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[Este é o segundo de três artigos sobre contradições, equívocos e perversões no mundo do ensino superior e da investigação – o primeiro pode ser lido aqui]
O que fazer com estes doutores?
Após viverem num ambiente almofadado durante (no mínimo) 15 anos, os jovens sofrem um choque violento quando, munidos de um diploma indistinguível de milhares de outros, são lançados no mundo real e são confrontados com competição implacável, empregadores em posição para impor condições “leoninas” e um preço da habitação que desincentiva fortemente (indefinidamente?) a saída da casa dos pais e o início de uma vida independente. Por esta altura, até os mais distraídos já perceberam que a “democratização” do ensino superior fez com que, hoje, o diploma de “licenciatura” (o antigo “bacharelato” após sofrer uma promoção lexical, na sequência do Processo de Bolonha) não abra mais portas no mercado de emprego do que o certificado de conclusão do 12.º ano.
O meio exterior hostil convida o aluno a permanecer dentro da placenta académica e prosseguir os estudos – assim, até quem possui escassa vocação para estudar, avança para o mestrado e mesmo para o doutoramento, a bem das finanças das escolas superiores, que estão sujeitas a um tecto nas propinas das licenciaturas, mas podem cobrar bem mais por mestrados e doutoramentos.
A “paixão pela educação” celebremente proclamada por António Guterres, na campanha para as eleições legislativas de 1995, parece ter, quase 30 anos depois, contagiado os portugueses, a dar crédito aos dados que mostram que, no ano lectivo de 2021/22, 27% dos matriculados no ensino superior estavam em mestrados e 6% em doutoramentos, quando as médias da OCDE são, respectivamente, de 16% e 2%. Enquanto em 1970, apenas foram concluídos em Portugal 60 doutoramentos, na terceira década do século XXI as instituições de ensino produzem anualmente 2000 a 3000 novos doutorados.
Se 60 doutorados/ano era um sintoma de um país atrasado e tacanho, serão 3000 doutorados/ano um sinal de um país pujante, inovador e moderno? As empresas parecem não “comprar” a segunda hipótese, uma vez que têm mostrado reduzido interesse na contratação de doutorados e em alinhar nas Bolsas de Doutoramento em Empresas (apenas 2% do total de bolsas) e nos Programas de Doutoramento em Ambiente Empresarial (apenas 7% do total de bolsas). Os incentivos do Estado para a formação e contratação de doutorados em meio extra-académico têm contribuído para aumentar o número de doutorados empregados em empresas – representavam, em 2015, 5% do total e subiram para 8% em 2020 – mas em Portugal este indicador continua muito abaixo da média da OCDE.
Porque prescindirão as empresas desta mão-de-obra altamente qualificada? Talvez porque o seu ramo de actividade nada tenha a ver com as especializações dos doutorados – serão raras as empresas com interesse em doutorados em Humanidades e Ciências Sociais e estes representam cerca de 40% do total e têm mostrado tendência para aumentar a sua proporção. Mas mesmo nas áreas científicas mais “práticas”, o doutoramento afunila frequentemente por uma especialização tal que dificilmente encontrará aplicação “prática” no mercado de emprego extra-académico – será razoável que alguém escolha doutorar-se em Geologia Lunar e depois se abespinhe por o Estado português não lhe providenciar saídas profissionais? (o episódio é verídico: teve lugar nos “anos da troyka” e a doutorada em questão deu largas à sua indignação nas páginas de um jornal de referência).
Poderia pensar-se que os doutorados, perante o desinteresse das empresas e estando munidos de um formidável cabedal de conhecimento, iriam lançar-se eles mesmos como empresários, de forma a concretizar as suas ideias e ambições – porém, em 2020 apenas 6% tiveram tal iniciativa (ainda assim, um apreciável progresso face a 2012, em que apenas 1% o fizeram). Em Portugal, os doutorados estão, portanto, maioritariamente empregados no ensino superior (77%) e no Estado (13%, dados de 2020). Os que estão no ensino superior dão aulas e fazem investigação; resta saber se o Estado é capaz de converter os doutorados que emprega numa efectiva mais-valia ou se se limita a esperar que façam o mesmo trabalho que qualquer licenciado seria capaz de fazer.
