(Este texto foi publicado a 19 de junho de 2022 e republicado nesta segunda-feira dia 12, depois do anúncio da morte de Berlusconi)
A imagem final que ficou no Estádio Romeo Anconetani foi a de alguém quase com toques de personagem da Marvel, a saudar milhares de adeptos como se fosse um Deus todo poderoso que vive para sentir essa condição. Bronzeado como se tivesse vindo de umas férias nas Caraíbas com solário à mistura, mãos ao alto em sinal de agradecimento pelos gritos entusiásticos, um sorriso rasgado de alguém que parece tudo menos ter 85 anos. No entanto, até no momento mais alto de sempre da história de um Monza que mudou a partir do dia em que assumiu o controlo do clube, Silvio Berlusconi deu nas vistas por motivos laterais a um jogo que dificilmente poderia ter mais emoção até ao triunfo frente ao Pisa que valeu a subida à Serie A.
Silvio Berlusconi’s Monza have gained their first Serie A promotion in their history, but the former Milan owner was caught sleeping after the Tuscans had scored a late goal in the second half. https://t.co/OA60VQQ7ey #PisaMonza #Monza #Berlusconi #SerieA #SerieB
— Football Italia (@footballitalia) May 30, 2022
Não foi a primeira vez que aconteceu em termos públicos. Tinha sido assim em 2009, numa conferência de líderes europeus na residência do então primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert. Tinha sido assim ainda em 2013, quando estava na cerimónia do novo Centro Presidencial George W. Bush, em Dallas. No entanto, e rebobinando o filme de 120 minutos históricos para o clube de 110 anos radicado apenas a 23 quilómetros de Milão, este foi o encontro que colocou o Pisa a subir nos dez minutos iniciais, teve depois o empate que favorecia o Monza, foi para prolongamento com um golo aos 90′ e só no prolongamento caiu de vez para o Monza. Com o resultado em 3-2, com a decisão mais importante na história do clube prestes a ser revelada, o antigo primeiro-ministro e proprietário do Monza foi apanhado a fazer uma pequena sesta. O momento tornou-se viral mas Berlusconi foi a tempo de acordar para assistir ao decisivo tempo extra.
Em condições normais, um episódio assim teria sido criticado por tudo e todos. Ao invés, muitos acharam até piada dentro do improvável que é fechar os olhos no minuto 90 de uma decisão. Il Cavaliere fundou partidos, criou um império de comunicação e liderou por três vezes o país como primeiro-ministro. Teve tudo o que sempre sonhou e tem hoje tudo para poder chegar a qualquer coisa que queira. Mas há algo que não se compra: a reputação. E foi nesse contexto que conseguiu o impensável, levando a equipa do terceiro escalão numa situação de quase bancarrota à inédita presença na Serie A apenas cinco anos depois de ter vendido o AC Milan por um total de 740 milhões a um grupo chinês, que também este ano foi campeão.
Da chamada de Galliani às novas regras (sem tatuagens, sem barbas e sem brincos)
Os rossoneri já não estavam no momento que conseguiram com duas gerações de ouro diferentes lideradas por Arrigo Sacchi, Fabio Capello e mais tarde Carlo Ancelotti. A folha financeira não era também a coisa mais famosa do mundo. O Inter e sobretudo a Juventus tinham criado um fosso de complicada resolução com o passar dos anos. Ainda assim, a saída da velha guarda da cúpula diretiva do AC Milan não passou ao lado de ninguém, mesmo que Berlusconi tivesse o condão de criar tantos amores como ódios pela sua vida política e social. Falou-se então da necessidade de dinheiro para os julgamentos em curso, para outros voos políticos, para mudar os resultados do clube. No limite, colocou-se em causa a legalidade da operação. No entanto, cedo Il Cavaliere percebeu que estava aborrecido sem o futebol. À primeira chamada, voltou.
AC Milan vendido aos chineses do Rossoneri Sport Investment Lux
Adriano Galliani, uma espécie de Keith Richards do rei da banda (mantendo a analogia, Ariedo Braida, que hoje ocupa funções de CEO da Cremonese após ter passado pelo Barcelona, era um Ronnie Wood), ligou a Silvio Berlusconi um ano depois com uma proposta: comprar o Monza. O antigo diretor executivo do AC Milan tem ligações familiares à cidade e à região, achou piada ao projeto e desafiou o seu Mick Jagger de sempre no futebol. Berlusconi, com pouca atividade e meio aborrecido na mansão em Arcore (que fica a menos de cinco quilómetros de Monza), nem precisou de pensar – foi sim, sim, sim! E os Rolling Stones do calcio voltavam a dar música no dirigismo transalpino. Tanta que, em três anos, a equipa chegou onde não tinha chegado nunca na história. Com outra curiosidade: Braida, o outro elemento da banda em San Siro, viu na mesma temporada o seu Cremonese subir também ao principal escalão do país.
