Quando Maria Luís Albuquerque foi escolhida como comissária para os Serviços Financeiros e União de Poupança e Investimentos, o Politico.eu, jornal de leitura obrigatória para quem percorre diariamente os corredores de Bruxelas e Estrasburgo, escrevia que a ex-ministra das Finanças trazia consigo “alguma bagagem“, no sentido de “esqueletos no armário” que poderiam dificultar a sua nomeação. Mas, excetuando as críticas muito violentas de que foi alvo por alguns dos seus compatriotas – Catarina Martins e João Oliveira –, Maria Luís enfrentou uma audiência relativamente amigável com assertividade, respeito rígido pelos tempos máximos de resposta e, até, algum sentido de humor.
Uma das características apontadas a Maria Luís Albuquerque, nesse perfil traçado pelo Politico.eu, era que a (então) comissária indigitada tinha conquistado uma “reputação de ser uma figura muito séria, por vezes, até, austera“. Para tentar desfazer essa imagem, logo no primeiro encontro com os eurodeputados do Parlamento Europeu, a ex-ministra das Finanças aproveitou uma questão relacionada com a influência dos mercados financeiros no acesso à habitação, sobretudo por parte dos jovens, para arriscar uma piada: “Tenho três filhos jovens e não faço ideia de quando conseguirei correr com eles para fora de casa”.
O bom humor resultou, com a comissária indigitada a arrancar algumas gargalhadas de vários membros da vasta audiência. Mas quem não se riu foi Catarina Martins, que chamou a si o papel de arqui-inimiga de Maria Luís na audição desta quarta-feira no Parlamento Europeu em Bruxelas.
Poucos minutos antes, a eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda tinha feito críticas violentas à ex-ministra das Finanças: “Sei que conhece bem o setor financeiro e em Portugal conhecemos bem o resultado dessa proximidade. É um caso exemplar de portas giratórias ou da raposa a tomar conta do galinheiro. Neste caso, as galinhas são o fundo de pensões que podem mesmo acabar comidos”.
O caminho de Maria Luís Albuquerque para aqui chegar em nove casos polémicos
Catarina Martins acusou Maria Luís de ter feito contratos swap (de proteção de risco de taxa de juro) que “custaram milhões” à Refer, de ter feito de Portugal “cobaia da Europa na resolução do BES”, de ter “oferecido o BPN e posto o país a pagar o buraco”, e de ter, também, “oferecido a ANA, por meio século, no negócio arrasado pelo Tribunal de Contas português”.
Foi, de longe, o momento mais tenso de toda a sessão que durou aproximadamente três horas. Mas Maria Luís Albuquerque estava preparada para os argumentos que sabia que iriam ser trazidos pelos eurodeputados portugueses ligados ao The Left (Catarina Martins e, também, João Oliveira, que não imprimiu a mesma agressividade retórica que a deputada bloquista na sua inquirição).
- “Qualquer pessoa que saiba como o banco funciona percebe que as decisões sobre vendas de carteiras de créditos são decisões puramente da gestão executiva que não passam sequer pelos conselhos de administração não executivos e, muito menos, pelos titulares das pastas das Finanças. Não é assim que as coisas funcionam…”;
- “Relativamente à Refer, desconheço a fonte de informação da senhora deputada, mas o resultado dos contratos de swaps que eu contratei na Refer foi um benefício superior a 40 milhões de euros. Os contratos ruinosos a que a senhora deputada se refere foram contratados noutras empresas, antes do tempo em que eu sequer assumi funções governativas, e empresas essas onde nunca trabalhei”;
- “Sobre as privatizações, já tivemos amplas ocasiões de discutir esta matéria, incluindo nas seis comissões de inquérito em que eu participei no Parlamento português devido às medidas tomadas durante o período de ajustamento. Mas, na verdade, todas estas operações foram consideradas procedimentalmente válidas pelas entidades competentes, e a própria ANA, como foi visível numa audição recente no Parlamento português, teve uma primeira versão muito positiva do Tribunal de Contas que depois, por razões que eu ainda não compreendi completamente, foi substituída por uma outra versão mais negativa”.
Neste último ponto, Maria Luís Albuquerque referia-se à entrega pelo Tribunal de Contas ao Governo, em 2015, de um relatório preliminar relacionado com a privatização da ANA. Essa primeira versão foi entregue ao Governo para que pudesse haver contraditório dos visados. Mas vários anos, depois, já com José Tavares como presidente do Tribunal de Contas (nomeado pelo PS), o relatório final foi publicado e foi muito mais crítico para o executivo que Maria Luís Albuquerque integrou.