O monopólio da certificação
Apesar das queixas recorrentes (e, provavelmente, fundamentadas) dos estabelecimentos de ensino superior em termos de financiamento estatal – cuja insuficiência tem contribuído para a precarização e proletarização da profissão de professor universitário (ver capítulo “A universidade-empresa, o estudante-consumidor e o conúbio entre ciência e cupidez” em Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais) – a academia ocupa hoje uma posição de poder na sociedade portuguesa.
A antiga reverência dispensada pelo cidadão comum a “senhores doutores” e “senhores engenheiros” dilui-se com a massificação do ensino superior, mas o Estado tem vindo a zelar pela valorização das “habilitações académicas”, ao estabelecer cada vez mais barreiras em termos de carreiras e vencimentos a quem não possua determinados graus académicos, por mais experiência profissional e competência que possa demonstrar – alguns concursos públicos para cargos de direcção já exigem doutoramento.
A pós-graduação, que, em tempos, apenas dizia respeito aos estudantes mais destacados e que abraçavam a carreira académica, passou a atrair candidatos com variadas origens, profissões e motivações. Na nova vaga de mestrandos e doutorandos que regressam ao ensino superior após muitos anos de interregno, poucos são movidos por uma genuína paixão pelo saber ou evidenciaram, na sua primeira passagem pela universidade, o mais remoto interesse pelas matérias leccionadas, limitando-se a encarar a licenciatura como uma corveia a despachar com o mínimo de esforço e empenho. O que buscam neste “regresso à escola” são as vantagens financeiras e o prestígio social que as pós-graduações podem proporcionar no Portugal do século XXI.
No universo da administração pública, há os que investem nas pós-graduações por verem nelas uma vantagem competitiva na progressão na carreira e por o Estado-patrão lhes atribuir o estatuto de “trabalhador estudante”, que proporciona facilidades em termos de horários de trabalho.
No mundo da política, há o caso dos que abandonaram os estudos precocemente quando ingressaram numa juventude partidária e, chegados à meia-idade, embora sejam figuras públicas e façam parte dos “notáveis” do partido, se sentem embaraçados pelo seu modesto curriculum académico (sobretudo ao verem-se rodeados de “miúdos” e “miúdas” com sonantes títulos académicos) e vão concluir a licenciatura que deixaram a meio ou adicionar-lhe um mestrado ou um doutoramento. O regresso ao ensino superior de José Sócrates (“um investimento em educação”, segundo o próprio) e de Miguel Relvas (perfeitamente natural em alguém que tem “norteado a vida pela simplicidade da procura do conhecimento permanente”) foram apenas duas facetas mais notórias de uma corrida dos políticos de meia-idade ao título académico.
A notoriedade granjeada pelas aventuras académicas de Sócrates e Relvas decorreu, infortunadamente, não do brilhantismo das suas prestações ou da dilatação das fronteiras do conhecimento que lograram, mas das “facilidades” de que terão usufruído e dos subterfúgios a que terão recorrido na obtenção dos diplomas. Boa parte da comoção pública em torno destes dois casos centrou-se no (alegado) favorecimento de que Sócrates e Relvas terão gozado em resultado do seu estatuto político e, infelizmente, a ocasião não foi aproveitada para se lançar uma investigação ao laxismo generalizado na concessão de graus académicos – esta iria, muito provavelmente, revelar que não é preciso ter sido governante ou deputado para obter aprovação a cadeiras mediante a apresentação de uma singela redacção de uma página ou ser contemplado com generosas equivalências com base na “experiência de vida” (conceito tão lato que pode incluir a presidência da assembleia geral de um rancho folclórico) e que há muitas escolas superiores a conferir graus a quem se limita a pagar as propinas e cumprir algumas formalidades académicas.
