Como “O Passeio das Alegres” mudou a televisão, alterando assim o dia a dia dos portugueses. Que transformações surgiram com as telenovelas brasileiras. A música que transfigurou totalmente o panorama pop nacional, de Rui Veloso aos GNR. As Doce como símbolo de um país em processo de transformação, entre quem o defendia e os que o temiam. A renovação intelectual em figuras como Miguel Esteves Cardoso. E o que Francisco Sá Carneiro poderia ter sido mas não chegou a ser.
Nas páginas que o Observador revela, nesta pré-publicação, Pedro Boucherie Mendes debruça-se sobre alguns dos elementos fundamentais do início da “primeira década totalmente vivida em democracia” em Portugal. Foi “A Década Prodigiosa”, como o jornalista, escritor e diretor de conteúdos digitais de entretenimento da SIC colocou no título deste novo livro que é publicado no próximo dia 22. Trata-se de um recapitular de anos fundamentais na transformação da sociedade portuguesa depois do 25 de Abril, feito com um ponto de vista pessoal, assinado por um então adolescente, partindo de um contexto particular, procurando revelar uma visão abrangente.
Bem bom
Em janeiro de 1980 retomámos a escola, mas os jornais da altura não ocuparam demasiado espaço, muito menos aproveitaram para discorrer sobre a crise na aprendizagem e os dramas da competitividade dos estudantes no mercado de trabalho.
A escola era a escola, uma fase da vida dos miúdos, um conjunto de obstáculos que era preciso ir superando, o local onde era suposto estarmos. Ainda não fora promovido a sítio de desenvolvimento e descoberta, pelo menos nas escolas públicas, onde não havia atividades que não o recreio, muito menos rankings e classificações. Ajudava que as regras fossem muito claras e simples de seguir. Na escola primária obrigavam-nos a ter um pequeno dicionário. Conjugavam-se verbos, o domínio da língua portuguesa era de uma importância primordial. Não podíamos dar erros. A letra tinha de ser entendível, bem desenhada. Apagar com a borracha implicava não esborratar. Aparentemente não bastava, porque ouvíamos dos mais velhos que a «antiga quarta classe» era infinitamente mais exigente, completa e capacitante do que a nossa, como se fôssemos culpados de alguma coisa.
Talvez a nossa vantagem face às gerações anteriores tenha estado na televisão, sempre a televisão. Porque é mesmo uma realidade que o conhecimento nos foi servido com profusão, naquele ethos próprio na programação infantil solene, de didatismo feito através da descoberta de lendas antigas com fundo moral, histórias da História, curiosidades, heróis cujas formas e imagens abonecadas nos cativavam. Como os homens das cavernas barbudos nessa peça preciosa de arqueologia oitentista por toda a Europa que foi a série francesa Era Uma Vez…O Homem, onde aprendíamos a história da Humanidade vendo desenhos animados, incluindo faraós risonhos, donzelas e cavaleiros medievais, navegadores, pioneiros disto e daquilo, sempre de colete, camisa branca de mangas arregaçadas, óculos pequenitos na ponta do nariz e tubo de ensaio nas mãos se fossem cientistas. Criámos aí muita da nossa iconografia perene. Noutras produções, como O Sítio do Picapau Amarelo, uma série brasileira, também se aprendia. Diversos programas ensinavam os passos necessários para fazer figuras em gesso com pacotes de iogurte vazios, molduras de fotografia com molas da roupa coladas, fantoches à moda d’Os Marretas com meias e trapos velhos e demais peças de faça-você-mesmo a que nos dedicávamos, sujando à nossa volta, berrando de frustração. Ficavam sempre aquém do modelo original e também por isso iriam diretos para o lixo em poucos dias.
É preciso crescer para apreciar realmente como se cresceu. Como estar em finais de 1979 e ouvir quatro mulheres jovens cheias de energia cantando «Amanhã de Manhã», música com versos engenhosos e rimas conseguidas de um dos mais importantes compositores de música popular do nosso país, Tozé Brito: «Vem amor a noite é uma criança/E depois quem ama por gosto não cansa/Amanhã de manhã».
Não haverá ninguém que foi criança em Portugal neste tempo que não recorde as Doce, que em março ficariam em segundo lugar no festival vencido por José Cid. Assumidamente formatadas, as Doce serão uma das marcas da primeira metade dos anos oitenta portugueses e contribuirão para o ânimo geral nacional, conseguindo vencer o festival em 1982 (com «Bem Bom»), depois de em 1981 terem ficado num injusto quarto lugar com «Ali-Bábá», talvez castigadas pela ousadia de se apresentarem vestidas como odaliscas.
Pode ser que seja por causa de fenómenos como as Doce que gostamos tanto daqueles anos. Vivas, cheias de vontade e brilho, mistura de pop com disco sound, as Doce estavam sempre felizes, sempre a sorrir, personificavam o otimismo, do lânguido «Jingle Tónico» ao abbaesco «Rainy Day». Adorávamos as suas músicas, como adorávamos as músicas festivaleiras, aprendíamo-las de cor muito depressa. Aqueles anos com as Doce, as suas coreografias e figurinos, parecem mágicos. Dir-se-ia que vivemos num transe coletivo a decorrer dentro de uma cornucópia de coisas boas, novas, nunca vistas, irrepetíveis, saborosas. Não foi fortuito, as Doce eram profissionais e produzidas, tinham claro valor artístico e ajudaram, tenho a certeza, a vencer um persistente cansaço com aquela época cinzenta pré-adesão à CEE. Décadas depois, continuam a alimentar a fornalha da nostalgia, lembrando que os anos oitenta portugueses foram mais do que tempos de atentados à bomba, economia débil e subdesenvolvida, trabalho infantil, taxas enormes de abandono escolar e aglomerados de barracas a rodear Lisboa.
Subindo pela rua, sempre cheio de speed
As Doce virão a ser uma ponte entre dois mundos. Um, o da canção popular, romântica e festivaleira, o outro um pop/rock que chegara do Porto a partir de uma cassete que uma mãe trazia às escondidas do seu filho Rui Manuel, para mostrar em Lisboa a um contacto numa editora importante. Rui, que ia a caminho dos vinte e quatro anos, não saía da cave de sua casa, onde tocava guitarra e cantava em inglês. A mãe, mulher do então presidente da Câmara Municipal do Porto, só queria saber se o filho tinha jeito.