Mais recentemente, José Tavares, que abandonou há poucas semanas o cargo, indicou na Assembleia da República que essa primeira informação (entregue em 2015) sobre a privatização da ANA Aeroportos não era um relatório de auditoria da instituição, pelo que não vinculava nessa fase o tribunal – ou seja, não poderia ser vista como uma “primeira versão” do relatório. Porém, não terá havido mais qualquer convite a contraditório quando se obtiveram as conclusões definitivas, mais desfavoráveis para o governo de então.
O despique entre Catarina Martins e Maria Luís Albuquerque, na íntegra
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Catarina Martins: Senhora Comissária indigitada, sei que conhece bem o setor financeiro e em Portugal conhecemos bem o resultado dessa proximidade. É um caso exemplar de portas giratórias ou da raposa a tomar conta do galinheiro. Neste caso, as galinhas são o fundo de pensões que podem mesmo acabar comidos. Não é coisa pouca. Enquanto diretora da Refer, custou milhões à empresa pública em contratos swap. Fez do nosso país cobaia da Europa na resolução do BES, que disse que não custaria um cêntimo aos contribuintes portugueses. Custou 8 mil milhões. Ofereceu o BPN e pôs o país a pagar o buraco. Ofereceu a ANA, por meio século, no negócio arrasado pelo Tribunal de Contas português e a investigação na Justiça. Presidiu à venda de ativos do Banif, quando era um banco público, à Arrow, e depois foi trabalhar para a Arrow, um cargo que acumulou com as funções de deputada. Agora, estava a trabalhar para a Morgan Stanley e quer vir para a Comissão trabalhar em dossiês em que a Morgan Stanley é interessada. Pergunta: há limite para o conflito de interesses? E já se sabe para que banco vai trabalhar a seguir?
Maria Luís Albuquerque: Senhora Deputada Catarina Martins, umas breves notas sobre a questão que disse, eu já tive oportunidade de responder. É verdade, fui trabalhar para a Arrow. Deixe-me dizer, Senhora Deputada, que qualquer pessoa que saiba como o banco funciona percebe que as decisões sobre vendas de carteiras de créditos são decisões puramente da gestão executiva que não passam sequer pelos conselhos de administração não executivos e, muito menos, pelos titulares das pastas das Finanças. Não é assim que as coisas funcionam. Dizer também que, relativamente à minha passagem pela Refer e aos contratos de swaps, eu desconheço a fonte de informação da Senhora Deputada, mas o resultado dos contratos de swaps que eu contratei na Refer foi um benefício superior a 40 milhões de euros para a empresa. Os contratos ruinosos a que a Senhora Deputada se refere foram contratados noutras empresas, antes
do tempo em que eu sequer assumi funções governativas, e empresas essas onde nunca trabalhei. Relativamente às privatizações, já tivemos amplas ocasiões de discutir esta matéria, incluindo nas seis comissões de inquérito em que eu participei no Parlamento português devido às medidas tomadas durante o período de ajustamento, mas, na verdade, todas estas operações foram consideradas procedimentalmente válidas pelas entidades competentes, e a própria ANA, como foi visível numa audição recente no Parlamento português, teve uma primeira versão muito positiva do Tribunal de Contas que depois, por razões que eu ainda não compreendi completamente, foi substituída por uma outra versão mais negativa. Quanto à oportunidade que agora tenho de, novamente, servir o interesse público, é algo pelo qual eu estou grata, é algo a que, conforme já disse, me comprometo, como sempre, a servir lealmente os interesses públicos. Aquilo que vou fazer depois disto, Senhora Deputada, não sei. Se me confirmarem, eu estou muito focada nos próximos cinco anos, onde espero verdadeiramente contribuir para o bem da Europa.
Catarina Martins: Senhora Comissária indigitada, tivemos também uma comissão de inquérito do swap. Não voltarei às discussões que já tivemos antes, sei que falou da sua política enquanto governante, sabe que temos oposições. Continuo a dizer que o mito da saída limpa é só um mito. Foi o BCE que nos permitiu regressar aos mercados e a sua política só trouxe desemprego, pobreza e mais dívida pública. Mas eu volto às questões de conflitos de interesses porque, repare, não foi capaz de proteger sequer os depositantes de um banco regional e, agora, propõe-se brincar com os fundos de pensões em toda a União Europeia. É a lobista do setor financeiro na pasta e todos os grupos que a aceitarem são cúmplices disso mesmo. Candidata-se para criar um mercado de capitais que joga com fundos de pensões e com o dinheiro dos contribuintes. Que garantias lhes dá? Até ver, a sua longa experiência é um longo cadastro.
