A Pordata não nos diz quantas vidas foram salvas pela música, mas já todos pressentimos essa estatística nos ouvidos. Somos milhões. Há quem jure gratidão eterna a um artista, ao corpo da sua obra como se tivesse sido abraçado até adormecer por uma colecção de discos. Exagero, ronha, que dramatismo!, dirá quem não precisou desse abraço. É o ressonar dos ingratos.
Há também quem destaque um disco entre os demais, do Revolver ao Pet Sounds, passando por Enter The Wu Tang (36 Chambers) ou Is This It. Apresentá-lo-ão de régua, esquadro e compasso como a perfeita intersecção entre o seu caminho sinuoso e o do compositor. Finalmente, há quem resuma tudo a uma canção ou ao local onde a ouviu, um serendipismo a que os astros acudiram em nosso auxílio.
“Walk on Water”, a primeira canção de Revival, o novo disco de Eminem, é uma dessas canções que salvam vidas. É, à falta de melhor termo, uma canção perfeita. Não sei se é da voz de Beyoncé — a Alemanha de Beckenbauer das vozes celestiais — se é das notas de piano que lhe dão a mão, ou talvez seja da produção imaculada de Rick Rubin que junta ao piano o esquisso de versos a serem escritos numa folha de papel, mas será seguramente dos versos de Eminem, que num trapézio emocional sem rede nem beat, só ele e as palavras, como sempre, nos explica como é ser-se Marshall Bruce Mathers III, Slim Shady, Eminem, enfim, o Rap God:
Now take your best rhyme, outdo it, now do it a thousand times
Now let ’em tell ya the world no longer cares or gives a fuck about your rhymes
And as I grow outta site, outta mind, I might go outta mine
‘Cause how do I ever let this mic go without a fight
When I made a fuckin’ tightrope outta twine?
But when I do fall from these heights though, I’ll be fine
I won’t pout or cry or spiral down or whine
But I’ll decide if it’s my final bow this time around, ’cause —
I walk on water
But I ain’t no Jesus
I walk on water
But only when it freezes
“Walk on Water” é uma das melhores coisas que Eminem já escreveu, e a lista de bons versos da autoria do senhor é quase interminável. É a “Stan” deste disco, sendo que não houve mais nenhuma “Stan” desde então. Quanto mais Eminem duvida da crença dos fãs no seu talento, mais se aproxima da resposta. No final, arrisco dizer, estamos todos com ele.
A dúvida do génio persiste em “Believe”, faixa seguinte, em que Eminem nos explica que é um boneco de neve erguido do chão, metáfora do rapper branco nascido, criado e só mais tarde respeitado numa Detroit que sempre cobrou consumo mínimo a rappers brancos. Valeu o esforço, para ele e para o ouvinte:
Man, I know sometimes
These thoughts can be harsh and cold as ice
To me they’re just ink blots
I just fling ’em like slingshots and so precise
So you might wanna think it over twice
When you retards can roll the dice
But beef will at least cost you your career
‘Cause even my cheap shots are overpriced
But this middle finger’s free as a bird
(…)
I was there consolin’ you when no one knew it
When your situation showed no improvement
I was that door, you walked over to it
I’m the light at the end of tunnel
So people are always lookin’ at me as they’re goin’ through it
When that tunnel vision is unclear
Shit becomes too much to bear
https://www.youtube.com/watch?v=iAj3ckTgP3U
Revival seria uma só droga se Eminem fosse a tal droga. E se é verdade que a elasticidade musical do disco consegue ser um dos seus maiores méritos, também nos revela por vezes um Eminem caído na tentação de agradar a todos, uma antítese do Slim Shady que não parecia querer agradar a ninguém e nos tornou a todos fãs justamente por isso. Mas até o pior de Eminem é superior ao da maioria e isso é tanto mais verdade quanto mais ouvirmos alguns dos rappers surgidos nos últimos anos, indivíduos que juntam sílabas para o mais inglório dos esforços: dizer coisa nenhuma. Eminem dá-se ao trabalho de explicar em “Chloraseptic”:
And I’ll take a hundred of you, hundred of you
All at once like I had nothin’ to lose, what can I do?
My appetite for destruction is loose, destruction is loose
And all it wants is to have somethin’ to chew
Somethin’ to chew, somethin’ to chew
Yeah, uh, and still conjoined at
The hip with hop, still on point and poignant
Skilled as Floyd is
In this field, and still no filter, boy
I’ll put you in your place (yeah) like a realtor, boy
You still ain’t in the building, boy
https://www.youtube.com/watch?v=iidPB2WdjYA
“Tomem Strepfen que isso passa”, diz Eminem à nova geração. Num mundo de Lil Pumps e beats defenestrados pela falta de talento, há quem ainda cuide do rap como se fosse uma arte. É uma benção e uma maldição (Eminem explica ao longo do disco). E promete fazer bem ao ouvinte, ou não tivesse o novo disco sido promovido através de uma campanha de marketing que o apresentou na internet e nas ruas de Manhattan como um promissor fármaco. “Relapse, Recovery, Revival”. A história recente de Eminem é isso mesmo: uma sucessão de avanços e recuos pessoais. O artista juntou-os todos na misturadora de Rick Rubin e voltou a fazer progredir o género.