Tinha, teve e ainda tem. O êxito de Rui Veloso, portuense com ar de miúdo e bigodinho, de óculos escuros e casaco de ganga, demonstrou na primavera de 1980 o que parecia impossível: que a música para os jovens, o rock’n’roll, resultasse em português.
Muito pouco tempo depois do Tollan encalhar no Tejo, «Chico Fininho» reivindica para sempre o lugar na história social e cultural portuguesa como o fundador do boom do rock português.
Não teria acontecido se não fosse o produtor António Avelar de Pinho, que ouviu a cassete deixada pela mãe, pedir a Veloso e ao seu comparsa Carlos Tê que viessem à Valentim de Carvalho, onde os persuadiu a criar em língua portuguesa. Nasce daí o longa duração Ar de Rock, que inclui «A Rapariguinha do Shopping» e «Sei de Uma Camponesa». A adesão quase instantânea do público revelou que uma boa canção no momento certo, como o blues-rock «Chico Fininho», vence sempre barreiras e preconceitos. O êxito foi tão grande que, em menos de nada e durante os dois ou três anos seguintes, dezenas de bandas e artistas apareceram, lançando músicas rock de todos os quadrantes, umas piores, outras melhores, todas desligadas da estética pós-revolucionária. Veloso cantava de uma maneira diferente, um português menos declamado, algumas palavras nem se percebiam. Usava anglicismos, cantava sobre coisas urbanas. Foi a primeira figura desta vaga importante de modernidade na música que teve êxitos que persistem na memória coletiva, como «Chiclete», dos Táxi, «Robot», dos Salada de Frutas, «Cristina», dos Roquivários ou «Cavalos de Corrida», dos UHF. Não sendo da safra, as Doce nunca destoaram desta excitação e o tempo acabou por ser mais benévolo para o repertório do quarteto do que para o rock. Além disso, socialmente tiveram um papel muito importante. A combinação de sensualidade, feminilidade e força acabou por fun- cionar como referência geracional, tenham-no percebido ou não naquela altura.
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Chegava-se tarde aos compromissos, a noção de que a pontualidade tem valor escapava à sociedade. Esperava-se horas pelos médicos com a mesma naturalidade com que estes nos auscultariam, tocariam, meteriam uma pequena espátula de madeira na língua para ver a garganta, sem sequer nos dizerem bom dia ou boa tarde. No fim, pagava-se com dinheiro ou com cheque. Ninguém esperava que qualquer obra viesse a ser concluída em tempo útil. Não é raro que mesmo hoje pessoas que cresceram naquela altura fiquem surpreendidas quando uma câmara municipal resolve um problema rapidamente. Cumprir prazos não era uma questão importante, ou sequer esperada. Atrasos de meses ou anos cansavam, mas era como se não houvesse nada que pudesse ser feito. Protestar com quem? De quem?
Não era evidente que se tivesse telefone em casa. Um conhecido conta a história extraordinária de um almoço semanal em sua casa em que uma amiga da família vinha de longe expressamente para receber o telefonema do marido, que trabalhava em África. Os TLP atrasavam meses, por vezes mais de um ano, a instalação de linhas. A RTP chegava muito mal a certas regiões, os retransmissores não tinham potência suficiente.
Reconhecíamo-nos porque sabíamos o que encontrar uns nos outros. Havia uma noção de que éramos parecidos, paritários, desde os mais pobres, os remediados, os de ranho seco no nariz, com blusões Kispo herdados demasiado pequenos ou sapatilhas Sanjo rotas, aos que podiam calçar botas ortopédicas, maçudas e feias, até àquele que, num bando de vinte ou trinta teria bicicleta e rondava os outros em voltas vagarosas, exibindo-se, enquanto procurava não perder as conversas.
É uma universalidade, mas naquela altura, e não apenas por cá, numa casa comum da chamada classe média encontraríamos de facto uma lata metálica onde um dia houvera bolachas ou chocolates e agora vivia o material de costura. Móveis de design nórdico, claros e simples, eram inexistências. Predominavam louceiros e mesas de tons de castanho escuro, com entalhes, aplicações metálicas, espelhos ou vidros, que se compravam um dia para nunca mais se mudar ou trocar. Pobres e ricos eram iguais nesta fidelidade. Podia existir um móvel-bar. Alguns de nós apanharíamos as primeiras bebedeiras com aqueles licores e bagaceiras. Haveria cinzeiros em mesas e aparadores, nem que fosse para as visitas, naperons e toalhas em crochet abundavam, como fotografias em cima de louceiros, recordações de primeira comunhão, de casamentos, ou feitas num fotógrafo profissional, sepultadas em molduras, talvez de casquinha, talvez de napa, talvez em cubos de acrílico. Também as haveria em cima da televisão ou na própria mesinha do telefone, que ficaria perto da porta da rua, num hall qualquer, onde junto ao telefone de baquelite preto, de disco, podiam estar as pesadas listas. Era nesses volumes pesados que se encontravam os eletricistas, canalizadores, agências de viagens, em especial nas páginas amarelas, em anúncios criativos que por vezes apanhávamos quando eram a única coisa que tínhamos à mão para lutar contra os aborrecimentos.
Nas estantes dos armários da sala, para lá de bibelots, jarras ou pratos decorativos, podia estar uma enciclopédia, talvez comprada em prestações, talvez a um retornado, e clássicos da literatura para jovens (Dumas, Stevenson, Júlio Verne), com encadernações luxuosas e lombadas dignas, vendidos em clubes do livro – eram objetos decorativos como quaisquer outros. Estes armários guardariam serviços de louça raras vezes utilizados, copos de pé, talvez de cristal, copos para whisky, talvez com marcas, talvez calhambeques. Demorei décadas a perceber que os copos estampados facilitam a memorização. Ninguém ficaria admirado por saber que sempre que as casas fossem com tamanho suficiente haveria um quarto de hóspedes eternamente vago, com cama feita, caso alguém chegasse, podia ser um avô, uma tia, uma madrinha. No chão era frequente estarem alcatifas, uma epidemia vinda dos anos setenta, talvez com outros tapetes por cima. Ou então os pequenos tacos podiam estar à vista, encerados e lustrosos, com uma passadeira a cobri-los parcialmente, como se nos quisesse guiar dali para fora.