Maria Luís Albuquerque: Senhora Deputada, não entrando na questão que, de facto, nos divide sobre a saída limpa e o que isso representou, já discutimos amplamente isso no passado, eu gostaria de dizer que os depositantes foram protegidos nas situações bancárias em Portugal. Nós encontrámos, em 2011, um setor financeiro em situação muitíssimo dramática, aliás, é também por isso que eu sou tão defensora da União Bancária, porque a União Bancária nos permite criar instrumentos que impedem o contágio entre soberano e setor bancário. É muito importante que nós quebremos esse círculo vicioso que tanto prejudicou o nosso país no passado, e eu discordo também, naturalmente, da visão da Senhora Deputada que no mercado de capitais se fazem jogos com o dinheiro. No mercado de capitais, criam-se oportunidades para que os vários participantes possam, de facto, obter as melhores oportunidades de investimento e para que, também, os investidores particulares possam obter a melhor rentabilidade e a melhor segurança para o seu futuro.
Momentos depois, João Oliveira, deputado comunista que também pertence ao The Left, acusou Maria Luís Albuquerque de ser alguém que irá defender a “roleta da especulação” dos mercados de capitais, o que, na sua visão, coloca em perigo as poupanças e as pensões dos cidadãos.
Sobre a União Bancária, defendida acerrimamente por Maria Luís Albuquerque logo desde a intervenção inicial, João Oliveira diz que esta só irá promover “a concentração do setor bancário e a criação de ainda maiores grupos económicos”, políticas que “multiplicam os lucros [da banca] e concentram o poder na mãos de poucos banqueiros”.
Mas, já depois da audição, as palavras de Catarina Martins mereceram muito mais críticas por parte dos eurodeputados mais próximos de Maria Luís Albuquerque do que as palavras de João Oliveira. Lídia Pereira, do PSD, e João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, reprovaram as declarações de Catarina Martins na audição, considerando-as “deselegantes”.
“Acho que foi uma deselegância e faz parte do radicalismo a que estamos, infelizmente, habituados com os representantes do Bloco de Esquerda e em particular de Catarina Martins”, afirmou Lídia Pereira, questionada pelo Observador. A eurodeputada do PPE sublinhou a “tranquilidade” com que Maria Luís Albuquerque respondeu a essas questões.
Já João Cotrim Figueiredo disse-se “chocado” com a interpelação de Catarina Martins, com o “uso da demagogia e da mentira para o combate político”, e também o recurso pelo BE “ao populismo que tanto dizem querer combater”.
Com mais ou menos críticas vindas (dos portugueses) do The Left, Maria Luís Albuquerque sabia que, mais do que conquistar a nomeação, apenas tinha de não cometer erros que a comprometessem – até porque outro compatriota, Francisco Assis, ligado ao PS e ao Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu (S&D), já dava a entender que votaria favoravelmente a nomeação de Maria Luís Albuquerque.
“Fazemos parte de famílias políticas diferentes, temos filiações programáticas bem distintas e, no passado, tivemos divergências profundas, o que é natural e faz parte do debate democrático. Mas, neste momento, estamos num tempo e num lugar distintos e penso que temos obrigação de compreender isso mesmo”, afirmou Francisco Assis antes de fazer a Maria Luís Albuquerque uma questão sobre supervisão financeira que a comissária (indigitada) respondeu com facilidade.
No final da sessão, o mesmo Francisco Assis falou com o Observador e confirmou a intenção de votar favoravelmente, isto depois de Marta Temido ter inicialmente manifestado algumas dúvidas. “É para isso que se fazem as audições” e os comissários indigitados são ouvidos pelos eurodeputados, disse Francisco Assis, acrescentando que “houve uma alteração profunda do quadro regulatório europeu” nesta área financeira, para o qual a anterior governação socialista “contribuiu fortemente”, diz Francisco Assis.
“Teremos mais convergências do que divergências, como vimos nesta audição, que foi uma boa audição”, disse Francisco Assis, ao Observador: “não tenho dúvida nenhuma em dizer que devemos votar a favor“.
