Naquela noite de início de janeiro, fez tempo em casa da melhor amiga, que na altura morava mesmo em frente ao Clube Naval da Horta, e às 21h pôs-se a caminho do cais de Santa Cruz, sem levar bagagem, para não chamar a atenção. “Ainda fiquei à janela, mas ela não olhou para trás”, recorda Maria Luna Ribeiro, hoje com 96 anos, 71 depois de Otília Frayão fugir do Faial a bordo do iate de um dos mais famosos velejadores do mundo, o inglês Edward Allcard.
“Escondeu-se atrás de uns armazéns de pesca e esperou pelo momento para entrar no barco. Como lá de casa não levou nada, só pode ter ido deixar as coisas a bordo antes, porque ela não foi só com a roupa que tinha no corpo”, continua a descrever a amiga, que desde a primeira hora questionou a versão de Allcard que, face o escândalo, se apressou a dizer que tinha sido surpreendido já em alto mar e que a rapariga, então com 23 anos, tinha subido clandestinamente a bordo.
“Ela não apareceu lá de surpresa, foi tudo combinado. Tinham-se conhecido no [bar] Peter”, garante a faialense, única testemunha ainda viva da fuga que em 1951 chocou os Açores — e correu o mundo inteiro.
“Nunca me tinha dito que o conhecia. Só nesse dia é que veio ter comigo e disse-me que ia fugir: ‘Luna, vou-te contar uma coisa, não sei se vais aprovar ou não’. Ela era muito bonita, muitíssimo inteligente, escrevia poemas, queria ser atriz. Tinha tido namoro aqui no Faial com um rapaz que era diretor de alfândega, mas não resultou. Disse-lhe para ir: ‘Otília Maria, segue o teu caminho, tu aqui não te sentes feliz’. Foi uma aventura perigosa, mas conseguiu. Foi feliz, acabou por ser feliz”, resume a amiga, mais de sete décadas depois da fuga que durante anos permaneceu no imaginário dos faialenses — apesar do tabu imposto pela família e pelos jornais locais, que se escusaram a fazer alarde da situação.
Na altura, só o “Açores”, com sede em Ponta Delgada — e mesmo assim com algum atraso, a 9 de março de 1951 —, noticiou a fuga de Otília Frayão, “poetisa de extraordinária sensibilidade, que o gosto da aventura e o desejo irresistível de correr mundo levara a este passo romanesco e imprevisto”.
Já os meios de comunicação internacionais não deixaram escapar a história da jovem portuguesa que, na viragem para a segunda metade do século, inconformada com as limitações impostas por uma educação conservadora e pela vida na ilha pequena no meio do Atlântico, apanhou boleia com um aventureiro estrangeiro — como se não bastasse, 13 anos mais velho —, para nunca mais voltar.
Fuga para a fama: as entrevistas e as fotos nos media internacionais e a crónica de Camilo José Cela
Quando o Temptress, o veleiro em que Edward Allcard, então com 36 anos, estava prestes a completar a inédita façanha de cruzar o Atlântico Norte em solitário para lá e para cá, aportou em Casablanca, no dia 1 de fevereiro, havia dezenas de jornalistas à espera do par.
Otília Frayão, que queria ir para Inglaterra mas que, por força da tempestade que apanharam pelo caminho, acabou a desembarcar em Marrocos, estava devidamente penteada, vestida e maquilhada para as fotografias da praxe. Dias depois, chegou mesmo a posar para o semanário britânico The Sphere, com mudas de roupa diferentes e em várias situações, incluindo a descascar batatas na minúscula cozinha do veleiro de 10 metros.
Ao longo dos 24 dias de viagem, contaram Otília e Edward aos jornalistas — mais interessados em saber se o aventureiro solitário ia finalmente assentar e dar o nó com a passageira clandestina —, tinha sido a portuguesa, apesar dos enjoos, a tratar das refeições. E a ajudar a içar e baixar as velas e até a tomar conta do leme.
“Corria-lhe nas veias sangue dos antigos navegadores portugueses”, observaria Allcard dois anos depois em “Temptress Returns”, o livro que publicou sobre a sua travessia para o lado de cá do Atlântico e que o New York Times avaliou. “O Sr. Allcard não deve ficar desapontado se os seus leitores mostrarem mais interesse na sua passageira clandestina do que nas suas lutas contra os elementos. Não é reflexo do seu talento para contar histórias”, elogiou em janeiro de 1953 William McFee, igualmente inglês e também escritor de histórias de mar, naquele jornal.
Nessa altura, já se sabia que a fuga com a passageira clandestina que fazia lembrar a atriz Natalie Wood, como chegou a comparar alguma imprensa, não tinha acabado em casamento. Aliás, em fevereiro de 1951, o The Sphere já previa isso mesmo, apesar de “os relatos serem contraditórios”, com uns jornais a garantir que o casal ia diretamente para o altar e outros a assegurar o contrário. “Tenciono continuar a ser um navegador solitário”, citou o semanário britânico, depois de descrever a valorosa epopeia de Edward Cecil Allcard, desde o momento em que zarpou de Portsmouth, em 1948, ao dia de 1950 em que chegou ao Faial, ferido mas com uma travessia Gibraltar-Nova Iorque a solo no currículo.
“Foi um magnífico exemplo de navegação contra as intempéries. As suas aventuras incluíram ser arrastado por um vendaval, velejar sob um calor sufocante, e ser seguido por tubarões durante um longo período da viagem. No Outono de 1950, o Sr. Allcard iniciou a viagem de regresso através do Atlântico, e mais uma vez deparou-se com as condições meteorológicas mais adversas, tendo de aguentar uma costela fraturada antes de chegar aos Açores”, pode ler-se no artigo, publicado a 17 de fevereiro de 1951. “Lá, descansou e reparou o Temptress, e lá, a bela Otília Frayão, uma poetisa portuguesa com apetite por viagens, embarcou no iate aparentemente como clandestina.”
A história teve tal impacto que até o espanhol Camilo José Cela lhe dedicou uma crónica, na altura publicada no jornal de Cádiz La voz del Sur, um documento que a fundação que gere o espólio do autor conseguiu recuperar, a pedido do Observador. Em “Robinson e a sua Beatriz”, o escritor, Nobel da Literatura em 1989, resumiu com ironia o episódio da fuga da açoriana, que colou à inconformada e espirituosa personagem feminina de Shakespeare; já Allcard, o velejador solitário, recebeu traços do náufrago de Defoe.
“Esta pequena e verídica fábula do Robinson e da sua Beatriz poderá servir de consolo a várias das damas que estão, a passos de gigante, a caminho de ficar para tias”, escreveu o autor, no mesmo ano em que publicou “A Colmeia”, preferindo centrar o caso no hipotético romance que, se aconteceu, acabou por não durar. “O procedimento empregado pela senhorita Otília para caçar — ou, melhor, pescar — um noivo é arriscado, sem dúvida, mas, pelo que se vê, bastante eficaz.”
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No fim, não foi nada disso que aconteceu. Até hoje as opiniões dividem-se sobre a natureza da relação de Otília Frayão e Edward Allcard, mas, no livro que escreveu, o velejador garantiu ter-se comportado como um verdadeiro gentleman. E também assegurou que, até a ver surgir no convés do Temptress, várias horas depois de zarparem do porto da Horta, não sabia sequer da sua existência.
“Num país onde é contra a convenção social um homem levar uma rapariga, sem um pau de cabeleira, a um lugar tão público como o cinema — mesmo em plena luz do dia —, qual seria a reação a uma rapariga que cometeu o terrível pecado de ‘ficar sozinha com um homem’ e ‘à noite’?”, questionou no livro que escreveu, para logo a seguir dar a resposta. “Toda a sua vida estava na palma da minha mão. Não era altura para decisões precipitadas. Um cavalheiro não deve aproveitar-se de uma rapariga, nem um cavalheiro deve recusar qualquer pedido de uma senhora. Portanto, em rigor, não podia recusar levá-la para a Europa.”
“Raízes” é o poema mais famoso de Otília Frayão
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Oh! este desejo de partir
e não voltar.
Este receio de ficar
por não poder partir.
Esta brusca saudade
daquilo que existe lá longe
no meio, princípio e fim
dessas águas de sombra…
Este querer doloroso…
que salta, geme e se espalha
por coisas nunca vividas
que grita enlouquecido
a dor de não poder entrar
no porto que não quero ver.
Luz que não quero acender
e que em vão procuro apagar.
