A morte de Ebrahim Raisi num acidente de helicóptero no mês passado precipitou as eleições presidenciais no Irão que só ocorreriam daqui a um ano. Em confronto estão agora três conservadores e um reformista que tem defendido uma mudança gradual e um compromisso com o Ocidente.
Os resultados oficiais das eleições desta sexta-feira, que poderão não ser conhecidos antes de domingo, são imprevisíveis, com sondagens — sobretudo não independentes — a darem resultados distintos (a mais recente coloca o candidato reformista em primeiro lugar, mas outras já o atiraram para segundo ou terceiro). Em jogo, parece estar mais do que o lugar da presidência.
“A eleição presidencial de sexta-feira vai decidir não apenas quem lidera um país cada vez mais antagónico em relação ao Ocidente, mas também ajudará a moldar os planos de sucessão para o próximo líder supremo e indicará se os iranianos estão a desistir do seu sistema de governação islâmica“, resume o Wall Street Journal, que apelida as eleições como um “referendo informal” ao regime, que poderá ajudar a traçar a sucessão a Ali Khamenei, o líder supremo de 85 anos, a quem responde o Presidente do país.
Iranianos vão às urnas para presidenciais mais abertas do que o esperado
As eleições ocorrem numa altura em que o Irão enfrenta várias crises, que vão desde o fracasso do acordo nuclear com outras potências mundiais, o regresso das sanções comerciais impostas pelos EUA, que paralisaram a economia, a inflação a aproximar-se dos 50%, a repressão contra as mulheres que, entre outros fatores, tem motivado protestos nas ruas, numa sociedade descrita pela imprensa internacional como descrente nos resultados eleitorais.
Um reformista na linha da frente e os conservadores. Quem são os candidatos e que hipóteses têm?
Os iranianos só seriam chamados às urnas em 2025 para as eleições presidenciais, mas todo o processo foi antecipado com a morte de Ebrahim Raisi num acidente de helicóptero no mês passado. Mohammad Mokhber foi nomeado pelo líder supremo do Irão como Presidente interino, mas não se candidatou às eleições.
Cabe ao Conselho dos Guardiães, um órgão não eleito de juristas e teólogos, aprovar os nomes dos candidatos. A luz verde foi dada a apenas seis nomes, pelo caminho ficaram outros 74. Dois (ultraconservadores) desistiram esta quinta-feira numa tentativa de concentrar os votos nos restantes candidatos conservadores e evitar uma ascensão do candidato reformista.
O nome mais surpreendente na lista aprovada pelo Conselho dos Guardiães foi, precisamente, o de Masoud Pezeshkian, ex-ministro da Saúde de 69 anos, único candidato da ala reformista, que tem defendido uma mudança gradual e um compromisso com o Ocidente. Em 2009, na sequência dos inflamados protestos contra a eleição de um Presidente da linha dura, Mahmoud Ahmadinejad, expressou-se contra o uso da força sobre os manifestantes. Foi também uma voz crítica, há dois anos, da morte de Mahsa Amini, 22 anos, às mãos da polícia depois de ter sido detida por não usar corretamente o hijab (véu islâmico).
Mas embora possa significar alguma mudança face ao sistema atual, Pezeshkian não deverá cortar com o regime de Khamenei. O The Telegraph lembra que, numa entrevista recente, disse que seguiria as políticas do líder supremo caso ganhasse as eleições. “Embora seja catalogado como um reformista, continua a acreditar no mesmo regime corrupto, repressivo e incompetente, e no sistema que todos os outros conservadores e seguidores da linha dura acreditam”, observa Jason Brodsky, diretor na United Against Nuclear Iran, uma organização sem fins lucrativos sediada nos EUA, citado pelo jornal britânico.
No entender de Brodsky, a candidatura de Pezeshkian — que tem o apoio dos ex-Presidentes reformistas Hassan Rouhani e Muhammad Khatami — teve aprovação com o objetivo de “gerar afluência às urnas e tentar legitimar uma eleição ilegítima”. Quando o nome teve luz verde, haveria uma crença de que não seria uma ameaça significativa ao sistema e daria uma imagem de abertura. “O regime está a apostar que ele é desconhecido a um grau que não representa uma ameaça significativa a candidatos mais preferidos pela Guarda Revolucionária e o gabinete do líder supremo”, acrescenta o analista.