No inverno, as casas eram frias como um frigorífico, no verão podiam ser quentes como uma fornaça, toda a gente concordaria e sabia, era parte do viver. O amor e o cuidar do lar manifestava-se num tipo de decoração tantas vezes apoucada nos anos seguintes, como se nos fosse necessário sacudir o embaraço. Na posteridade talvez se venha a gozar com o que temos hoje nas nossas casas. Pode ser que um dia fiquem intrigados com os azulejos de cores neutras, brancos, pastéis, sem padrões e gozem com a nossa falta de imaginação, com a nossa planura. Quem sabe os azulejos decorativos voltem para se vingar.
Em maio de 1980, um rapaz de dezasseis anos desvia um Boeing 727 da TAP para Madrid, com oitenta e três passageiros e sete tripulantes a bordo, por motivos de zanga familiar. Armado com uma pistola que alguém deixara no táxi do pai, conseguiu os seus intentos mas, bem à portuguesa, tudo se resolve sem incidências internacionais. O adolescente ficou conhecido como o piratinha do ar e as consequências foram poucas ou nenhumas, a não ser marcar a nossa singularidade com um episódio insólito que perdura.
Sem que pudesse sequer sonhar, nesse junho começa a emitir a CNN, um canal exclusivamente de notícias, a partir de Atlanta, no estado norte-americano da Georgia. Mas no mês seguinte, tal como milhões de Portugueses, assisti em direto à longuíssima final do torneio de Wimbledon, entre o americano John McEnroe e o sueco Björn Borg, considerada um dos melhores jogos de ténis de sempre. Merece referência porque as transmissões dos torneios de ténis eram constâncias da televisão portuguesa ao longo da década, como as corridas de Fórmula 1 e o torneio das Cinco Nações de râguebi. O desporto internacional era uma das nossas maiores preferências televisivas, ainda que o futebol propriamente dito fosse muito raro. Nesse verão de 1980, os Jogos Olímpicos foram em Moscovo, na memória afetiva ficaram recordados em Portugal também por causa da sua mascote, o ursinho Misha, já que a pequena comitiva portuguesa não conseguiu medalhas, ao contrário do que acontecera em Montreal, em 1976. Foram umas Olimpíadas marcadas pelo boicote de mais de sessenta países, incluindo os Estados Unidos.
À época, não havia forma de manipular o tempo, importante quando a vida gira em torno da televisão. Não podíamos gravar ou ver mais tarde, éramos reféns do calendário, dos hábitos e regras, por isso se ia apressadamente à mercearia ao sábado de manhã antes que fechasse para abrir de novo na segunda feira. Ao domingo, passeava-se no espaço exterior, os centros comerciais modernos ainda não existiam, como não havia hipermercados. Visitavam-se e recebiam-se familiares e amigos, nada de novo, nada de especial, a não ser recordar que a vida das crianças é muitas vezes interrompida por adultos que surgem do nada e nos importunam. Assistir a um episódio da série favorita, que podia ser o ponto alto da nossa semana, com a madrinha chata ao lado a querer conversar era uma tragédia num tempo em que teríamos de ficar caladinhos no nosso canto, exibindo o valor importante que era o da boa educação.
Gabriela injetou açúcar, energia e muitas palavras na nossa língua. Num fósforo, haveríamos de as utilizar como se as conhecêssemos de sempre. É assinalável que o Portugal da democracia tenha podido beneficiar da cultura popular do Brasil. A adesão maciça e massiva às telenovelas tornou o brasileiro – como designávamos o português falado e escrito no Brasil – familiar e trivial; os nossos Carnavais e réveillons começaram a ser abrilhantados por atores de novelas que desembarcavam em Lisboa, trazidos por empresários que percebiam que havia vontade de os portugueses verem estas vedetas ao vivo e estavam dispostos a pagar pela experiência. Além disso, para a miudagem, a dose de brasileiro era reforçada pelas revistas da Disney – vulgo Patinhas – vendidas desde sempre em tabacarias e papelarias nas versões impressas no Brasil, que nos chegavam com preço em cruzeiros, corrigidos para escudos nas capas pelo lápis da dona da loja. Durante anos, ninguém se deu ao trabalho de os adaptar e fomos percebendo às nossas custas que grana era dinheiro, gramado relvado, tira polícia e bala rebuçado. Das novelas, nunca mais esqueci desquite (divórcio, separação), sumir (desaparecer) ou estar na fossa (estar triste, estar em baixo). Não foi sem surpresa que se percebeu que os Portugueses compreendiam o brasileiro das novelas, o que trouxe outras a seguir, como O Astro e Casarão, e assim, de certa forma, ao crescer, a nossa primeira língua era o português e a segunda o brasileiro, ainda que nunca as misturássemos quando era importante, como responder num teste na escola. Podíamos viver bilingues, mas cada uma tinha os seus momentos.
É de facto intrigante como o brasileiro que líamos e ouvíamos não tenha entrado no nosso léxico oral, se bem que certos nomes próprios que conhecemos nas novelas começassem a ser usados pelos novos pais e mães portugueses. Fábios, Flávios, Simones, Vanessas, que não existiam nas nossas classes e turmas, seriam nomes para as futuras gerações.
Princípios de normalidade, passeios no futuro
Nos piores dias, definiria os primeiros anos dos oitenta como tendo sido desagradáveis. Era desconfortável ir cortar o cabelo, por exemplo, os barbeiros eram ásperos, magoavam, ninguém nos lavava a cabeça a seguir, a coceira era garantida no pescoço. Era desconfortável vestir calças à boca de sino e começar a entender que se deveriam usar umas mais justas. Os anos oitenta ainda são feitos de botões a cair das camisas, ter quase garantidamente piolhos de ano a ano, usar camisolas tricotadas que não assentavam ou ver a nossa peça de roupa preferida a encolher na primeira lavagem na máquina. Era o país dos cinzeiros mal cheirosos atafulhados de cinza e beatas por todo o sítio; o país da humidade a trepar paredes, de pedaços enormes de tinta tartaruga a descascar. Era desconfortável estar na praia, as pessoas deixavam para trás os vestígios de almoços e lanches sem qualquer pensamento. No pinhal, nos parques, seria idêntico. Talvez fosse igual em Espanha, Itália, na Colômbia, na Argélia, em todo o lado, mas essa possível coincidência não torna menos verdade que era assim que crescíamos em Portugal.
A vida custosa definia os Portugueses. Na rua, havia poucos indicadores de esperança ou grandes sinais de revolta, tudo decorria normalmente: comprava-se o jornal, bebia-se café e nós uma laranjada. Com um pouco de atenção, talvez se visse um pente a sair dos bolsos das calças nos homens, talvez uns usassem uma pequena bolsa, onde guardavam documentos, talvez crucifixos ao peito ou joias de plástico em algumas mulheres mais novas. Do que me lembro, os meus compatriotas eram pequenos e encurvados, riam quase nada, não era incomum que poucos ou nenhuns dentes lhes sobrassem na boca, tinham olhares vagos e miravam muito, como se houvesse qualquer coisa que tivesse de ser absolutamente testemunhada. Quase sempre as mulheres carregavam um saco de plástico com qualquer coisa lá dentro, caminhando dois passos atrás dos seus homens. Na sabedoria da minha idade, não tinha nenhuma literacia para associar o aspeto geral de uma parte da população, enfezado e pobre, à má alimentação e maus hábitos de álcool e tabaco ou à ausência de uma rede de cuidados de saúde decente, e ainda um certo subdesenvolvimento ligado ao analfabetismo, à baixa escolaridade, à ruralidade, a um regime limitador de quarenta e oito anos.
Mais do que um ditador, para nós Salazar era aquela espécie de pá de plástico mole em miniatura usada para rapar os restos da massa do bolo ou do puré de batata. Não me recordo de na escola primária ou no ciclo preparatório fazer desenhos ou ver exposições alusivas à Revolução de 1974. Não é que fosse sonegada da memória coletiva, simplesmente parecia sempre haver qualquer coisa mais importante para assinalar na escola, uma composição sobre as férias ou sobre a família. Ruas, avenidas e praças 25 de Abril eram frequentes, 1 de Maio também, aos adultos talvez faltasse imaginação, não me ocorreria que existisse uma ligação tão direta entre a toponímia e a importância e simbolismo das datas.
A morte de Sá Carneiro acabou com uma possibilidade de Portugal. Os seus admiradores falarão de um Portugal que podia ter sido mais moderno mais cedo e que se perdeu. Chorada por muitos, mas também saudada em alguns locais onde a extrema esquerda era forte, como na região de Setúbal, a morte do primeiro-ministro em exercício será um dos acontecimentos principais da década, pelo que deixou em suspenso e pelo facto em si. Correndo o risco da generalização, as pessoas comuns resignaram-se, mesmo que alguns políticos e cidadãos tenham mantido o nome de Sá Carneiro presente por causa da sucessão e legado primeiro, e depois dirimindo no espaço público a dúvida sobre a causa da queda do avião. A Praça do Areeiro, em Lisboa, recebeu o seu nome, bem como o Aeroporto de Pedras Rubras, no Porto. Na política portuguesa contemporânea, em especial para a direita, Sá Carneiro ainda representa determinação e possibilidade e nenhum líder do PSD deixa de se declarar herdeiro das suas ideias.
A notícia da sua morte é anunciada ao vivo num comício de apoio à candidatura de Eanes em Lisboa, sendo admirável a reação da multidão. Dois dias depois acontece a eleição presidencial, que não foi adiada e decorreu com normalidade democrática. Seria possível no presente que morresse um primeiro-ministro numa sexta e houvesse umas eleições para Presidente num domingo? Em Portugal sucedeu no final de 1980.
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Na minha memória daqueles tempos, a morte de Sá Carneiro, a 4 de dezembro de 1980, pertence à infância das camisas de colarinho enorme e ao tempo do preto e branco. É passado do passado. A minha década de oitenta portuguesa (há uma parte belga), na sua versão nostálgica agitada, colorida e contínua, começou em fevereiro de 1981, quando num domingo, o dia 15, Júlio Isidro surgiu no ecrã da RTP para apresentar O Passeio dos Alegres.
Portugal ia no seu sexto governo constitucional desde 1976, liderado por Pinto Balsemão, que sucedera a Sá Carneiro. Ou no décimo segundo, se somarmos os seis governos provisórios que se seguiram à Revolução, antes que fosse possível organizar o Estado, fazer eleições e votar uma Constituição. O Passeio de Isidro surge menos de quinze anos depois da inauguração da ponte sobre o Tejo, menos de sete depois do 25 de Abril e menos de dois meses depois da queda do Cessna, em Camarate. Mudará muita coisa.
O Passeio dos Alegres foi um dos primeiros acontecimentos do Portugal democrático para quem crescia e uma das principais ignições de um país que chegaria irreconhecível ao final dessa década – acredito que isto soará menos controverso aos Portugueses do futuro que venham a estudar a História do país do que aos do presente e os do passado. O que é certo é que desde fevereiro até ao verão de 1981, Júlio Isidro foi proprietário e gerente das tardes de domingo, tendo decidido que os Portugueses mereciam um programa popular, vivo, interessante e desafiante. O Passeio dos Alegres é dos primeiros programas a cores da televisão portuguesa com sabor internacional, feito de cultura pop e popular descomprometida e descontraída, cujo único objetivo era entreter o espectador sem cerimónias nem presunção. Uma parte do Portugal contemporâneo que a nova geração nascida entre meados dos anos sessenta e meados dos setenta formataria começou aqui. E foi tudo feito quase em cima do joelho.
Isidro conta na sua biografia que foi desafiado pela então diretora de programas, Maria Elisa Domingues, a fazer um programa em direto de quatro ou cinco horas, que vestisse o filme que costumava ser transmitido nas tardes de domingo.
Aquele Portugal era tão pobre que havia restrições energéticas reais, impostas porque o Estado não tinha dinheiro suficiente para importar o petróleo que quisesse. Isidro inspirou-se nessa causa da poupança: o «passeio» domingueiro seria feito sentado no sofá da sala. O nome é escolhido a partir da ideia portuguesa de «passeio dos tristes», a expressão popular para a excursão melancólica que certas famílias fariam nos seus automóveis.
Não que se pudesse ir para muito longe. Em 1980, Portugal contava um total de cento e trinta e dois quilómetros de autoestrada. Havia alguns quilómetros entre o Estádio Nacional e o viaduto Duarte Pacheco, outros a seguir à Ponte 25 de Abril, mais umas dezenas na ligação que se ia fazendo entre a capital e o Porto. Em 1990, eram trezentos e três, com consideravelmente mais projetados e em construção. Em 2000, havia já mil quatrocentos e oitenta e dois quilómetros e em 2022 uns extraordinários três mil cento e quinze, um crescimento de mais de 2300% face a 1980.
Maria Elisa, como qualquer programadora, quereria acima de tudo ocupar a tarde com mais qualquer coisa do que um filme legendado, não inventar a roda, nem fazer nada que fosse muito diferente da norma, talvez umas entrevistas bem dispostas e umas atuações musicais chegassem, pois a esmagadora maioria do público ainda tinha televisão a preto e branco. Júlio, homem alto, de dentes proeminentes e nariz ainda maior, fizera vários programas infantojuvenis na RTP. Era então celebérrimo pela carreira de enorme sucesso na rádio – o seu Febre de Sábado de Manhã, na Comercial, chegou a encher o antigo estádio do Sporting numa das emissões. Emitido em direto dos estúdios do Lumiar, o Passeio constituía o que se chama na gíria de televisão de contentor, um programa com apresentadores que asseguram a intermediação entre o espectador e as coisas a acontecer, sejam rubricas, atuações musicais, passatempos ou entrevistas. A primeira emissão inclui o filme The Fast Lady, uma comédia com Julie Christie: como era típico na programação da altura, havia uma certa associação humorística ao que fosse inglês ou norte-americano. Sá Carneiro morrera há pouco mais de dois meses, mas os Americanos não estariam muito melhor: haviam eleito para Presidente um antigo ator de Hollywood de segunda categoria, como Ronald Reagan era apodado entre risos pelos nossos jornalistas.
Nas primeiras edições de O Passeio dos Alegres atuam a cantora Sheena Easton e a pequenita Maria Armanda, a criança intérprete de «Eu Vi Um Sapo». Depressa se percebe que Júlio apresenta um pot-pourri de coisas nunca vistas pelo público português. Por exemplo, dois espectadores deslocam-se ao estúdio para responderem ao desafio de tomar duche em frente aos outros milhões que viam em casa. Fazem-no protegidos por barras de plástico opaco que deixavam ver apenas as pernas do joelho para baixo e cabeças de ombros para cima, a primeira de muitas doidices cúmplices que incluirão mais de vinte pessoas dentro de um Mini.
Na música, Isidro foi abrangente, beneficiando da explosão do novo rock português, que acorreu sem vergonha ou pudor àquelas tardes de domingo em direto. Entre as primeiras atuações ao vivo estiveram Rui Veloso e os novatos GNR. Ambicioso, determinado e profissional, o apresentador conquistou o país, com o seu estilo informal, simpaticão e atento. Aproveitando o capital conquistado na rádio, no Passeio atuaram grupos como os Duran Duran e os Spandau Ballet, entre outros nomes da pop britânica em voga. Despolitizado mas não distraído, nas parvoíces descontraídas no Passeio incluíram-se um papagaio (o Baixinho) que falava verdades, diálogos com um chimpanzé verdadeiro, e opções culturais interessantíssimas e inesperadas, como leilões de arte contemporânea de artistas conceituados que doavam as peças e o ator Mário Viegas a dizer poesia em direto para milhões de pessoas.
A intenção era fazer meio ano de emissões, mas o estrondoso êxito levou a que este passeio televisionado se prolongasse até junho de 1982, terminando num auge de popularidade inimaginável. Num artigo de balanço no jornal Se7e, em dezembro de 1982, a crítica Maria João Duarte chama com justiça a Júlio Isidro «o grande e único entertainer cá da terra». Se mais argumentos a favor de O Passeios dos Alegres fossem necessários, foi aqui que António Variações e Herman José, dois grandes protagonistas dos nossos anos oitenta, se deram a conhecer em definitivo ao grande público.
À distância, percebemos melhor como O Passeio dos Alegres desformatou muita da televisão a que estávamos habituados e terá contribuído para que o país se pudesse alhear dos dramas do quotidiano. Tínhamos ali um amigo. Júlio Isidro era menos fato e gravata e mais próximo de nós, com uma atitude e postura de professor de ginástica. E sempre foi credível a lidar com as novas modas (rock português, o post-punk, o cubo mágico, a dança jazz, a moda, as permanentes, etc.).
Com os posteriores O Tal Canal (1983) e 1, 2, 3 (1984), o Passeio é um dos marcos decisivos da primeira metade dos anos oitenta. Isidro moderniza a televisão, fazendo um programa para nós, o pessoal da pesada (como nos chamava).
A esta distância é possível ainda advogar que o empenho de que tudo era possível dentro do Passeio consubstanciava a promessa que viera do 25 de Abril. Não surpreende que as referências por parte de artistas que por lá passaram nos anos seguintes o retratem como uma síntese de uma certa festividade permanente diferenciada de um tipo de televisão bem comportada. Ali corriam-se riscos, como a atuação de António Variações a cantar «Comprimido», um tema que nunca gravou. Foi a primeira vez que esteve em televisão e logo em direto, a 3 de maio de 1981.
A fantasia de que a geração de crianças e jovens que cresceu nos oitenta estava sempre na brincadeira fora de casa deve ser temperada com a escassez de alternativas. Apesar de gostarmos muito da rua, não havia grande coisa para fazer dentro das casas, muitas vezes pequenas e com poucas ou nenhumas condições de entretenimento.