Logo a seguir vem “Untouchable”, um hino tremendo à injustiça racial, só comparável aos melhores momentos de 4:44, um disco injustamente avaliado por baixo há uns meses aqui no Observador. Mas dizia, “Untouchable”, versos do caraças, Eminem a apontar os seus versos como quem aponta uma arma, não há cá rodriguinhos, só a crueza de uma narrativa demasiado comum na comunidade afro-americana, mas bom, ponham os phones que soa ainda melhor:
[Intro]
Hands up, officer don’t shoot
Then pull your pants up, promise you won’t loot
We may never understand each other, it’s no use
We ain’t ever gonna grasp what each other goes through
[Verse 1]
Black boy, black boy, we ain’t gonna lie to you
Black boy, black boy, we don’t like the sight of you
Pull up on the side of you
Window rolled down, ‘profile’
Then we wonder why we see this side of you
Probably comin’ from the dope house
We could let you slide but your tail light is blew, out
We know you’re hidin’ that Heidi Klum
On you another drug charge, homie, it’s back inside for you
And just in case a chase might ensue, we got that tried and true
Pistol drew right at you, we’d be delighted to unload it
In your back, then walk up and lay that taser on the side of you
Fucked up, but what the fuck am I to do?
I keep tellin’ myself, keep doin’ like you’re doin’
No matter how many lives you ruin
It’s for the red, white and blue
Time to go find a new one and split his head right in two
No one’s ever indicted you
Why? ‘Cause you’re a…
‘Cause you’re a white boy. Eminem não ignorou a América do racismo ou de Trump e Untouchable complementa violentamente o freestyle nos BET Awards:
In a country that claims that its foundation was based on United States ideals
That had its Natives killed
Got you singin’ this star-spangled spiel
To a piece of cloth that represents the “Land of the Free” that made people slaves to build
Revival nunca se desvia muito do tema estruturante da vida e obra de um homem que, aos 45 anos, continua a querer demonstrar-nos que é o melhor rapper do mundo. Falando do ouvinte, podemos dizer que os últimos anos foram uma espécie de descriminalização das drogas. A maioria de nós aderiu ao consumo recreativo. Outros — tantos — esticaram o paralelismo e são agora pacientes auto-medicados na farmácia Spotify, aberta 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Há terapêuticas para todos os gostos e o ouvido entrega-se à libertinagem. A música cura todas as maleitas, até mesmo algumas de que não sofremos. No processo, terá ganho lastro um fenómeno a que os marketeers chamam cross-selling. É simples. Se gostou de disco assim, vai gostar de livro assado. Quem viu esse produto também viu aquele. Se gostou de Eminem, então leve um quilinho de Ed Sheeran, e de repente dou por mim a ouvir uma canção do compositor irlandês que por acaso tem uns versos de Eminem.
OK, um gajo tem de pagar as contas e a verdade é que há aqui vários ímpetos de rap para grandes arenas. Ed Sheehan, Alicia Keys, X Ambassadors, Pink, e a já indispensável Skylar Grey, presente em quatro canções, todas elas orelhudas. Parece estranho quando se fala de um rapper tão dotado tecnicamente, mas a compositora norte-americana, que em 2010 co-escreveu “Love The Way you Lie”, está para Eminem como Max Martin para Taylor Swift ou Jack Antonoff para Lorde. E se não quiserem ouvir tantas canções num disco de Eminem, têm bom remédio: há malhas suficientes para nos fazer esquecer isso. “Remind Me” é a salvação do frat boy rap. Onde “Heat” aquece, “Offended” incendeia com um novo recorde de Eminem: 6.7 palavras por segundo no final do terceiro andamento de uma malha absolutamente gloriosa.
Lá está. Eminem bem avisara que este disco tinha um bocadinho para todos. Caramba, até versos por cima de uma canção dos Cranberries. Querem maior hino ao pluralismo? Nem os Cranberries se lembravam dos Cranberries. E pensar que quase o perdemos para a maldita droga, a verdadeira, como o próprio nos conta em “Arose”, última faixa do disco.
Num universo rap em que abundam os catálogos de canções e versos balbuciados, Revival passa com distinção. Tem inúmeras malhas e canções que deveriam ser editadas por uma Pfizer, pela Bayer, quiçá uns Laboratórios Azevedos. É esse o facto mais importante deste disco: Eminem voltou para impor a lei, pôr os pontos nos is, em suma, salvar algumas vidas. Basta ao ouvinte ler a bula e dosear consoante o ouvido. Eu não ouço outra coisa há quatro dias.
É verdade que ter tanta música na ponta dos dedos nos tornou mais ansiosos e sôfregos, um nadinha mais sumaríssimos e um bocado mais obtusos no exercício da crítica. Ouvimos com muito menos atenção e por isso talvez passe ao lado de alguns que a dedicação e o talento de Eminem não diminuíram um único decibel.
Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj