall num bosque perto de Hastings”, explicou Trowbridge. O poema descreve a entrada do sujeito poético numa floresta, “com o coração tão cheio de tristeza”, e termina com um lamento: “Pode Deus devolver-me o dia em que os dois/ Estivemos sob as árvores cerradas no bosque escuro?”*. Mas, tal como a melancolia e a visão negativa dos relacionamentos românticos presentes em muitos dos seus poemas, a floresta era, naquela altura, “um cenário literário comum” e não necessariamente um indício da vida da autora.
Isto não significa, porém, que a poesia de Elizabeth Siddall era banal. “Apesar de os seus temas ser comuns a todo o movimento pré-rafaelita, estes tornam-se únicos por causa da força da voz feminina”, escreveu Rhonda Brock-Servais, em “Elizabeth Eleanor Siddal”. “Os poemas de Siddall oferecem a voz de uma mulher em situações onde era normal que uma mulher se mantivesse em silêncio na poesia vitoriana”, escreveu Serena Trowbridge. Isto porque, nos seus versos, “a figura feminina” não é o “cadáver estetizado” ou a “mulher silenciosa e bonita” da arte vitoriana. É uma mulher de carne e osso, que sente e sofre.
Esse sofrimento é, por vezes, transmitido através da ironia, como no poema “I care not for my Ladys soul”, que dá título ao volume de Trowbridge. Como explica a especialista, “Siddall mantém o silêncio da mulher até ao fim do poema, mas corta-o com ironia”, quando diz na última estrofe:
“Então quem fechará os olhos à minha Dama
E quem lhe irá cruzar as mãos?
Irá alguém ouvir se ela gritar
Alto para as terras desconhecidas?”*
No que diz respeito às influências, Siddall parece, mais uma vez, ter-se inspirado em Tennyson e nas baladas reunidas por Walter Scott. Porém, como lembra Trowbridge, Lizzie terá tido acesso a muitos outros autores através de Dante Gabriel Rossetti. A investigadora não põe também de lado a hipótese de a artista ter sido influenciada pela cunhada, Christina Rossetti, ainda que a relação entre as duas nem sempre tenha sido a mais pacífica, como dão a entender várias fontes da altura. Contudo, Christina terá sido o único “modelo poético feminino” com que terá tido contacto e “a relação entre as duas pode ter sido fortemente influenciada pela poesia”. Mas tal como na pintura, também na poesia Elizabeth Siddall parece ter pegado nos modelos vigentes e feito a sua própria interpretação.
Apesar das recorrentes imagens medievalistas, a linguagem usada não é arcaica. Os poucos arcaismos usados pela poetiza estão nos poemas “Ope not thy lips” and “Now Christ ye save yon bonny shepherd”, “apesar de este último soar mais a uma tentativa de imitação da linguagem rústica do que a uma linguagem arcaica”. A linguagem é, de um modo geral, simples e direta, o que contraria a tendência literária da altura (basta ler, por exemplo, os poemas de Alfred Lord Tennyson de que Siddal parecia gostar tanto). Maggie Berg, em “A Neglected Voice: Elizabeth Siddal”, garantiu que o trabalho da pintura e poetiza é “certamente superior a outros pré-rafaelitas periféricos”. Se assim é, porque é que os poemas de Siddall sempre foram tão subvalorizados?
Para Serena Trowbridge, a resposta reside mais uma vez na imagem mitológica da mulher de Dante Rossetti. Mas também existe o problema dos manuscritos. Muitos são difíceis de ler — foram escritos numa letra quase ilegível, que William Michael Rossetti atribuiu ao vício do laudáno que consumiu a cunhada nos últimos anos de vida —, e o número reduzido faz com que seja impossível analisá-los criticamente. A análise feita por Trowbridge é o melhor que se consegue fazer com apenas 15 poemas, cujos títulos foram maioritariamente atribuídos pelo irmão de Dante Rossetti, quando os publicou entre 1895 e 1906. Parece existir apenas uma cópia relativamente limpa, a de “True Love”, o único poema a que Siddall deu um título e que assinou com as iniciais “E.E.R.”, Elizabeth Eleanor Rossetti.
William Rossetti é, aliás, o causador de muitos dos problemas na história de Elizabeth Siddall. Na ânsia de proteger a fama do irmão e o bom nome da família, William criou uma imagem de Lizzie que não corresponde totalmente à realidade e que perdurou durante décadas. A sua produção artística saiu especialmente prejudicada, graças aos muitos textos em que William Rossetti a apresenta como alguém sem qualquer talento pessoal, com um trabalho fraco em “qualidade e desenvolvimento”, sobretudo no que dizia respeito à poesia. Como é que poderia haver interesse num trabalho assim?
Vistas as coisas, devemos então olhar para Elizabeth Siddall? Como a “amigável pomba” na gaiola, como lhe chamou a investigadora norte-americana Elaine Shefer nos anos 80, “vítima do patriarcado opressivo”, dominada pela vontade de um homem e explorada pela sua beleza? Ou como uma mulher com um percurso só seu, pessoal e artístico? Tanto Serena Trowbridge como Jan Marsh preferem esta última interpretação, que tem vindo gradualmente a ganhar espaço e a substituir os discursos em que Lizzie aparece apenas como uma curiosidade histórica. Enfim libertada, Elizabeth Siddall pode finalmente respirar em paz. O livro publicado pela Victorian Secrets é apenas um primeiro passo no caminho da liberdade.
* Tradução de Helena Barbas, no livro Os Pré-Rafaelitas: antologia poética, publicado em agosto de 2005, pela Assírio & Alvim
Imagem de capa: “Beata Beatrix” (c. 1864-1870), de Dante Gabriel Rossetti