Fundado em 1912, o Monza, clube que andou sempre na sombra de todo o mediatismo do Grande Prémio de Fórmula 1 que se realiza na região, chegou ao segundo escalão, voltou a descer e atravessou uma fase mais complicada em 2015, quando estava a cair na bancarrota e teve de começar tudo de novo. Até por isso, Berlusconi ficou ligado ao projeto. Através da Fininvest, empresa mãe de todos os negócios do magnata de 85 anos que é um dos homens mais ricos de Itália, pagou três milhões de euros ao empresário Nicola Colombo, ficou com 100% do capital, colocou o irmão mais novo Paolo como líder e chamou o amigo Adriano Galliani para dominar todo o departamento de futebol. Onde muitos tinham visto uma reforma definitiva, a dupla encontrou uma oportunidade. E mesmo sendo uma aventura talhada para ter prejuízo pelos problemas estruturais do clube, da massa adepta ao estádio (alvo de melhoramentos para levar os atuais 9.999 espectadores), são hoje tão ou mais felizes do que em três décadas em San Siro.
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— AC Monza (@ACMonza) June 1, 2022
Mal chegou ao clube, quase que respirando o ar que lhe tinha feito falta desde a venda do AC Milan (que ainda vê como o “seu” AC Milan), começaram as promessas. Uma delas foi a chegada de Kaká, que acabara a carreira no final de 2017. Não veio, claro. Mas nem por isso a marca Berlusconi deixou de se fazer sentir com a pitada de polémica com que sempre gostou de temperar qualquer projeto que assumiu nos vários mundos onde se move. “O Monza será uma equipa muito jovem, composta apenas por jogadores italianos, com cabelo bem arranjado, sem barba e sem tatuagens. Além disso, não poderão utilizar brincos. Serão um exemplo pela sua personalidade pois pedirão desculpa se fizerem faltas, tratarão o árbitro como cavalheiros e irão cumprimentar os adversários no final dos jogos”, anunciou. Até para os autógrafos havia novas regras: “Não podem fazer apenas um esboço, precisam de escrever o seu primeiro e último nome. E também vão sair vestidos de uma forma sóbria. Em suma, serão diferentes no futebol atual”, destacou.
A parte excêntrica do costume estava lá mas Berlusconi sabia o que dizia. Dinheiro não era propriamente um problema sobretudo pegando no clube na Serie ,C mas o líder sabia que precisava de mudar a todos os níveis o que era o Monza, um clube com um recinto com capacidade para menos de 5.000 pessoas (que entretanto já tem naming e tudo), inserido numa cidade industrial onde muitos empresários começaram o seu império sem nunca dar a mão à equipa da zona, com uma classe média assente em micro e pequenas empresas muito ligada no futebol aos conjuntos de Milão. Essa foi uma das prioridades estudadas com o amigo Galliani, que chegou a ser vice e acionista do Monza antes de rumar ao AC Milan nos anos 80: como conseguir puxar grande parte dos 900.000 habitantes da região da Lombardia e como alcançar o que as melhorias no estádio, o investimento no centro de treinos e a aposta no plantel não traziam por si.
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— AC Monza (@ACMonza) June 14, 2022
A passagem de jogadores como Kevin-Prince Boateng ou Mario Balotelli pelo Monza nos últimos dois anos ajudou a puxar mais adeptos, tendo-se falado de outras velhas glórias como Gigi Buffon ou Ribery como potenciais alvos. No entanto, nem só de nomes foi feito o crescimento do Monza fora dos relvados: para tentar atrair o interesse dos mais novos, o clube deu a todos os estudantes locais um estojo com as cores e o símbolo da equipa e criou também a sua formação de eSports para começar a competir nas provas oficiais tendo em conta a adesão crescente das novas gerações aos jogos eletrónicos. Até Sacchi chegou a ser convidado para voltar aos bancos mas o antigo campeão europeu preferiu manter-se longo dos relvados. Se antigamente nem 2.000 espectadores iam aos jogos em casa, agora o estádio começa a ser pequeno e é por isso que o próximo grande investimento nas infraestruturas passará por um aumento para 25.000 lugares.