Ao mesmo tempo, na Assembleia da República e no Governo, tem vindo a aumentar apreciavelmente o peso dos professores universitários – na sua esmagadora maioria, da área das humanidades e ciências sociais –, desafiando o tradicional predomínio de advogados e juristas. A densificação das conexões entre os estratos superiores da academia e da governação nada tem de censurável em si mesma, mas ganha contornos preocupantes quando se instala uma porta giratória entre um determinado partido político e uma determinada instituição de ensino, como será (alegadamente) o caso do Partido Socialista e do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresas, conhecido, nalguns meios como “a madraça do PS” (ver ISCTE: O braço universitário do Partido Socialista).
Seja pela influência da academia nas esferas do poder político, seja por outras razões, a verdade é que a academia tem vindo a alargar e consolidar a sua posição como certificadora exclusiva de competências e aptidões intelectuais e já é difícil entrar ou singrar em certos domínios sem o seu carimbo, por mais qualidades, conhecimento e experiência que possam invocar-se.
A pós-graduação como “projecto de desenvolvimento pessoal”
Cabe ainda mencionar, no “mercado” dos mestrados e doutoramentos, um segmento de “clientes” que era inexistente há 30 ou 40 anos e hoje tem peso crescente: o de quem tem um emprego estável, bem remunerado, pouco exigente e muito frustrante (isto é, um “trabalho de treta”: ver Maus trabalhos: O que são, de onde vêm e que consequências têm?) e, na meia-idade, é assaltado pelo enfado existencial e busca algo que compense uma profissão votada à execução de anódinas tarefas burocráticas de utilidade questionável e dê sentido à vida.
Esta sensação de incompletude e desorientação encontra frequentemente escape na adesão às “espiritualidades” (derivadas das crenças e práticas New Age dos 70s), ao veganismo, à agricultura biodinâmica, à causa animalista, ao sexo tântrico ou ao feng shui; noutros casos, assume a forma de um hobby; noutros ainda, resulta, infortunadamente, na inscrição de um curso de pós-graduação.
Em tempos, muitos encontraram nos hobbies a resposta para esta sensação de vazio interior ou insatisfação e poderia esperar-se que a Internet, com os seus fóruns e grupos de discussão, viesse reforçar o número e a dedicação dos “especialistas amadores” em aeromodelismo, aquariofilia, paleontologia, polifonia flamenga, ornitologia, numismática, ikebana, astronomia, malacologia, pop-rock tailandês, bibliofilia ou trainspotting.
A origem do termo “amador” está no latim “amator” = “aquele que ama” e começou por designar alguém que se consagra a uma actividade não para dela retirar benefícios materiais mas pelo fascínio que ela lhe suscita e pelo prazer emocional que lhe proporciona. Embora o termo “amador” tenha ganho uma conotação pejorativa, de incompetência, desleixo, incipiência e falta de rigor e qualidade, sempre houve, em todas as épocas, amadores (ou cultivadores de hobbies) que, pela sua paixão, empenho e qualidades intelectuais, acumularam, na sua área de interesse, uma invejável erudição, por vezes não inferior à dos profissionais desse ramo.
Porém, o mundo moderno tem vindo a tornar-se avesso a actividades “improdutivas” e a outsiders e tornou-se obcecado com a quantificação (que alguns autores anglófonos designam como “metrics mania”) e com a certificação formal de toda e qualquer actividade e competência por instâncias idóneas. Quem se embrenhe, por conta própria e para seu deleite, na audição e análise dos madrigais de Adrian Willaert, Orlando di Lasso, Philippe de Monte, Carlo Gesualdo, Sigismondo d’India e Luca Marenzio e gaste longas horas a discutir diferentes interpretações com outros aficionados será tendencialmente visto como excêntrico e ocioso. O mesmo acontecerá ao amador embevecido com a arquitectura grega clássica, a cartografia quinhentista, a poesia modernista latino-americana ou as escolas de construção da guitarra portuguesa. Porém, quem, sem ser movido por paixão, nem sequer por um genuíno interesse, decida, subitamente, fazer um doutoramento sobre qualquer um destes assuntos (ou outros mais recônditos) é de imediato promovido pela respectiva instituição de ensino superior ao estatuto de “investigador” e passa a ser visto pela sociedade como alguém que desempenha uma função produtiva – e logo uma das mais nobres, a de desbravar as fronteiras da ciência – mesmo que a sua “investigação” se revele persistentemente estéril.