O papel de Allcard foi esse mesmo: transportar Otília para longe dos Açores; o resto dos sonhos da poetisa ela mesma haveria de concretizar. Ao Faial, só voltou três vezes em toda a vida e sempre de visita, a última em 1992, já com o marido, que conheceu em Inglaterra. Maria Luna Ribeiro lembra-se de uma noite, que passaram todos juntos, em festa, e do pedido que a amiga lhe fez: não é que Bill Hallam não soubesse de que forma tinha saído da ilha, só não queria que ninguém se alongasse em conversas com ele a esse respeito.
Apesar de, há 71 anos, se ter desdobrado em entrevistas e de ter chegado mesmo a vender o exclusivo da sua história a uma publicação internacional — a sua família e Victor Rui Dores, professor e escritor açoriano que em 1998 encenou uma peça na Horta sobre a fuga, garantem que foi a Paris Match a publicar a reportagem; contactada pelo Observador, a revista francesa não conseguiu encontrar quaisquer registos —, ao longo do resto da vida, Otília Frayão fez por deixar o episódio cair no esquecimento.
Tal como o irmão Mário, que desviava a conversa sempre que alguém tentava trazer o assunto à baila, recorda Victor Rui Dores, também Otília regressou à condição de anónima — como tinha sonhado, em Inglaterra, para onde acabou por se mudar, a convite de uma senhora, “especialista no tratamento de artrite e reumatismo através do veneno de abelha”, que lhe enviou um telegrama para Casablanca a oferecer-se para lhe pagar viagem e alojamento em Londres durante um ano.
Ainda assim, nos Açores e ao longo das décadas, a história, que primeiro se espalhou na Horta como um rastilho, foi sendo reproduzida em artigos pontuais como aquele que, em 2016, chegou às mãos da estudante espanhola Mar Navarro Llombart, acabada de aterrar em São Miguel para um estágio de seis meses numa produtora de televisão.
Ao telefone com o Observador, a partir de La Vall d’Uixó, a vila onde mora, a 50 km de Valência, Mar Navarro Llombart recorda como, na altura, ficou impressionada com a história, mas não se fez nenhum clique. Três anos mais tarde, quando uma amiga lhe enviou o mesmo texto, publicado em junho de 2011 na Agenda Cultural Faialense, voltou a ler e aí, sim, soube que tinha de recuperar Otília Frayão.
“Já tinha crescido como realizadora e já me tinha apaixonado pelos Açores e pelas suas histórias de vulcões e baleias — na terra de onde sou não há nada disso. Reparei que havia mais de 60 anos de história de uma vida que ninguém estava a contar. Comecei a pesquisar em novembro de 2019 e em março de 2020, mesmo antes de nos fecharmos por causa da pandemia, conheci-a. Dez meses depois faleceu”, conta a realizadora, que aponta para 2025 a data de estreia de “A Última Ilha”, o documentário em que está a trabalhar e que foi um dos projetos selecionados na última edição do CIMA Impulsa, programa espanhol de apoio a projetos audiovisuais desenvolvidos por mulheres que tem o apoio da Netflix e do Ministério da Cultura e do Desporto.
Em Espanha, onde Otília Frayão passou os últimos anos, ao cuidado da única filha, Melanie, Mar Navarro Llombart gravou duas entrevistas com a poetisa, que ao longo da vida continuou a escrever, em português, inglês e castelhano, mas nunca mais quis editar — “Pediu à filha que os poemas nunca fossem publicados”, já tinha contado ao Observador Maria Luna Ribeiro.
“Tinha 93 anos e estava num estado de saúde mau, tinha de ter muito cuidado para não a cansar. Durante anos, não quis falar disto ao público, não quis dar a conhecer a sua história, até a filha ficou surpreendida por ela ter querido falar comigo. Ainda não sei bem porquê, estou a tentar descobrir”, descreve a realizadora, num português irrepreensível e sem querer desvendar demasiado da história que está a começar a montar.
A infância e a adolescência reprimidas de uma poetisa que o pai impediu de estudar
Edward Allcard aportou na Horta a 28 de outubro de 1950, com uma costela partida e o Temptress a precisar de reparações. Entre esse dia e 8 de janeiro, a data que escolheu para finalmente iniciar a viagem de regresso a casa, o navegador solitário inglês — que era também arquiteto naval, topógrafo marinho e escritor — ter-se-á cruzado com Otília Maria Mesquita Frayão, jovem da sociedade faialense, frequentadora dos bailes da exclusiva Sociedade Amor da Pátria, onde só tinham entrada as mais nobres famílias da Horta, mas também do Peter Sports Cafe, já então poiso preferencial dos aventureiros errantes que aportavam na ilha.