Mas a última sondagem conhecida pode ameaçar esta perceção — e terá mesmo gerado o pânico na ala ultraconservadora. A sondagem divulgada na quarta-feira pela organização ISPA (Iranian Students Polling Agency), que é financiada pelo governo iraniano, colocava Pezeshkian à frente com 33,1% dos votos. Em segundo lugar aparecia o conservador Jalili, com 28,8%, e em terceiro Ghalibaf, ex-comandante da Guarda Revolucionária Islâmica, entidade que o apoia.
Parece, portanto, estar tudo em aberto, não sendo certo nem que o eleitorado reformista aflua às urnas, nem que o resultado oficial reflita a vontade popular. O The Telegraph resume a situação: “Continua a existir a possibilidade de o aumento do apoio dos iranianos liberais poder pôr em causa os planos do regime, forçando-o a recorrer a uma manipulação mais invasiva do que o habitual ou a aceitar um Presidente indesejável”.
Pezeshkian pode, eventualmente, conseguir tirar partido da divisão nas urnas entre os dois candidatos conservadores, Ghalibaf e Jalili (o segundo tem sido pressionado a desistir em favor do primeiro, apoiado pela Guarda Revolucionária).
Mohammad Bagher Ghalibaf, presidente do Parlamento iraniano, é visto como relativamente mais moderado do que Saeed Jalili, o ex-chefe para as negociações nucleares que vem de uma linha mais dura. O candidato número 1 da Guarda Revolucionária continua a ser Ghalibaf, tecnocrata com ligações àquela divisão das forças armadas iranianas. Mas não agrada aos ultraconservadores.
Jalili também tem fortes laços com Khamenei e a Guarda Revolucionária. Era próximo de Raisi e um dos nomes apontados como um candidato da continuidade. Em 2021, retirou-se a favor do presidente (entretanto falecido) nas eleições. Tem 58 anos e é um veterano da guerra entre o Irão e o Iraque, onde perdeu uma perna.
Além destes três nomes, mantém-se na corrida Mostafa Pourmohammadi, o único clérigo xiita candidato. Desempenhou funções nos ministérios da Administração Interna e nos serviços secretos do Irão, entre outros cargos, mas não tem aparecido como um dos favoritos.
Os resultados desta sexta-feira afiguram-se, portanto, largamente incertos. A lei dita que há lugar a uma segunda volta — que aconteceria na próxima semana — com os dois candidatos mais votados se nenhum dos nomes atingir, pelo menos, 50% de votos esta sexta-feira.
Ali Khamenei avisou, esta semana, contra candidatos que “pensam que todos os caminhos para o progresso passam pela América”, em referência a Pezeshkian. E apelou à “máxima” afluência às urnas, defendendo que as eleições “ajudam a República Islâmica a vencer os seus inimigos”.
A “legitimidade” do sistema em causa perante um eleitorado desmotivado
Como escreve o The Washington Post, a participação nestas eleições é crucial para a “legitimidade e estabilidade” do regime. A taxa de participação já conheceu melhores dias. Em 2017, atingiu os 70%, segundo os meios de comunicação estatais revelaram na altura. Este ano, só 40% dos eleitores elegíveis participaram nas eleições parlamentares, um mínimo histórico para o país.
O jornal retrata uma sociedade descrente nos resultados eleitorais e na capacidade de imprimirem uma mudança ao regime. A Al Jazeera também dá conta desta descrença coletiva, no dia da ida às urnas: “Alguns eleitores estão a ficar em casa porque sentem que nada vai mudar no sistema e que vai haver continuidade em vez de mudança”.
O país tem enfrentando tempos conturbados a nível político, social e económico. Internamente, três vagas de protestos levaram milhares para as ruas contra a subida dos preços, as medidas de austeridade e os rígidos códigos morais do país, a que as autoridades responderam com repressão.
