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“Olá, sou o Pedro”. Calções bege, ténis, camisa branca para dentro, coisa prática — afinal, há muitos quilómetros em Lisboa e à volta para percorrer esta terça-feira. Toda a gente lhe conhece o perfil do Spotify, a melomania, a prática de surf e a militância benfiquista. Mas, no roteiro “Percursos: cultura que somos”, uma iniciativa do Ministério que dirige para percorrer a cultura portuguesa mensalmente de lés a lés — do grafitti ao jornalismo local –, o ministro Pedro Adão e Silva quer mostrar ao que vem, que cartas tem na manga para o setor. Que legado quer deixar numa área tão dividida. E que futuro político quer para si, numa pasta que queima ministros.
Adão e Silva quer marcar a passagem pelo governo de António Costa, onde faz parte do núcleo duro, através de uma atitude mais próxima e diferente da sua antecessora, Graça Fonseca. Assume que quer dar destaque a realidades culturais portuguesas distintas, por vezes ainda marginalizadas, e que vão ganhando cada vez mais protagonismo. Um piscar de olho à estratégia do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com quem a selfie e a proximidade se enraizaram. Serão estas jogadas de marketing político de um ministro em campanha quando não há campanha à vista? Ou o setor encontrou alguém no cargo que quer tudo menos uma política de gosto? “Não sou candidato a nada, quero construir a minha própria agenda. Uma das responsabilidades deste cargo é estar atento e dar visibilidade ao que se faz no país através da sua diversidade, do rap ao teatro”, diz o ministro da Cultura ao Observador.
Fotografias com bebés, denúncias da Cova da Moura, cachupa nas Olaias
Numa das ruas da Cova da Moura, bairro na periferia de Lisboa habituado a rever-se nos meios de comunicação por razões diferentes, está uma mãe com uma bebé que espreita, curiosa, o pequeno aparato que se monta à frente da associação Moinho da Juventude. Faz calor, qualquer sombra ajuda. Minutos antes da entourage de Adão e Silva seguir para uma visita final ao projeto Dentu Zona, de Vitor Sanches — que já tem marca de roupa própria (Bazofo), vende livros e ajuda a comunidade do bairro da Amadora — o ministro decide expor-se ao sol e cumprimentar a bebé. Está ali para dar visibilidade, mas também para ser visto. Pergunta pelo nome, acena, fala com a mãe. O momento fica filmado e fotografado. Há tempo para estar, porque, mesmo quando a espuma das notícias dita o sucesso ou o fracasso de qualquer político, o momento conta.
Antes de conhecer a bebé, Adão e Silva desceu uns degraus para levar alguns recados de Flávio Almada. “O Ministério da Cultura tem de vir cá mais vezes para aprender”, diz o agente de Educação Familiar do Moinho da Juventude, dentro do Estúdio Kova M, um projeto que tem catapultado jovens do bairro para outros voos no hip hop em Portugal. E não só: contratos com a Sony, milhares de visualizações no Youtube, uma outra vida que, ainda assim, precisa de orientação. O ministro conheceu o projeto, pediu para ouvir novas músicas e guardou denúncias daquilo que ainda hoje é uma realidade para quem lá vive: este é e sempre foi um dos bairros mais marginalizados da Grande Lisboa e que, apesar disso, continua a tentar promover a sua cultura.
“Estes miúdos podem ir para a Sony, mas este estúdio já existia antes disso. E se promovemos esse caminho, estamos a criar superstars dentro da Cova da Moura. E aí outros perguntam: porque é que ele foi e eu não?”, confessa Flávio Almada. Adão e Silva, sem nunca intervir muito, sempre cirúrgico, porque o terreno é sensível, faz apenas uma pergunta: como é que tudo isto se gere? Heidir, responsável pelo estúdio e produtor musical, tinha a resposta. É preciso gerir egos, raivas e promover educação e estabilidade. Não é manager, mas os jovens olham para ele como tal. Querem estar e viver da música. “Faço essa gestão financeira, mas não sou manager. Quanto à polícia, continuam a fazer rusgas aqui. Nem concertos conseguimos dar. Não gosto de generalizar, mas 90% deste bairro trabalha”, comenta.