Estes “investigadores” são usualmente destituídos de curiosidade inata, capacidade analítica e inclinação para a escrita ensaística e, antes de serem possuídos pela “febre do doutoramento”, nunca se interessaram pelo tema que escolheram para a tese, nem vão voltar a interessar-se por ele ou a desenvolver qualquer trabalho de investigação e reflexão análogo uma vez obtido o “PhD”. A “tese” é apenas um passatempo criado para colmatar um vago vazio existencial.
Ao acolher este tipo de mestrandos e doutorandos, a universidade desempenha, nalguns casos, um papel análogo ao da “vanity press”, isto é, das editoras que providenciam a publicação de um livro a quem quer que esteja disposto a pagar por isso. A “vanity press” acolhe “escritores” movidos pela descabelada ideia de que “todos têm um livro dentro de si” e pela vaidade de ter o nome na capa de um livro, mas que foram rejeitados (ou antevêem serem rejeitados) pelas editoras “convencionais”. Para estes “autores”, ser publicado serve sobretudo para afirmar a pertença a uma elite intelectual e criativa e sugerir que o autor é um espírito sofisticado, que se ocupa de assuntos que pairam muito acima dos comezinhos afazeres dos comuns mortais.
Nalguns círculos da classe média-alta, estar “a trabalhar na tese” projecta uma imagem similar – num mundo onde sobram os licenciados e os mestres, o doutoramento passou a ser a real prova das “gens de qualité”. A maior parte das teses que tem o “desenvolvimento pessoal” como móbil incide nas áreas das Humanidades e Ciências Sociais, por duas razões principais: 1) O trabalho de investigação não requer meios materiais dispendiosos como laboratórios, equipamento científico, reagentes e saídas de campo e resolve-se com visitas a arquivos e bibliotecas; 2) A natureza mais nebulosa e subjectiva destas área de conhecimento requer menor investimento de tempo do doutorando e autoriza que a tese contenha divagações incongruências, falácias, desvarios, necedades e raciocínios ociosos que são interditos às teses na área da física dos materiais, da oceanografia, da bioquímica, da gastroenterologia ou da engenharia aeroespacial.
Iniciação ao Círculo dos Eleitos
Em geral, a “investigação” no âmbito das pós-graduações “por razões de desenvolvimento pessoal” não pretende descobrir nada e muito menos desencadear rupturas, apenas produzir um discurso circular e altissonante sobre uma determinada área de conhecimento, que prove que o doutorando está a par da bibliografia canónica nessa área e aceita os seus dogmas (ainda que não seja necessário que os tenha compreendido e, muito menos, que concorde com eles) e se submete à autoridade da academia.