No campo externo, a tensão subiu de tom com o ataque do Hamas contra Israel a 7 de outubro e a resposta lançada pelas forças israelitas na Faixa de Gaza. E o ataque do Irão sem precedentes sobre Israel em abril quase criou um novo foco de guerra na região já de si inflamada e onde Teerão apoia milícias como o Hamas, o Hezbollah (no Líbano) ou, os houthis do Iémen.
A noite em que a “guerra-sombra” do Irão e de Israel ficou a um passo de se tornar uma guerra aberta
Uma análise do think tank norte-americano Conselho das Relações Externas (Council on Foreign Relations) não antecipa grandes alterações na política externa, numa altura em que os EUA também decidem nova liderança, nem interna. Por exemplo, lembra a NPR, nenhum dos candidatos promete medidas mais controversas, como mexidas no rígido código de vestuário imposto às mulheres (que levou à detenção de Mahsa Amini, em 2022).
No plano externo, Pezeshkian já admitiu reavivar as negociações para um acordo nuclear e conta com o apoio do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Mohammad Javad Zarif, que negociou o acordo nuclear do Irão de 2015. E mesmo os candidatos Pourmohammadi e Jalili já defenderam uma diplomacia mais ativa noutras frentes.
“O eixo de resistência do Irão tem tido um êxito tão notável que é difícil perceber por que razão alguém procuraria perturbar uma política que tem permitido a Teerão projetar poder com alguma impunidade”, lê-se num artigo do think tank norte-americano Conselho das Relações Externas.
Também não é claro como evoluirá a relação com a Rússia. O The Wall Street Journal escreve que os candidatos conservadores defendem um fortalecimento das relações com a Rússia e a China, mas o think tank Chatham House chama a atenção, que “até o líder supremo pode mudar de opinião sobre a Rússia se os interesses do regime o exigirem”. Dois fatores que podem levar a essa mudança são as sanções e a economia em deterioração.
O que os resultados podem revelar sobre a sucessão de Khamenei
A possibilidade de uma segunda volta é real, mas pode não agradar ao líder supremo pela incerteza que acarreta. Ao The Washington Post, Suzanne Maloney, vice-presidente e responsável por política externa da Brookings Institution, um instituto de investigação dos EUA, defende que “uma segunda volta poderia dar início à mobilização dos iranianos interessados em reformas ou mesmo em resultados mais ambiciosos, de uma forma que poderia ser ameaçadora para o controlo absoluto do sistema”.
Aliás, “constrangimentos” introduzidos no processo eleitoral, como a verificação rigorosa dos candidatos, visaram minimizar a imprevisibilidade do voto. “Tradicionalmente, Khamenei não tem sido um grande apostador [gambler] na política interna”, acrescenta.
No Irão, o Presidente responde ao líder supremo em questões críticas como a segurança e a defesa nacional — a autoridade suprema não é do Presidente mas sim do líder supremo, cujo gabinete exerce influência sobre as principais decisões de políticas externa e interna. Mas o Presidente tem algum poder para definir as políticas económicas do país, supervisionar o orçamento nacional e assinar tratados e legislação.
Para os mais conservadores, o objetivo da eleição desta sexta-feira será manter a influência na presidência; para os reformistas, trata-se de uma possibilidade de regressar à cena política.
Mas as eleições têm mais em causa do que o lugar na presidência. Ali Khamenei tem hoje 85 anos e especula-se sobre quem o irá substituir. Ebraim Raisi era um dos nomes favoritos, mas a sua precoce morte trocou as voltas a muitos. O novo Presidente pode, eventualmente, posicionar-se como um potencial sucessor.
Outra incógnita é o grau de mudança que os resultados vão imprimir à sociedade iraniana. “Em vez de uma mudança radical, as eleições poderão produzir alterações mais pequenas, embora significativas“, acredita Vali Nassr, professor de assuntos internacionais e especialista em Médio Oriente na Universidade Johns Hopkins, em declarações ao The New York Times. “As vozes ao leme que querem uma direção diferente podem levar a República Islâmica a recuar em algumas das suas posições”, avalia.