Aos 23 anos, Otília já era considerada uma das mais prolixas poetisas da ilha — tinha 18 quando foi uma das premiadas nos Jogos Florais atribuídos numa cerimónia a que a Horta em peso assistiu, no salão dos Bombeiros Voluntários. Ainda assim, e ao contrário do irmão, um ano mais novo, não tinha sido autorizada pelo pai, conservador, a prosseguir os estudos para lá da 4ª classe.
“Quando eu andava no liceu não havia aeroporto no Faial e o barco só vinha de 15 em 15 dias, na altura dela era ainda pior”, contextualiza Ilda Frayão Goulart, sobrinha de Otília, hoje com 67 anos. “O meu avô não a deixou ir para a secundária, porque era rapariga. Na altura, no Faial, só era possível estudar até ao 6º ano, a partir daí era preciso ir para São Miguel ou para a Terceira. O meu pai tirou o 5º e quando o meu avô morreu teve logo de começar a trabalhar. Estudou já adulto, anos depois.”
Uma de quatro filhos de um funcionário da companhia telegráfica inglesa — na altura, uma das várias empresas internacionais estabelecidas na Horta, então um dos maiores centros de comunicação do mundo — e de uma doméstica, Otília Frayão cresceu numa família nobre, que vivia num solar na Rua D. Pedro IV, mesmo em frente ao Amor da Pátria, mas não tinha grandes posses.
“Tinham posição, mas não tinham muito dinheiro. Ao fim de semana costumávamos ir de táxi tomar banho a outras zonas e a Otília vinha sempre connosco. Como sabíamos que não podia pagar, pagávamos nós, o meu pai na altura ganhava muito bem”, recorda Maria Luna Ribeiro, cujo pai era banqueiro, fundador do Banco do Faial.
Aos 23 anos, órfã de pai desde os 20, Otília sentia-se encurralada na ilha, demasiado pequena para todas as suas ambições. “Falava inglês com as amigas, mulheres dos cabografistas; e costumava jogar ténis com elas, com um saiote abaixo do joelho, o que era uma vergonha. Depilava-se, coisa que ninguém fazia na altura. E fumava! Mais: com 23 anos não só fumava como andava de calças e de sapatos rasos, mas sempre muito feminina”, começa por descrever Victor Rui Dores, que não testemunhou o episódio — só nasceria 7 anos mais tarde —, mas sempre se interessou pela história e pela poesia da faialense.
“O Pedro da Silveira e o Rui Galvão de Carvalho antologiaram os poemas dela, da adolescência. Com 23 anos escrevia uma poesia simbolista, não era nada comum, as meninas naquela altura escreviam sonetos e coisas pindéricas”, analisa o professor. “Esta mulher é a primeira açoriana a viver nos Açores a escrever poesia livre, sem rima — isto porque a Natália Correia não conta, foi muito cedo para Lisboa.”
Para Otília Frayão, acredita Victor Rui Dores, a capital do país não seria suficiente. “Teve uma infância e uma adolescência burguesa, mas muito reprimida. Mas devido às influências estrangeiras e também às leituras que fazia, estava muito à frente do seu tempo. A Horta sempre foi uma cidade de porto. Quando vinham os navios estrangeiros, ela gostava de ir para o cais conversar com os velejadores.”
Em janeiro de 1951, quando a oportunidade se lhe apresentou, Otília não hesitou e fugiu. “Em termos sociais, foi uma bomba na cidade, era uma desonra para uma rapariga”, diz ao Observador a sobrinha Ilda, filha de Mário, que na altura ainda ajudou a disfarçar a fuga da irmã um ano mais velha.
“Eram muito amigos e ele percebeu o desespero dela. Foi o meu pai que teve de dar a notícia à minha avó. Encobriu o que pôde, era preciso dar-lhes bastante tempo para fugirem e não serem apanhados pela Marinha. Foi dado um alerta e ainda foram atrás dela mas acabaram por não conseguir apanhá-los”, reconta aquilo que ouviu contar ao pai, falecido a 4 outubro de 2020, um dia antes de completar 92 anos. Otília Maria, um ano mais velha, não lhe sobreviveu muito tempo: morreu a 27 de dezembro desse mesmo ano, aos 93.