A “defesa da tese” é, em muitas universidades, um momento pleno de solenidade, cujos caducos ritos e protocolos, que enfatizam o respeito devido à hierarquia académica, fazem lembrar a iniciação numa loja maçónica. Quanto às conclusões da tese, desde que não colidam com os ensinamentos dos mestres canónicos, tanto podem defender uma posição como a sua contrária (se se usar uma linguagem hermética, poucos serão capazes de distinguir uma de outra). O que é fundamental é que a bibliografia seja farfalhuda e seja suplementada por grande profusão de notas, tabelas e anexos (comprovando que o doutorando é minucioso e aplicado) e que a tese seja redigida na “langue de bois” académica – pomposa, impessoal, pastosa e deselegante, mas que emana uma autoridade pseudocientífica que disfarça a banalidade das ideias e a debilidade dos raciocínios. Desde que a bibliografia da tese seja apresentada de acordo com as convenções vigentes, a lista de figuras e quadros não tenha erros de numeração e, sobretudo, que o orientador da tese tenha puxado os cordelinhos para assegurar que o júri se paute pela mansidão, torpor intelectual ou conivência, a aprovação magna cum laude está assegurada. Todo o procedimento está tão padronizado e asseptizado que é raro que uma tese seja reprovada pelo júri – aliás, quando tal acontece gera-se burburinho no meio académico e até pode chegar às páginas dos jornais – o que torna intrigante o estado de ansiedade que toma conta dos doutorandos à medida que a data da defesa da tese se aproxima. Em geral, não há motivo para apreensão e só corre riscos o doutorando que, ingenuamente, creia que “investigar” implica mesmo questionar e, em vez de citar reverencialmente as “sagradas escrituras”, as ignore ou (sacrilégio!) aponte as suas falhas e insuficiências, e tente produzir pensamento próprio.
Quando o doutoramento tem por principal motivação o “desenvolvimento pessoal”, é frequente que o doutorando converta as provas num evento social, convidando familiares e amigos para assistir presencialmente, fazendo filmar a sessão e colocando na Internet o vídeo que testemunha a sua admissão no Círculo dos Eleitos.
A certificação do artista
O fenómeno mais difícil de compreender na presente voga das pós-graduações é a adesão que tem tido pela parte de artistas e criadores. Em tempos não muito distantes, a prova do valor de um artista consistia exclusivamente nas suas obras ou, no caso das artes performativas, nas suas actuações públicas (concertos, representações, etc.). Porém, também aqui a academia conquistou espaço e poder e convenceu os artistas de que, para serem levados a sério, têm de mostrar ser capazes de produzir discursos formais sobre a sua arte, de preferência embrulhados em filosofias impenetráveis.
As artes plásticas foram a primeira área onde o “fazer” deu lugar ao “falar” e onde as escolas deixaram de ensinar técnicas e passaram a centrar-se na retórica falaciosa, no name-dropping, nas estratégias de autopromoção e na veneração dos textos sagrados do pós-estruturalismo (ver capítulo “Savoir faire vs. Personal branding” em Arte contemporânea: Prestígio ou capitalismo de casino?). Paulatinamente, a tendência foi alastrando a todos os domínio da arte; até o ensino da música, embora continue a requerer aos alunos a laboriosa aprendizagem das teorias, regras e técnicas tradicionais, começou a ser invadida pela tagarelice académica, levando a que, há umas semanas, na Antena 2, o pianista Artur Pizarro lamentasse que muitos dos jovens instrumentistas clássicos de hoje andassem ainda enredados a redigir teses de pós-graduação numa idade em que deveriam estar a praticar, a actuar, a participar em concursos e a lançar os alicerces da sua carreira de concertistas.
Numa época em que a democratização do acesso à informação (talvez a maior das bênçãos que a Internet trouxe ao mundo), tornou infinitamente mais fácil e profícuo o autodidactismo, o “aprender fazendo” (“learning on the go”) e a descoberta de uma “voz” individual, a academia conseguiu a proeza de tornar os aspirantes a artistas mais dependentes dela do que nunca, mantendo-os infantilizados e comprometidos com trabalhos, teses, provas e formalidades burocráticas pela vida adulta dentro.
Mais incompreensível ainda é ver músicos já consagrados, com absoluto domínio do seu instrumento, discografia de apreciável extensão e reconhecimento público, regressarem à escola para fazerem mestrados e doutoramentos – a academia conseguiu impor a perversa ideia de que mesmo um artista que já nada tem a provar ao público, à crítica e aos seus pares, só ficará “completo” se for certificado por um júri de borla e capelo.