Marta Temido não esteve, nesta quarta-feira, no Parlamento Europeu em Bruxelas, já que esteve fora a participar numa conferência. No final de agosto, a ex-ministra da Saúde tinha feito declarações duras sobre Maria Luís Albuquerque – mais próximas das de Catarina Martins do que das de Francisco Assis. “É evidente que o nome da dra. Maria Luís Albuquerque recorda a todos os portugueses políticas de austeridade que são para todos de má memória. Que são políticas muito distintas daquelas que a União Europeia seguiu nos últimos cinco anos, com bons resultados. Também nos recorda algumas polémicas, desde o caso dos swap a questões relacionadas com bancos e de objetivos inalcançados ao nível de políticas, por exemplo, de redução da dívida”, sublinhou Marta Temido, citada pela Rádio Renascença em agosto.
Poucas horas depois da audição, ficou claro que Maria Luís Albuquerque conseguiria facilmente obter a maioria de dois terços de que necessitava para ser nomeada. Uma centrista, Stéphanie Yon-Courtin (Renew Europe), que foi uma das eurodeputadas a questionar Maria Luís Albuquerque, disse ao Politico que a portuguesa “respondeu às questões com sucesso e de forma convincente”.
O desempenho da comissária indigitada também foi visto com bons olhos pelos Verdes. O vice-presidente do comité ECON, Damian Boeselager, disse ao mesmo jornal que a portuguesa tinha “boas hipóteses” de ser nomeada. Ela “fez um trabalho muito competente” e “parece ter conhecimento destes temas”, afirmou o eurodeputado.
Pouco depois ficou a saber-se que os eurodeputados de todos os partidos – exceto os da The Left, a que pertencem o PCP e o BE, e a direita nacionalista dos “Soberanistas” (ESN) – tinham votado a favor de Maria Luís Albuquerque na reunião de avaliação que foi tida entre um grupo restrito de eurodeputados, logo após a audição da ex-ministra das Finanças portuguesa. Ficou, assim, garantida a aprovação com relativa facilidade.
O The Left quis, aliás, incluir uma declaração de voto (minoritário) para deixar bem vincada a sua oposição à nomeação de Maria Luís Albuquerque. Mas a comissária conseguiu o apoio de vários partidos, desde os Verdes, o S&D (a que pertence o PS) e os Patriotas Pela Europa (a que pertence o Chega).
“Eu não defendo desregulação, não gosto sequer da palavra desregulação"
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“Eu não defendo desregulação, não gosto sequer da palavra desregulação”, afirmou Maria Luís Albuquerque, durante a audição, numa declaração que terá ajudado a obter mais apoios nos partidos mais de centro-esquerda. “Desregulação foi o que originou a crise financeira há mais de uma década, que depois originou uma crise das dívidas soberanas”, afirmou a ex-ministra das Finanças, acrescentando: “É verdade que o setor financeiro tem de ser fortemente regulamentado, temos muito trabalho a fazer na calibragem da regulação porque há inconsistências, há sobreposições, há encargos impostos sobre as PME e até sobre os cidadãos”.
“Nós queremos que as coisas funcionem, e para isso a regulação tem de continuar a existir e ser feita de forma mais eficiente do que tem sido até agora”, afirmou Maria Luís Albuquerque, lembrando que a parada é elevada.
“Não há dúvida de que a economia europeia está a ficar para trás” na competitividade global, disse a comissária na introdução inicial. “Preocupo-me que, sem uma ação decisiva, a Europa possa perder a capacidade de decidir sobre o seu futuro, cumprindo as promessas de postos de trabalho, crescimento e prosperidade que fizemos aos nossos cidadãos”.
O Parlamento Europeu não fez um relato oficial da conclusão da reunião desta comissão de avaliação mas esse facto foi rapidamente assumido como uma aprovação tácita (já que apenas haveria um comunicado rápido caso houvesse um chumbo). O Partido Popular Europeu (PPE), a família política de Maria Luís, foi o primeiro a dar os parabéns à ex-ministra das Finanças.
Maria Luís Albuquerque conseguiu, assim, a nomeação para um mandato como comissária europeia na Comissão Europeia, em Bruxelas – não sendo certo se até ao fim do mandato (de cinco anos) as soluções que a ex-ministra das Finanças preconiza, de estímulo aos mercados de capitais, irão produzir efeitos no aumento da competitividade europeia e, também, na melhoria do acesso à habitação por parte dos jovens (incluindo os seus três filhos).
*O jornalista viajou até Bruxelas a convite do Parlamento Europeu