Um programa imperdível como o Passeio, um novo e delicioso pico semanal, esvaziou as ruas.
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Na escola, o tédio fazia-nos colocar uma folha do caderno sobre uma moeda e passar o lápis por cima dos relevos. Ou jogar o jogo do galo. Ou Batalha Naval. O maldito tédio foi uma parte longa e importante dos anos oitenta, como, espero, de todas as infâncias em todas as décadas, onde quer que tenha sido. É um sinal de vida saudável. Se a gratidão não é um traço da infância, como haveríamos de saber que o tédio também assinalava que éramos livres e despreocupados? Com toda a certeza, uma criança que tivesse de trabalhar nas fábricas, nas obras ou no campo não saberia o que era o aborrecimento, mas o tédio era nosso, e por isso terrível, tornava os minutos eternos, a existência numa sala de espera. Por vezes, era tanto e tão agudo que chegá- vamos a assistir ao programa 70×7, um magazine religioso emitido aos domingos de manhã. Sem computadores, sem telemóveis, sem nada a não ser baralhos de cartas ou bonecada, livros lidos e relidos, esperar que começasse um programa de que gostávamos na televisão era uma atividade em si mesma, um treino que nos levaria a mestre zen se soubéssemos o que era isso.
Em geral, ninguém tinha ido a Nova Iorque, ninguém mergulhara com golfinhos, ninguém fora fazer surf para o Havai ou subira o Kilimanjaro. Diríamos dessas pessoas que eram aventureiros, mas como se fossem outra espécie, como os marcianos ou os homens da Atlântida. Eram outros os factos que nos tornavam parte do mundo, como uma das grandes perguntas do princípio da década: «Quem matou J.R.?», o vilão em Dallas. A série, que se prolongou durante anos, era a cores, muito a cores, com carros grandes, mulheres espampanantes, de ombros larguíssimos por causa dos enchumaços, cabelos armados em permanentes, homens que chegavam a casa e bebiam um whisky servido de uma garrafa de cristal, foi um dos alicerces do começo da hegemonia cultural americana, tão típica dos anos oitenta como o cubo mágico e o lince da Malcata, que era preciso salvar. Um dos maiores centros comerciais da cidade do Porto, o Dallas, obteve o nome a partir da série.
O cheiro, a cor e o formato que as coisas dos Estados Unidos da América deram aos nossos oitenta estão ainda por toda a parte. Um miúdo português cresceu a habituar-se aos anglicismos e à língua inglesa com sotaque americano, bem como referências explícitas, como os filmes de cowboys (os westerns) e de gangsters e passados na Segunda Guerra Mundial, que a RTP emitia a eito, onde os Americanos eram os bons e os vencedores. Em vez de tramas decorridas em Angola ou Moçambique, ou séries acerca do 25 de Abril, fomos sendo servidos de persistentes teorias sobre a morte de Kennedy, versões da guerra do Vietname e dramas urbanos de polícias e gangues (como em A Balada de Hill Street, de 1981). À medida que os fomos vendo em videocassete, devorámos os filmes Rambo e Rocky, ou ainda aqueles com Chuck Norris e Schwarzenegger. Que pudesse haver uma ideologia, propósitos políticos, mensagens, enfim, uma retórica neste cinema de ação assente na ideia do herói individual autossuficiente, marcado pela atmosfera carregada que a guerra do Vietname provocava, ultrapassava-nos. Rambo era Rambo e na Guerra do Vietname, como nas outras guerras dos outros filmes havia maus (os locais) e bons (os americanos). Porquê? Porque era assim que achávamos que era.
Nação estaleiro
Depois da morte de Sá Carneiro, Portugal tinha um novo primeiro-ministro, Francisco Pinto Balsemão. A situação económica era péssima, como vinha sendo desde a Revolução, mas nem por isso a música portuguesa estava menos vibrante. Uma das mais enigmáticas e inebriantes canções foi um lado B de um maxi-single cantado por uma locutora e depois jornalista da RTP, Manuela Moura Guedes. Longe do estilo rock roufenho vestido de ganga, o suave «Foram Cardos Foram Prosas» é uma das músicas mais conseguidas daquela fase, distinguindo-se bem da misturada. O autor da letra era Miguel Esteves Cardoso, um intelectual brilhante que agitava a elite lisboeta. Filho de um português e de uma inglesa, nascido em Lisboa em julho de 1955, o mais velho de três irmãos estudava em Évora quando se deu o 25 de Abril. No reviralho, iria para Manchester estudar filosofia política e por lá ficou durante oito anos, formando-se com uma classificação brilhante, até regressar a Portugal. À medida que entramos nos oitenta, Esteves Cardoso, depressa sintetizado como «o MEC», começa a aparecer na televisão e a ser mais frequente nos jornais e revistas, em textos de opinião, tomadas de posição, crónicas, entrevistas ou artigos. Se Herman José usou na lapela o colégio alemão, Esteves Cardoso, apenas um ano mais novo e também estrangeirado, exibia o seu doutoramento numa universidade inglesa como credencial. A sua tese chama-se Ideology of Lusitanian integration – Saudade, Sebastianism and ideology in Portuguese politics 1914-1933 e foi escrita nos anos em que enviava textos que publicava em O Jornal e no Se7e, em revistas e se diziam no programa de rádio Café Concerto, da Comercial. Eram textos quase sempre acerca de música. Muitos estão reunidos em Escrítica Pop, Um Quarto da Década do Rock, 1980-1982, o primeiro livro publicado de MEC. No texto de apresentação, publicado na contracapa da esgotadíssima primeira edição pela Editora Querco, o escritor e jornalista veterano Fernando Assis Pacheco, amigo e admirador de MEC, escreve:
«Há em Miguel Esteves Cardoso dois Miguéis Esteves Cardoso, o paciente recenseador de músicas que aqui se lê e o outro, o ficcionista, ainda sem estórias publicadas e não sei sequer se escritas. Mas que essoutro existe, aposto dobrado contra singelo: muitas das prosas críticas deste livro são já plots, fábulas, ficções, tudo servido por um uso pessoalíssimo da língua, não transmissível a epígonos. (…). Do talento não falo: parece-me evidente, com o único senão de fazer uma legião de invejosos.»