E ainda é mais estranho que esta necessidade de certificação académica brote em músicos de jazz, um género musical que privilegia o concerto ao vivo, a improvisação sem rede, a interacção telepática com os parceiros, a reacção instintiva e instantânea. O que pensariam da “hipereruditização” do jazz os seus velhos mestres, nascidos nas primeiras décadas do século XX e cuja “universidade” foram os bares e prostíbulos com música ao vivo e os discos, desgastados por incontáveis audições, dos grandes músicos das gerações anteriores, e que, por inconcebível que possa parecer, conseguiram produzir obras relevantes – e até imortais – sem nunca terem ouvido falar de Roland Barthes e Michel Foucault?
Para título de um dos seus discos mais inspirados, Go see the world (1997), o saxofonista David S. Ware (1949-2012) escolheu a frase que a sua mãe terá proferido quando pegou nele pela primeira vez, no dia do seu nascimento – mas hoje parece haver cada vez mais músicos cujas mães, em vez de os enviarem à descoberta do mundo, lhes ordenam: “Vai para a universidade e não saias de lá sem um PhD”.
[“Mikuro’s blues”, de Go see the world, de David S. Ware]
O monopólio do discurso
É no domínio da criação artística que a pulsão hegemónica da academia assume contornos mais extravagantes, a ponto de o discurso académico sobre a obra se tornar mais importante do que a obra. Para alguns académicos, é uma perversão inimaginável que sejam os artistas a falar das suas obras e da sua arte e a fazer valer a sua interpretação da obra que eles mesmos criaram, uma ideia que ganhou forte impulso com o ensaio “La mort de l’auteur” (1967), de Roland Barthes. Barthes ataca a crítica literária “tradicional”, cuja “leitura” da obra se baseava nas intenções do autor e na sua biografia, por ser muito limitativa, e decreta que o sentido de uma obra depende mais das impressões de cada leitor do que das intenções e inclinações pessoais do autor. Uma vez morto o autor (metaforicamente), poderia pensar-se que a interpretação da obra ficaria ao arbítrio de cada um e que todas as opiniões sobre a obra seriam de igual valor – porém, a academia tratou, muito rapidamente, de colmatar o “vazio” criado por Barthes e apoderar-se da “autoridade” que antes coubera ao autor.
Quando os autores e artistas estão fisicamente mortos, a academia pode elaborar os mais delirantes discursos sobre eles sem receio de ser contradita, mas a situação torna-se assaz bizarra quando o objecto das comunicações, ensaios, artigos e teses da academia são obras de autores e artistas vivos, que, em muitos casos, perplexos perante os estultilóqios tecidos pelos académicos em torno das suas obras, pensarão, ingenuamente, “porque não me perguntaram, em vez de se deitarem a adivinhar?”, ignorando que Barthes decretou que as intenções e juízos do criador sobre a sua obra são irrelevantes. Se o autor ou o artista pretendem ter um discurso sobre artes e letras, terão de fazê-lo nas instâncias e nos moldes determinados pela academia.
Também no espaço mediático a academia tem vindo a conquistar espaço e poder: quando o tratamento de um assunto, seja ele qual for, requer a visão de um especialista, é quase sempre a um professor universitário ou a um “investigador” que se recorre, mesmo que, por vezes, as ideias que alguns deles expendem não difiram significativamente das que um leigo razoavelmente informado tem sobre o assunto.
De forma gradual e quase imperceptível, a academia conseguiu impor duas leis não-escritas: nenhum pensamento elaborado ou discurso é credível e digno de respeito se não assumir a forma de uma tese; nenhuma actividade intelectual pode ser exercida sem a validação da academia. A fim de contrariar ou, pelo menos, moderar esta aceitação generalizada e acrítica da autoridade da academia, é oportuno recordar as palavras do humanista Desiderius Erasmus em Sileni Alcibiadis (1515): “Ninguém está mais afastado da verdadeira sabedoria do que os indivíduos que, com os seus títulos altissonantes, as suas barretinas doutorais, as suas esplêndidas faixas e os seus anéis adornados de jóias, proclamam ser o ápice da sabedoria”.