Discurso de Jerónimo de Sousa

no encerramento do XXI Congresso do PCP

“Um Congresso que debateu uma deteriorada situação social agravada pela situação sanitária, mas também resultado dos baixos salários, da precariedade, das injustiças,  das alterações para pior da legislação laboral que fragilizou quem trabalha. Hoje há mais portugueses vítimas do aprofundamento da  exploração, do  desemprego e da  pobreza que aumentaram e continuam a aumentar. Hoje há mais incertezas e inquietações em relação ao futuro das suas vidas. Esta realidade não se combate com estados de emergência excessivos e inconsequentes. Combate-se com medidas de emergência social, dando sentido e dimensão ao objetivo de que ninguém deve ficar para trás”.

O PCP nunca votou a favor do estado de emergência e é, por princípio, contra qualquer figura que limite os direitos previstos na Constituição. No primeiro estado de emergência o PCP absteve-se, mas foi uma abstenção contrariada que só durou esses primeiros quinze dias de limitações. Desde então, o PCP tem votado contra e critica várias vezes esta opção, considerando que para o controlo sanitário bastava recorrer à lei da proteção civil e ao sistema de vigilância em saúde pública. Jerónimo volta assim a recusar o estado de emergência, dizendo que a pandemia se combate com medidas sociais, não com suspensão de direitos.

“É preciso travar a destruição de sectores económicos e assegurar o emprego e a vida de muitos milhares de micro e  pequenos empresários. Reverter rapidamente o caminho de recessão económica e relançar a economia. Impedir o retrocesso social e melhorar as condições de vida dos trabalhadores e do povo.  E isso só é possível com medidas concretas como fizemos e fazemos na Assembleia da República na nossa iniciativa política, como fazemos junto dos trabalhadores e das suas organizações. Como fizemos no quadro da discussão do Orçamento do Estado. Um caminho que ficou curto porque o PS não se liberta das suas escolhas e opções”.

Jerónimo de Sousa volta a justificar a opção por viabilizar o Orçamento do Estado para 2021. Se não fosse o PCP, destaca o secretário-geral, não tinham existido medidas mais positivas para melhorar as condições de vida do “trabalhadores” e do “povo”. Acoplado a este puxar dos louros pelas medidas positivas do Orçamento vem sempre uma crítica ao PS. Para o PCP, o Orçamento do Estado para 2021 só não é melhor porque o PS não quer. E, atira, sem estrondo ou especial acidez (até porque este é um caminho que os comunistas pretendem continuar) ao governo socialista. Para já o “caminho ficou curto”, mas, como já disse António Costa para Jerónimo de Sousa: “Enquanto houver estrada para andar…”

“Mas, enquanto alguns desistiam, se há avanços, medidas consagradas dirigidas aos trabalhadores, aos reformados, às pequenas empresas, à cultura, ao Serviço Nacional de Saúde e aos seus profissionais, todas têm a marca, a contribuição, a proposta do PCP.”

Quando o fazem, nem sequer pronunciam o nome, mas, de quando em quando, lá vêm as farpas comunistas dirigidas ao Bloco de Esquerda. Se, na última entrevista ao Observador, o secretário-geral comunista sugeriu que o partido liderado por Catarina Martins é o “cata-vento” (por oposição ao PCP como parceiro “confiável”), neste último discurso Jerónimo de Sousa continua a querer cavalgar essa ideia. O PCP não comenta, por princípio, as opções dos outros partidos, mas não resiste a ir comentando no caso do Bloco. E a tese comunista é muito parecida com a do PS: o Bloco é um desertor. E por uma pouco nobre razão: o oportunismo. Ao mesmo tempo, Jerónimo explica ao partido e ao país que tudo o que foram medidas que melhoraram a vida dos trabalhadores, dos reformados e o SNS têm a “marca PCP”. Ou seja: quem beneficiar destas medidas, deve isso ao PCP e não ao Bloco de Esquerda.

“Um Congresso que demonstrou e provou que sim é possível uma política alternativa, patriótica e de esquerda (…) Uma política alternativa assente na afirmação da soberania nacional liberta dos constrangimentos externos e da submissão à União Europeia e ao seu colete de forças, do combate à corrupção e à subordinação do poder político ao poder económico. Política alternativa que, na sua concretização, precisa da convergência dos democratas e patriotas, da luta dos trabalhadores e do povo, do reforço do partido – as componentes e forças motoras da construção da alternativa necessária ao País. Alternativa política que não é possível só com o PCP, mas também não será possível sem o PCP. Sim, este é um partido necessário e indispensável para construir um futuro de progresso e desenvolvimento!

Não há dúvidas: o PCP optou por não hostilizar o PS neste Congresso e entende a relação com os socialistas como um instrumento necessário para impor as políticas que defende. Se fosse possível voltar aos tempos do Gonçalvismo, do PREC e fazer tudo só com prata da casa, tudo bem. Mas a realidade é outra e o PCP não a ignora. Jerónimo tem a humildade política de reconhecer que o partido precisa do PS para afirmar uma alternativa que, diz com as letras todas, “não é possível só com o PCP”. Isto vem exatamente na mesma linha do que tinha dito no discurso de abertura e que foi secundado por outros dirigentes, como João Oliveira e Jorge Pires, assumindo a necessidade de reforçar a influência do PCP. Logo de seguida, Jerónimo de Sousa diz algo mais habitual: que essa alternativa “não será possível sem o PCP”. Os comunistas avisam que PS e BE não serão suficientes para defender a alternativa política de que o país precisa. Aí, garantem, há um partido “necessário e indispensável”: o PCP, claro.