Ao contrário do boato que entretanto se espalhou pelo Faial, garante Ilda, o pai e a tia nunca cortaram relações — tanto assim é que, em 2017, Mário Mesquita Frayão foi um dos membros da família presentes na festa do nonagésimo aniversário de Otília.
Na altura, a poetisa já vivia com a filha e não na casa do século XVII para onde se mudou em 1996, depois de o marido se reformar. Até ele morrer, em 2014, 39 dias antes de completar 90 anos, foi lá que viveram, numa aldeia perto de Berdún, na comunidade autónoma espanhola de Aragão, que ficava a 17 quilómetros da terra mais próxima e onde eram os únicos habitantes.
Da Horta para Inglaterra. E Índia, Nigéria e País Basco (no tempo da ETA)
Com Derek William Faraday Hallam, educado num colégio interno e filho de um sir, colaborador próximo de Churchill durante a Segunda Grande Guerra, Otília Frayão acabou por viver uma vida com que nem sequer tinha sonhado.
Casaram a 13 de junho de 1957, em Londres, tinha ela 30 e ele 33 anos. A seguir, mudaram-se para Calcutá, na Índia, onde Bill, que já tinha sido o diretor comercial da Dunlop para o mercado árabe, fora entretanto colocado. De lá, alguns anos e uma promoção mais tarde, fixaram-se em Lagos, na Nigéria, já o marido de Otília era o diretor-geral da empresa para a África Ocidental. Após uma passagem por Londres, acabaram, em 1964, por assentar finalmente em Bilbao, cidade a partir da qual Bill Hallam geriu os destinos do mercado ibérico da multinacional do ramo dos pneus durante 15 anos.
Foi lá que viveram os momentos mais felizes e também os mais assustadores dos quase 57 anos que passaram juntos: Melanie, a única filha do casal, nasceu em Bilbao em 1965; catorze anos depois, foi na fábrica da Dunlop na capital do País Basco que o marido de Otília passou vários dias sequestrado por membros de um sindicato de trabalhadores próximo da ETA.
O episódio foi contado no obituário de William Hallam, publicado no anuário do Wadham College, da Universidade de Oxford, onde se licenciou em Estudos Clássicos, já depois de ter servido como segundo tenente na II Guerra: assim que foi libertado, com a incumbência de regressar em poucas horas, com uma avultada soma em dinheiro, correu para casa, agarrou em Otília e Melanie e trataram de fugir, num carro emprestado, para que os terroristas não os pudessem detetar.
Deixaram tudo para trás e voltaram para Inglaterra. Com a venda da Dunlop, pouco tempo mais tarde, William acabou por se reformar antecipadamente, aos 56 anos. Já Otília Frayão, que segundo Luna Ribeiro e Ilda Goulart chegou a ter alguns trabalhos, “porque não queria estar dependente de ninguém”, mas nunca teve emprego conhecido, continuou a escrever.
Foi nessa altura, em 1983, que a sobrinha de Otília, professora de inglês entretanto aposentada, os visitou em Windsor. “Fui a um curso em Leeds e passei dois dias com eles. Viviam muito bem, tinham uma casa muito boa, de estilo vitoriano, o rio passava no jardim. A minha prima estudou lá, num colégio interno, mas depois cresceu e quis voltar para Espanha. E eles acabaram por se mudar para lá também, porque queriam estar com os netos”, conta ao Observador.
Até ficar viúva e nos seis anos que sobreviveu ao marido, Otília Frayão permaneceu em Espanha e esteve sempre próxima de Melanie, e dos dois netos, Thomas e Rosana. Antes disso, já tinha percebido que estava também a escassas dezenas de quilómetros de Edward Allcard que depois de anos a velejar à volta do mundo, primeiro sozinho, depois com a mulher, Clare, 26 anos mais nova, e Katy, a filha de ambos, tinha finalmente decidido voltar a terra firme e estava a morar em Andorra. Chegaram a encontrar-se em 2009, tinha ele 95 anos. Quando o célebre navegador morreu, em 2017, aos 102 anos, o nome dela apareceu em todos os obituários que se escreveram. Dentro de pouco tempo, quando “A Última Ilha” estrear, será a história dela a tornar-se conhecida para lá dos Açores, onde nunca quis ficar.