Em 2004, entre os dez países que entraram para a União Europeia, no alargamento a Leste que foi também o maior da história europeia, estava a Polónia. O país era encarado como um caso de sucesso na integração dos países que, durante décadas, viveram sob o domínio comunista na antiga União Soviética. Mas, nos últimos seis anos, Varsóvia e Bruxelas têm estado de costas voltadas e a decisão da semana passada, quando o Tribunal Constitucional polaco decidiu que a lei do país se sobrepõe à legislação europeia, parece ter sido um ponto de viragem, numa altura em que já se põe em cima da mesa a possibilidade da saída da Polónia da União Europeia: o “Polexit”.
Embora em Varsóvia o Executivo continue a dizer que sair da União Europeia não é uma opção, em Bruxelas o tom endureceu, com a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, a garantir que pretende usar “todos os poderes dos tratados”, e o secretário de Estado francês dos Assuntos Europeus, Clément Beaune, a dizer que existe o risco “de facto” da saída da Polónia. A decisão sem precedentes do Tribunal Constitucional polaco mergulhou o futuro da Polónia e da União Europeia na incerteza, numa altura em que os 27 Estados-membros ainda lidam com a saída do Reino Unido.
“O ‘Polexit’ seria muito mau tanto para a Polónia como para a União Europeia. Mais uma saída de um estado-membro depois do Brexit seria um desastre, mas ainda mais grave é uma desintegração da União Europeia a partir de dentro”, afirma ao Observador o analista Piotr Buras, responsável pelo gabinete do think tank European Council on Foreign Relations (ECFR), em Varsóvia. Em caso de “Polexit”, continua o analista, “haveria perdas económicas para a União Europeia, porque a Polónia é uma economia vibrante, uma das poucas que está em crescimento”. Contudo, “se a longo prazo a saída de um Estado-membro é gerível, vários países a questionarem a fundação da União Europeia e a continuarem a ser membros já não é” assim tão gerível.
Os diferendos entre o governo polaco e a União Europeia intensificaram-se com a chegada do partido Lei e Justiça (PiS, na sigla original) ao poder, em 2015. Desde então, o governo agora chefiado pelo primeiro-ministro Mateusz Morawiecki — embora, na prática, a figura mais poderosa seja o líder do PiS, Jaroslaw Kaczynski — tem levado a cabo uma intensa reforma do sistema judicial, nomeando diretamente juízes para os mais altos tribunais, o que em Bruxelas é visto como uma politização da justiça, que viola a independência do Estado de direito. O governo polaco, por seu lado, considera que as imposições de Bruxelas põem em causa a soberania do país.
Em julho, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que o regime disciplinar dos juízes polacos não era compatível com a legislação europeia, exigindo a Varsóvia que fossem tomadas medidas. Não só a Polónia não acatou a decisão como, agora, através da decisão do Constitucional, na prática, está a dizer que não vai cumprir com as leis que se aplicam aos restantes 26 Estados-membros.
“Do ponto de vista político, trata-se de uma declaração de guerra contra a ordem jurídica da União Europeia, cuja premissa fundamental exige o respeito pelo Estado de Direito, o que significa, antes de mais, o cumprimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia”, diz ao Observador Laurent Pech, professor de Direito Europeu da Middlesex University, em Londres. Pech considera que, apesar disso, “não haverá um ‘Polexit’ formal, ao contrário do que aconteceu no caso do Reino Unido”.
80% dos polacos querem continuar na UE
A saída do Reino Unido foi um duro golpe, mas a União Europeia vai seguindo o seu caminho, enquanto no outro lado do Canal da Mancha já se começam a sentir as consequências, como, aliás, comprovam os problemas nas cadeias de abastecimento que deixaram as prateleiras dos supermercados vazias, um problema causado, sobretudo, pela falta de motoristas estrangeiros. A consumar-se um “Polexit”, os problemas para a Polónia podiam ser ainda maiores, uma vez que o país tem na União Europeia um aliado fundamental para conter as ambições da Rússia na sua fronteira, além de a Polónia ser um dos países que mais tem beneficiado — e continua a beneficiar — dos fundos europeus.
De acordo com o El País, entre 2007 e 2020, a Polónia recebeu 150 mil milhões de euros em fundos europeus, e até 2027 conta receber mais 70 mil milhões. Desde que o país entrou para a União Europeia, o seu PIB mais do que duplicou, e cerca de 60% do investimento púbico polaco tem origem no dinheiro europeu, o que mostra a dependência do país relativamente a Bruxelas.
Além disso, ao contrário do que aconteceu com o Reino Unido antes do referendo de 2016, quando o país estava dividido em relação à pertença à União Europeia, na Polónia existe um grande sentimento pró-europeu. Este domingo, mais de 100 mil pessoas saíram às ruas de Varsóvia em manifestações pró-Europa — convocadas pelo líder da oposição, o antigo primeiro-ministro e ex-presidente do Conselho Europeu Donald Tusk — que se estenderam a dezenas de outras cidades.
Acresce que uma sondagem do diário polaco Rzeczpospolita indica ainda que 80% dos polacos são a favor da permanência da Polónia na União Europeia, daí que o governo do PiS, apesar de estar em choque com Bruxelas, mantenha a posição de que o “Polexit” não é uma opção. “O lugar da Polónia é e continuará a ser entre a família das nações europeias”, disse o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, no mesmo dia em que se congratulou com a decisão do Constitucional polaco que diz que a lei do país se sobrepõe à europeia.
Manifestações pró-Europa juntam milhares nas ruas da Polónia
Como nos tratados europeus não há nenhum procedimento que preveja a expulsão de um Estado-membro, caberia à Polónia dar início ao processo de saída através da ativação do Artigo 50 do Tratado de Lisboa, o que, a confiar nas palavras do governo polaco, não parece que vá acontecer. Pelo menos nesta fase.
“A forma como aconteceu a saída do Reino Unido, com um referendo, com um voto no parlamento e com uma decisão do governo, não vai, provavelmente, acontecer na Polónia. Pelo menos, nos próximos anos. Não só devido ao apoio que existe no que diz respeito à pertença à União Europeia, mas também pelos benefícios existentes”, afirma ao Observador a analista Małgorzata Kopka-Piątek, responsável pelo programa europeu do think tank polaco Institute of Public Affairs. “Na prática, o que governo polaco quer fazer é comer o bolo e ficar com ele. Basicamente, quer desobedecer às leis da União Europeia e continuar a fazer parte dela”, acrescenta o analista do ECFR Piotr Buras.
A estratégia do governo polaco e a hipótese de “mudança de narrativa”
Dos direitos da comunidade LGBTI à liberdade de imprensa, mas sobretudo à boleia da polémica reforma do sistema judicial, o embate entre o governo polaco e a União Europeia tem vindo a escalar nos últimos anos. E a Polónia acabou por encontrar apoio na Hungria, que tem tido problemas semelhantes com as instituições europeias, enquanto outros Estados-membros aumentam a pressão para que a Comissão Europeia tome medidas mais assertivas.
Uma dessas medidas deu-se em setembro, quando a Comissão avançou para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo multas diárias contra a Polónia por violação das regras do Estado de direito. Além disso, a Comissão Europeia ainda não aprovou o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) polaco no valor de 36 mil milhões de euros. E, segundo a analista Małgorzata Kopka-Piątek, recorrer para o Tribunal Constitucional “fez parte de uma estratégia para as negociações com a União Europeia, uma vez que Morawiecki queria ter algo escondido na manga”. A estratégia, no entanto, não está a correr como previsto, e o confronto com Bruxelas assume também uma dimensão interna.