MEC não era segredo para a classe jornalística, faltava pouco para o país vir a conhecê-lo melhor. Foi um «menino marrão», disse-o numa entrevista a Carlos Cruz, em 1991, já muito popular, afirmando que escrevia por dinheiro. «E para ganhar dinheiro, era esperado que tivesse piada».
Terei sido apresentado à escrita de Esteves Cardoso a meio da década, já ele publicava no Expresso. O meu pai era um comprador e leitor de jornais e eu pegava-lhes, também porque havia largas porções do tempo em que estava aborrecido de morte. Gostava de desenhar umas bigodaças e uns dentes de vampiros nas fotografias. Os meus bichos carpinteiros, como dizia a família, não tinham descanso nem têm relação com os anos oitenta, mas é uma lembrança que lhes associo em permanência. Nas publicações, acompanhava o Sporting, lia as tiras de banda desenhada, fazia os passatempos e não falhava as últimas da competição anual de construções na areia, promovida pelo Diário de Notícias nas praias portuguesas, começando sempre a leitura pelo fim, um hábito que mantenho, pelas páginas de cultura popular e do desporto. Seis anos depois do 25 de Abril e com milhares de Portugueses repatriados, eram precisas casas, escolas, estradas, saneamento, iluminação nas ruas. Portugal era um estaleiro. Em fevereiro de 1982, no jornal A Capital referia-se um plano de emergência na Educação de adjudicação de mais vinte e oito escolas de preparatório e secundário. A chegada de muitas crianças do antigo Ultramar justificava essa carência, bem como uma progressiva consciência nas famílias de que era importante assegurar uma educação aos filhos, e a circunstância de um número substancial de mulheres portuguesas estar no mercado de trabalho e precisar de um sítio onde deixar os filhos. O ministro da Educação de então revelava que, em 1982, quarenta e cinco novas escolas começariam a funcionar e em 1983 seriam setenta e três.
No meu cosmos, posso assegurar que havia sempre obras na minha linha de vista. A minha infância e adolescência decorreu a atravessar obras, construções e consequentes lamas, madeiras, montes de brita, areia, tijolos, telhas e ferros. Era raro o dia de inverno que não chegava a casa com os sapatos enlameados.
A zona onde vivia ficou irreconhecível em meia dúzia de anos, com vastas urbanizações, de todas as cores e feitios, a ocuparem os terrenos de flores silvestres, silvados e ervas onde antes brincava, colhia amoras e chupava azedas, numa voragem que se estendeu pelos noventa. Os percursos que fazia em criança para a escola tornaram-se extensas fileiras de prédios, pontuando o chamado desenvolvimento que alarga as cidades para as periferias.
Entre o princípio e o final da década foram construídas dezenas de milhar de casas, sobretudo apartamentos, que a pouco e pouco deixavam de se chamar «andares». Lisboa tornava-se numa Grande Lisboa, engolindo a zona da Amadora, que subiu a cidade em 1979, a margem sul do Tejo, a Linha de Sintra e a de Cascais, esticando-se na cidade para as zonas do Alto do Lumiar ou de Telheiras, por exemplo. Obviamente, esta construção estendeu-se a outras zonas do território, numa oferta ligada às políticas públicas como o Fundo de Fomento à Habitação e cooperativas de habitação, programas de realojamento, ajudada numa fase posterior pelo preço cada vez mais baixo do dinheiro, por conta da descida dos juros, aspetos da vida adulta que desconhecia, embora soubesse que os meus pais pagavam ao banco um empréstimo todos os meses. O que sabia também é que o Algarve estava todo «estragado pela construção», como tantas vezes se ouvia. A necessidade, a falta de políticas de território e legislação apropriada permitiram inúmeras construções clandestinas, um caos de gostos, opções e soluções de ocupação de espaço, com quintais, placas de lusalite, zincos, cimentos e grades usados como o construtor-proprietário bem entendesse.
A construção civil não começou nos anos oitenta, como é evidente, mas se devemos a esta década o gelado Calippo, também devemos vários bairros e conjuntos de prédios de arquitetura discutível, colmeias de organização e cores muito diversas, com varandas que os moradores se apressavam a fechar com alumínios, formando núcleos de edifícios amontoados em vales e colinas que tornam ainda hoje bastante peculiar, para não dizer outra coisa, a paisagem urbana portuguesa nos arredores das cidades. É de registar que a nostalgia recorrente de quem cresceu perto destas façanhas de cimento e betão não inclua marquises, mas estas existiram no país muito pouco desenvolvido saído da ditadura, em que o gosto e o critério foram vítimas da urgência. Era um tempo em que a sigla mais ouvida deixou de ser MFA (Movimento das Forças Armadas) e passou a ser CEE (Comunidade Económica Europeia) – ajudou que em março de 1981, vindos do Porto e ainda sem Rui Reininho, o Grupo Novo Rock, GNR, lançasse o single «Portugal na CEE», uma sátira cantada a essa obsessão dos políticos que era a adesão ao mercado único. Década depois, é inquestionável a importância de Portugal fazer parte da União Europeia, mas na altura parecia que só alguns políticos se preocupavam com o imperativo que era integrar o mercado comum. É duvidoso que o povo de um modo geral, ou até os artistas, tivesse noção da fortuna que o país viria a ter a partir de 1986. Certamente as crianças não tinham a menor ideia.
Cantavam os GNR:
«Na rádio, na TV
Nos jornais, quem não lê? Portugal e a CEE
Quanto mais se fala menos se vê
Já estou farto e quero ver
Quero ver Portugal na CEE Quero ver Portugal… na CEE»
Como uma língua partilhada, aprendemos logo como funcionava o nosso planeta. Telefonava-se de cafés e pagava-se ao período, como se telefonava de cabines com moedas. Ia-se ao pão, com um saco de pano, o comerciante agarrava as carcaças com a mão depois de manusear as notas e moedas do cliente anterior. Ninguém queria saber. Havia outros problemas na nação que podiam ser pitorescos, como quando os stocks de cigarros em Portugal estavam quase no ponto zero e houve uma invasão espanhola de tabaco.