Falta fazer a obra. Elegemos um novo Comité Central que elegeu os membros dos seus Organismos Executivos, a Comissão Central de Controlo e o Secretário-Geral do Partido. Não estamos aqui a prazo datado nem em período experimental, mas sim disponíveis para fazer, que temos de fazer o que o Congresso decidiu.

Atente bem na frase sublinhada a amarelo. É uma frase que não estava no discurso escrito de encerramento do Congresso que foi distribuído aos jornalistas — mas Jerónimo de Sousa disse-a do púlpito. E isso não é um detalhe. Por norma, os discursos, mesmo os do secretário-geral, são validados pelo Comité Central. E este secretário-geral, que nos últimos meses tem ouvido várias pessoas a questionar se tem condições (pela idade) de continuar no cargo, que tem lido notícias de que pode haver um Congresso Extraordinário para o substituir a meio e que até teve, pela primeira vez, um voto contra de um membro do Comité Central, passou ao ataque para dizer que tem experiência, mas não está à experiência. Jerónimo de Sousa quis deixar o sinal de que vai ficar os quatro anos e não sair a meio. O secretário-geral lembra que ainda é ele quem manda na casa e que a ele ninguém lhe propõe contratos a prazo — mas a verdade é que sentiu necessidade de dizer isso e de o dizer de forma surpreendente, o que pode indiciar alguma fraqueza política. É uma mensagem para dentro e para fora. “Falta fazer obra”, diz, e ele, operário, já arregaçou as mangas.

Reafirmámos a nossa natureza e identidade de um Partido Comunista, marxista-leninista portador de um ideal e projecto comunistas. Reafirmámos a nossa dimensão patriótica inseparável da nossa solidariedade internacionalista. Reafirmámos a nossa opção de partido de classe, um Partido da classe operária e dos trabalhadores, que converge com os intelectuais, os pequenos agricultores e produtores, os micro, pequenos e médios empresários.

A nível ideológico, o PCP continua o mesmo. A sua matriz permaneceu imutável nos últimos 100 anos. O marxismo-leninismo — como já era evidente no discurso inicial de Jerónimo e em discursos de intelectuais, como Albano Nunes — continua a ser o grande alicerce ideológico do PCP. É portanto, “um partido de classe”, da “classe operária”. Sendo um partido “patriótico” (que não abdica do “P” após o “PC”), os comunistas continuam a afirmar a “solidariedade internacionalista”. Neste particular das relações externas, é certo que já deixou praticamente cair a Coreia do Norte, que já não morre de amores pela China e que agora prefere enaltecer outras geografias (como a Venezuela ou a Síria), mas continua a ser um elemento importante da definição do partido.

Temos um Partido admirável que ainda nos surpreende. Não nos estamos a preparar para o combate. Estamos já a travá-lo. De imediato a batalha das presidenciais e no alargamento unitário de apoio ao nosso candidato João Ferreira, no objectivo de trazer à luta milhares de trabalhadores flagelados nos seus salários, nos seus empregos, nos seus direitos.

Jerónimo de Sousa enalteceu mais uma vez o candidato presidencial João Ferreira. Mais do que puxar por um seu potencial sucessor, com quem até simpatiza (comparou-o a ele próprio na entrevista ao Observador), o secretário-geral do PCP elege aqui uma primeira prioridade: as presidenciais. A vitalidade do partido que lidera depende muito mais de eleições autárquicas, mas Jerónimo dá aqui sinal de querer uma batalha de cada vez. Primeiro, tudo mobilizado para apoiar João Ferreira, depois então haverá tempo para apostar fichas nas autárquicas (que, curiosamente não foram referidas neste discurso). Até porque nas presidenciais João Ferreira tenta não ficar fechado nas fronteiras do partido, ensaiando um “alargamento unitário de apoio”. O facto de o PS não ter um candidato próprio ajuda: os deputados socialistas Ascenso Simões e Isabel Moreira já declararam o seu apoio a João Ferreira.

Estamos a finalizar o XXI Congresso. Viemos de longe no processo da sua preparação e realização.

Nas colunas do Congresso as preferências recaem sobre antigos militantes comunistas como José Afonso (os comunistas não gostam da expressão “Zeca”) ou Carlos Paredes, mas Jerónimo iniciou este último discurso com um “viemos de longe”. A referência remete para José Mário Branco que, na música “Eu vim de longe”, canta: “Eu vim de longe/De muito longe/O que eu andei p’ra’qui chegar“. Ora, Jerónimo de Sousa diz que os delegados vieram de longe, mas no sentido figurado, já que o que pretende dizer é que também enfrentaram batalhas (a começar pela crítica da opinião pública e a acabar nas restrições sanitárias) para conseguir realizar o XXI Congresso. Se o PCP nem sempre afinou com José Mário Branco, concordarão na parte desta música que diz que “foi um sonho lindo que acabou” quando o “mês de novembro [de 1975] se vingou”.