À hora de almoço, o roteiro teve de parar. “Sim, vamos, já estou com fome.” Adão e Silva come cachupa sem picante e com um copo de vinho no bairro Portugal Novo, nas Olaias. Foi “obrigado” a admitir que aquela versão do prato típico de Cabo Verde da Dona Emília, a “Rainha da Cachupa” e uma das batucadeiras da freguesia, era melhor do que a do “Rei da Cachupa”, um dos nomes mais conhecidos desta comida na capital e que mora na mesma freguesia, no Areeiro. Não é política de gosto: é política, ponto. Não foi, porém, obrigado a dançar, como lhe aconteceu no 10 de Junho em Cabo Verde, a propósito das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, de onde trouxe a ideia para realizar um roteiro deste género deste lado do Atlântico.
O ministro foi recebido na sede da AMPAC, associação de moradores das Olaias, criada recentemente e que tem tentado promover estas batucadeiras e desenvolver um “bairro de ninguém” com muitas atividades, do desporto ao apoio burocrático. Lá dentro, esperavam-no um grupo de mulheres e a famosa cachupa. Adão e Silva, além de responder sendo bom garfo, continua entre todos. Convive, ninguém pergunta se é ministro. É “o Pedro”, sentado frente a frente com quem lhe preparou o repasto. O tempo dilata-se com a temperatura, mas os vários pontos do roteiro não. “Este é um bairro com pouco desenvolvimento público, é um ‘bairro de ninguém’. Já conseguimos aqui espaços físicos, financiamento público, estamos também a tirar estas mulheres de casa. Conseguiram criar o seu pequeno negócio. Foram agora pagas, pela primeira vez, para dar um concerto”, conta Nuno Furtado, animador sociocultural, membro da associação e que fez parte da associação Cidadãos de Lisboa (que fechou acordo com Fernando Medina nas últimas eleições autárquicas). Por já começar a conhecer os meandros da política, envolvendo-se, acredita que esta visita pode ser mais do que uma ação de campanha. “Há potencial, sim, acredito nisso.”
Sam The Kid a mexer com as palavras e “um ministro que já ganhou” à antecessora
Não houve potencial nem possibilidade de ver o ministro a dançar como fez em Cabo Verde. Nem tanto ao mar, nem tanto à Marcelo Rebelo de Sousa. Mas em Chelas, já dentro do estúdio Kriativu, de Nuno Varela, que tem oferecido espaços — lá está — criativos para os jovens do bairro com ofertas que vão desde fazer os próprios ténis — através do projeto BNC Movement — a andar de bicicleta, Adão e Silva mostrou toda a sua melomania. Aliás: os seus conhecimentos tecnológicos. Dentro do estúdio está Flowgun (João Morgado), um jovem produtor e músico de 18 anos. É ele que comanda as operações daquelas instalações, mas, talvez por reconhecer que estava perante um ministro, e não apenas “o Pedro”, começa por ter alguns problemas com o computador. Quer mostrar serviço, a ver se um dos seus trabalhos vai parar à playlist. O ministro tenta ajudá-lo, mas sem sucesso. Dois dedos de conversa, toda a entourage à espera, o tempo, o tempo, tudo contado. Aqui, fica demonstrado que não se trata, por momentos, de uma ação de campanha. As câmaras da RTP já nem estavam lá para registar. E se estivessem, tudo bem, surfava-se a onda.
Quem não tem problemas em dizer ao que vem é Sam The Kid. Um dos mais prestigiados rappers portugueses tem, nos tempos que correm, uma missão de vida: não deixar o nome de Chelas desaparecer. Literalmente. O músico, MC e produtor tem andado em luta com a freguesia que decidiu começar a tapar o nome do bairro (outra vez, literalmente) que Sam The Kid levou para o país inteiro, substituindo-o por Marvila. Foi por isso que se juntou com algumas pessoas, entre as quais Ricardo Gomes (Masterfoot) ou Adriano Finuras (Associação Torre Laranja) para criar o “Chelas É o Sítio”, uma associação sem fins lucrativos que tem feito a ponte para jovens talentos e já chegou a levar alguns deles a festivais como o MEO Kalorama. “Se o futuro são os jovens, se eles reclamam os nomes antigos, como o da zona J, reclamam a sua identidade. Queremos que não tenham vergonha de dizer que são daqui. Existem muitas associações em Chelas, estamos a trabalhar nisto há menos de um ano. A prova é o ministro estar aqui. Falta-nos uma sede. É por isso que nos apelidamos de mini-Avengers de Chelas, juntamos todos os super poderes”, diz o rapper.
Falta a sede, há poder, mas não a vontade de continuar. Vem aí mais arte urbana para reerguer a história deste sítio. Falta o resto. Para Ricardo Gomes, que cresceu no bairro e se fez engenheiro civil, sempre por conta própria, o coletivo vai além da música e da cultura. É para chegar à educação. “A escola tem de ser formatada para os miúdos serem ambiciosos. Porque é que a exigência de outras escolas não é aplicada aqui? Porque é que um miúdo de Chelas tem de ir para um curso profissional?” Adão e Silva, que se repete no papel de bom ouvinte, troca ideias, faz perguntas e assegura que sabe o lugar da cultura.
“É preciso ir aos sítios, perceber o que se passa”
O dia só terminaria em Cascais, passando ainda por Queluz. De manhã, Adão e Silva deu um salto para espreitar os preparativos da cultura urbana que vai estar exposta no Festival Iminente, que decorrerá para os lados do Beato (a partir desta quarta-feira, dia 22, e continua até sábado, 25) e que contará com a presença do ministro no fim de semana. Conversou com os curadores da exposição Bairros, que junta várias zonas de Lisboa, numa dinâmica entre artistas e moradores que o festival tem promovido desde início. Mora ali todo um trabalho que atravessa gerações, que quer dar um “ócio organizado”, estúdios, incentivar a criação, da arquitetura à fotografia, com workshops, para agarrar novos e velhos e criar novas relações com a cultura. Do bairro para o mundo. Nuno Mah, da Associação de Moradores do PER11, uma das zonas habitacionais construídas a propósito do Programa Especial de Realojamento de Lisboa, resumiu ao Observador praticamente todo o dia deste roteiro em poucas palavras: “Nunca conhecemos a outra ministra [Graça Fonseca]”.
Quando Adão e Silva foi escolhido este ano, muitos disseram que não tinha currículo para a pasta que abraçava. Até então, estava a liderar a Comissão das Comemorações do 25 de Abril, num manto de críticas, novamente porque havia quem não percebia o porquê do professor do ISCTE e comentador ficar com um lugar tão importante. Um “boy do PS” — que se desfiliou do partido — para uns, um intelectual para outros. No último debate da Nação, em 2021, António Costa deu-lhe protagonismo. “Its a very deep sea” (é um mar muito profundo), lê-se no título de uma das suas playlists. O da cultura, certamente que é.
“Não faço comparações com a minha antecessora, até porque tenho simpatia pessoal por ela. Cada um tem o seu estilo. Eu gostava de deixar essa marca de proximidade e de valorizar a cultura pela sua diversidade. Comecei com a cultura urbana por causa das suas tensões, que atravessam a sociedade. Existe muita energia criativa fora desses contextos das instituições. Tenho muita dificuldade em aceitar categorizações da cultura, erudita ou popular, as fronteiras são quase inexistentes. É preciso estar disponível, acarinhar a produção, estar próximo dos artistas. Quis visitar estas associações porque nascem de baixo, mas existe uma dinâmica cultural além da social. É preciso ir aos sítios, perceber o que se passa”, diz Adão e Silva ao Observador já quase no final do dia. Já não temos só “o Pedro”. O ministro da Cultura saiu da sombra e entrou em campanha.