“A União Europeia está a começar a ser mais dura nas negociações, e o governo polaco reconheceu que a Polónia poderia ficar sem o fundo de recuperação. E, depois, caso não consiga o dinheiro, precisa de uma explicação para fins internos, tentando convencer os eleitores polacos de que a UE não quer dar o dinheiro e que o governo está a proteger a constituição”, salienta Małgorzata Kopka-Piątek.
Primeiro-ministro polaco diz que a Polónia deve permanecer na União Europeia
Mas, mesmo que o PiS não queira um “Polexit”, os analistas notam que os confrontos frequentes com Bruxelas — sobretudo no que diz respeito ao cumprimento da lei europeia — podem levar a uma dinâmica que conduzirá, inevitavelmente, à rutura, tal como as tentativas do Reino Unido em renegociar o relacionamento com a União Europeia acabaram por levar ao Brexit.
Nesse sentido, diz Małgorzata Kopka-Piątek, ao usar o “argumento de que está a proteger a soberania e a constituição da Polónia”, o governo do PiS poderá levar a uma “mudança da narrativa”, passando a ideia de que o governo polaco quer ficar na União Europeia, quando é a União Europeia quem está a afastar o país da comunidade dos 27. “Quando se pergunta aos polacos se são favoráveis à permanência do país na União Europeia, eles dizem que sim, porque veem os benefícios a vários níveis. Mas muitas pessoas podem mudar de opinião muito mais rapidamente do que aquilo que possamos acreditar”, alerta a analista do Institute of Public Affairs.
As hipóteses em cima da mesa e o “momento crucial” da UE
Pesando tudo isto, parece que em Varsóvia não existe uma verdadeira vontade de levar adiante um “Polexit”, sendo que em Bruxelas o desejo também não será, certamente, a separação. Com a decisão do Tribunal Constitucional polaco tomada, a bola parece estar, neste momento, do lado da Comissão Europeia.
Bruxelas adverte Polónia que usará todos os poderes na defesa da lei europeia
Além de poder não aprovar o PRR polaco, a União Europeia tem a seu dispor uma série de mecanismos para lidar com o que considera serem as violações do Estado de direito na Polónia. O professor de Direito Europeu Laurent Pech diz que a Comissão pode “processar as autoridades polacas perante o Tribunal de Justiça da União Europeia” ou “pedir multas relativamente às decisões ou ordens já violadas”, enquanto o Conselho Europeu “pode organizar uma audição especial e impor recomendações para as autoridades polacas cumprirem num determinado prazo”.
“A nível bilateral, também são possíveis reações políticas e, de facto, ações judiciais também são possíveis, uma vez que os tratados conferem a cada Estado-membro o poder de processar outro Estado-membro por violar o direito da União Europeia”, acrescenta o especialista.
Até ao momento, a resposta da União Europeia tem sido lenta e pouco ou nada mudou desde que em 2017 foi aberto um procedimento com base no Artigo 7.º do Tratado de Lisboa, um mecanismo que serve para avaliar se os valores democráticos e Estado de Direito estão em risco.
Os desenvolvimentos dos últimos meses, no entanto, podem levar a que, desta vez, a Comissão Europeia tome uma posição mais assertiva. Em Bruxelas, já se equaciona a utilização do mecanismo de condicionalidade que entrou em vigor no início deste ano, que associa a entrega de fundos europeus ao cumprimento dos critérios do Estado de direito. Para Piotr Buras, Bruxelas “tem todos os meios e instrumentos para agir nesta situação e, se os utilizar, poderá colher os frutos a curto ou médio prazo”.
“Países que não seguem as leis comuns e as regulações e, mesmo assim, beneficiam da integração europeia, do dinheiro europeu e da solidariedade de outros Estados-membros. Isso seria o fim da União Europeia a dada altura”, diz o analista do ECFR. “A maior e mais realista ameaça para a União Europeia não é o Polexit, mas sim a erosão da União Europeia a partir de dentro, se a situação na Polónia ou na Hungria continuar a ser tolerada. Por esse motivo, este é um momento crucial para a União Europeia.”