Em janeiro de 1982, numa das primeiras ocasiões a seguir ao 25 de Abril em que as senhoras puderam usar joias em público sem receio de parecer mal, foi apresentado no Hotel Ritz Cozinha Tradicional Portuguesa, o clássico de Maria Lourdes Modesto. De certeza ter-se-á falado da falta de cigarros, já que quase todos os adultos fumavam. É que no princípio de fevereiro, nos armazéns da Tabaqueira, em Cabo Ruivo, na zona oriental de Lisboa, já só havia maços de Kentucky, uma marca barata e de qualidade duvidosa, e de Gama, tabaco de cachimbo. Uma greve na Tabaqueira estava a dar com os fumadores em doidos, os seus queridos SG eram uma miragem. Uma primeira solução foi trazer cigarros dos Açores. A outra foi importar os cigarros de marca Fortuna de Espanha. O jornal A Capital acompanhou a saga com todo o interesse e noticiou que tinham entrado em Portugal um milhão de maços de Fortuna. Em março, um mês depois da greve terminar, o abastecimento ainda não fora restabelecido, mas também já não havia os cigarros espanhóis à venda. Essa era a boa notícia, os Portugueses não suportavam os Fortuna – na Marinha Grande, no Carnaval, um carro alegórico dizia mesmo «Fortuna, El Invasor». Seria do sabor? Seria pela origem espanhola? Por causa dos Felipes?
A televisão abria-nos o mundo, os jornais e as revistas reforçavam as referências, era lá que podíamos ver as fotografias e olhar de perto a galeria de estrelas e atrações. O Sandokan, o comandante John Koenig, a Abelha Maia, António Variações, que se definiu como «qualquer coisa entre Nova Iorque e a Sé de Braga», a postura militante e empolgada de bandas como os Heróis do Mar. Os anúncios a filmes de artes marciais e indianos nos cinemas, bem com os do Trinitá, com Bud Spencer, e fitas colossais, como Piranha, Terramoto e A Torre do Inferno, que nos intrigavam, estavam em cena durante semanas e semanas. Daríamos um dedo para as poder ver, mas não podíamos, não eram para a nossa idade. Em quiosques e papelarias, multiplicavam-se revistas de crochet e fotonovelas, publicações a preto e branco para mulheres. Pressentindo que não era para nós, gozávamos com o nacional-cançonetismo liderado pelo insuperável Marco Paulo, aríete dos microfones, dono de uma cabeleira de caracóis inesquecível. Na minha zona, «Dois Amores» cantava-se «Eu tenho dois tratores, que em nada são iguais/Um é a motor e o outro a pedais». Marco Paulo, cantor e galã, competia na televisão com os cançonetistas que vestiam casaco preto de cabedal e tinham bigode e cabelo liso e diziam «camarada» por tudo e por nada. «Mais e Mais Amor» é de 1981, «Anita» de 1982, «Flor sem Nome» de 1983 e «Morena, Morenita» de 1984. Fazíamos troça das canções, mas ladrávamos os refrãos com alegria, as músicas estavam sempre a tocar na rádio, nos populares discos pedidos.
Os cantores românticos e populares, que percorriam o país em concertos com palcos improvisados em estrados de feira, adros de igrejas, alguns em cima de carroças, animando festas e romarias, são uma parte importante da cultura popular e da sonoridade do Portugal pré-adesão à Comunidade Europeia. Reis da cassete pirata, afundaram-se num desterro a dada altura, para ressurgirem anos mais tarde como música pimba, um qualificativo que não existia nos anos oitenta. Curiosamente, porque dava a impressão de que estavam sempre junto de nós, na cidade, ou seja, na tele- visão, as Doce, Carlos Paião, José Cid, Herman José, Rui Veloso e inúmeros outros artistas que adorávamos, também andarilharam por este percurso artístico, conhecido como a estrada.
Faziam-se puzzles, jogava-se Loto, Monopólio, Mikado, Risco, Cluedo, Petróleo, Jogo da Glória, Sabichão, às cartas, damas, dominó e outros, como constatamos depressa quando entabulamos conversas com gente das mesmas idades ou próximas. Também verificaremos que alguns se inflamam depressa quando não se lembram do seu jogo predileto. No meu caso, nunca joguei e nunca tinha ouvido falar do Jogo dos Cavalinhos, mas garantem-me que era um êxito em muitas casas. Quem as tivesse, brincava com pistas de automóveis e comboio, talvez com Lego, talvez ao Subbuteo, que eram brinquedos caros. Na rua ou na escola, as brincadeiras de grupo eram físicas. No começo dos oitenta, ainda apanhámos infâncias bastante belicosas, empunhámos armas de brincar de toda a espécie, revólveres, espingardas, espadas, punhais, armas de raios, da ficção científica, paus a fazer de espadas improvisadas, fisgas e arcos construídos com varas de madeira verde e flechas de galhos direitos. Poucas coisas me deram mais gosto na vida que possuir uma bisnaga que funcionasse, que atirasse jatos de água certeiros e não avariasse ao fim de meia hora. Longe de ser o único miúdo armado com um revólver de fulminantes, a ideia de que seria feio e errado brincar às guerras pura e simplesmente não existia. Brincar não era ambíguo ou talvez seja melhor dizer que brincar não era a sério, mal sabíamos que vivíamos os últimos tempos disto, que nos despedíamos da infância do passado. Os primeiros computadores com jogos e o videogravador estavam a chegar.
A sempre traiçoeira memória avisa-me que tinha mais frio no inverno e mais calor no verão do que em adulto, que andava com os joelhos sempre esfolados, tenho marcas e cicatrizes como prova, que assobiava por tudo e por nada, saltava os degraus em vez de os descer, era provavelmente feliz. Talvez se tivesse nascido muito mais tarde me chamassem hiperativo. Tinha pressa, isso tinha. Compreendi mais tarde que fomos felizes em larga medida porque esse passado passou. Sobrevivemos-lhes.