Próximo objetivo? Ser campeão e chegar à Liga dos Campeões com o Monza
A lista de excentricidades de Silvio Berlusconi ao longo de três décadas do AC Milan é longa mas o passar dos anos foi trazendo também explicações para aquilo que poucos percebiam na altura. Por exemplo, há o conhecido episódio no verão de 1986, uns meses depois de ter comprado o clube que estava num período de agonia financeira e desportiva, quando apresentou o plantel a chegar de helicóptero ao som da Cavalgada das Valquírias de Wagner com a intenção de anunciar uma nova forma de pensar em San Siro. E ainda a simbólica frase do “Não sabia que era preciso ter sido cavalo para ser jockey” perante as dúvidas que toda a imprensa levantou perante a aposta em Arrigo Sacchi, técnico sem passado como jogador mas que foi um dos mais importantes no clube. O Monza não foi exceção mas com algo que há muito já era conhecido.
Ciao, Berlusconi? O regresso do homem que todos julgavam estar acabado
Na festa do 82.º aniversário, quando estava rodeado de amigos próximos, da família e dos colaboradores, Il Cavaliere anunciou que como prenda tinha comprado um clube e que iria devolver o nome original de AC Monza. A ilusão criada pelo que fizera no AC Milan com esse pormenor histórico abriu caminho para poder avançar como queria no projeto desportivo que colocou o clube a trabalhar de uma forma profissional em divisões em muitos aspetos amadoras. Ainda assim, foi a ligação com Galliani que mais diferença fez.
Entre 1987 e 2017, além de ter montado algumas das melhores equipas de sempre do futebol mundial, a dupla conseguiu um currículo ao alcance de poucos: cinco Taças dos Campeões Europeus/Champions (duas no final da década de 80, uma nos anos 90 e duas no século XXI), cinco Supertaças Europeias, duas Taças Intercontinentais, um Mundial de Clubes, oito Campeonatos, uma Taça e seis Supertaças de Itália. Para alguns, o projeto só começou a ruir a partir de 2017, quando desmantelou uma equipa acabada de sagrar-se campeã europeia e que contava com nomes como Maldini ou Kaká também por um alegado desinteresse que terá começado aí perante a atividade política e empresarial que lhe tomava cada vez mais tempo. Ainda assim, a música da claque ficou: “Só existe um presidente”. Berlusconi, claro.
“Contratações? Vamos ver, vamos ver… Vou falar com o presidente para ver o que conseguimos fazer. Eu também gasto muito dinheiro na minha privada, vamos ver!”, atirou o eufórico Galliani após a segunda promoção em apenas três anos, neste caso com uma subida histórica ao principal escalão aos 110 anos de existência. “Pensar no Monza-AC Milan da próxima temporada é um sonho, os meus filhos já me andam a perguntar se nós conseguimos ganhar ao Inter mas isso é outra história…”, acrescentou. E o próprio Silvio Berlusconi também já assumiu que será complicado para ele decidir por quem vai torcer em 2022/23 após a época onde não só voltou à ribalta do futebol transalpino como viu os rossoneri serem campeões.
“O que podemos esperar agora? Bom, conseguimos chegar à Serie A, por isso agora queremos lutar pelo título na próxima temporada e depois jogar a Liga dos Campeões”, atirou entre sorrisos o líder do Monza. Uma brincadeira, um sonho impossível? À partida sim mas foi isso que fez com o AC Milan, tendo a dificuldade extra de agarrar num emblema que passara pela Serie B devido ao escândalo do Totonero (jogos combinados), e nem os 70 milhões de prejuízo que teve em três anos chegam para reduzir essa ambição. Monza já não é apenas a casa da Ferrari e será complicado travar o magnata que foi primeiro-ministro e que tem dois internacionais portugueses nas camadas jovens na equipa: Pedro Pereira e Dany Mota.
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— AC Monza (@ACMonza) June 9, 2022
Os problemas de saúde, as derrotas políticas e ainda o processo do “bunga bunga”
Os dois últimos anos foram marcados pelos problemas de saúde de Silvio Berlusconi, que contraiu Covid-19 em setembro de 2020 e ficou internado no hospital italiano San Raffaele com uma pneumonia bilateral. Em abril de 2021, o antigo primeiro-ministro esteve quase um mês internado devido à sua doença cardíaca e a problemas respiratórios. No início do ano, Berlusconi voltou ao San Raffaele para exames de rotina mas teve uma infeção e voltou a ficar internado, passando para as mãos de Antonio Tajani, número 2 do partido Forza Italia, um dos últimos objetivos que tinha em termos políticos mas que acabou por cair por terra.
Ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi hospitalizado em Milão
Os vários processos judiciais em que está envolvido foram reduzindo cada vez mais as ambições que tinha mas Il Cavaliere movimenta-se de forma afincada nos corredores para conseguir encabeçar uma candidatura à liderança do país como chefe de Estado, sucedendo a Sergio Mattarella. No início do ano, quando estava no hospital, Berlusconi recebeu a chamada que não queria de Tajani: o processo de eleição estava em andamento e não encontrava espaço para o líder do Forza Italia. “Está bastante bem mas triste, deprimido, a alternar raiva e desânimo”, contavam algumas fontes próximas à imprensa transalpina após esse momento de rendição em que teve de abandonar a corrida à presidência, numa fase em que deixou de atender telefonemas, recebia apenas as pessoas mais próximas e quis cortar a ligação com o exterior.
Se aquilo que fez com o AC Milan ajudou a alavancar com sucesso as ambições políticas que tinha nos anos 90, o ressurgimento pelo Monza serviu apenas para se reposicionar no futebol transalpino. Para isso, e de forma inevitável, muito contribuíram todos os casos de Justiça em que se viu (e vê) envolvido. “Já tive 2.500 comparências em salas de audiências de mais de 100 tribunais”, dizia Berlusconi há mais de uma década. No entanto, e entre prescrições de alegados crimes, absolvições e vitórias em recursos, o antigo primeiro-ministro durante nove anos (1004-1995, 2001-2006 e 2008-2011) nunca chegou a ser preso.
O que se passava (mesmo) nas festas “bunga bunga” de Berlusconi
O mais recente tem a ver com as festas sexuais que fazia na sua mansão, o caso que ficou conhecido como “bunga bunga”. Numa primeira instância, Berlusconi foi condenado a sete anos de prisão por abuso de poder e pagamento a menor em troca de serviços sexuais mas acabou depois por ganhar o recurso que foi apresentado. Agora, está a ser julgado num processo paralelo onde é acusado de falsos testemunhos e de manipulação por alegadamente ter comprado algumas das pessoas que participaram nas festas sexuais – incluindo Ruby (Karima El Mahroug), que esteve na origem do caso –, num total de 12 milhões de euros. “O então primeiro-ministro costumava animar sistematicamente as suas noites recebendo na sua casa grupos de odaliscas, escravas sexuais a soldo. Estes factos já ficaram para a história”, disse Tiziana Siciliano, procuradora-adjunta, no Tribunal de Milão. Devido às suas variadas ramificações, houve uma separação do processo entre diferentes cidades como Turim, Pescara, Treviso, Monza ou Siena.
Sílvio Berlusconi acusado pela procuradoria de Milão de ter “escravas sexuais”
Antes, Berlusconi chegou a ser condenado a três anos de prisão por corromper um senador mas como a sentença chegou em cima da data de prescrição e sem margem para recurso acabou por não avançar. Foi ainda punido com quatro anos de prisão por fraude fiscal, no único caso que transitou em julgado, ficando posteriormente com apenas um ano devido a uma amnistia que passou de prisão efetiva para domiciliária e a seguir apenas trabalho comunitário (quatro horas, um dia por semana) reduzido a dez meses e meio. Tudo isso acabou por ter um inevitável peso nos 8,8% da Forza Italia nas eleições europeias, naquele que foi o resultado mais abaixo do partido mas que não impediu que Il Cavaliere fosse na mesma eleito.
Ao mesmo tempo, e nestes últimos meses, Silvio Berlusconi tem estado particularmente ativo em relação à guerra na Ucrânia e com opiniões que mereceram muitos comentários no plano nacional e não só. “Nós já estamos em guerra porque a Itália está a enviar armas para a Ucrânia”, referiu em maio, num comício em Trevigli. “É absolutamente necessário que cheguemos à paz o mais rápido possível, caso contrário a devastação e os massacres continuarão. Penso que a Europa deve estar unida para fazer uma proposta de paz a Putin e aos ucranianos, tentando que os ucranianos aceitem as exigências de Putin”, acrescentou uns dias depois aos jornalistas em Nápoles, em mais uma ação de campanha da Forza Italia.
Berlusconi diz estar “profundamente dececionado” com amigo Putin
“Não posso e também não quero esconder que estou profundamente dececionado com o comportamento de Vladimir Putin, que assumiu uma responsabilidade muito séria perante todo o mundo. Conheço-o há 20 anos e ele sempre me pareceu um democrata e um homem de paz. Perante o horror dos massacres de civis em Bucha e em outras localidades, que são verdadeiros crimes de guerra, a Rússia não pode negar as suas responsabilidades”, referiu entretanto numa reunião do partido em Roma, após ter sido acusado por vários dirigentes, incluindo o primeiro-ministro Mario Draghi, de abrir a possibilidade para Sergey Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, comparar Volodimir Zelensky com Adolf Hitler pelas origens hebraicas na Mediaset, o primeiro meio europeu com uma entrevista do russo.