Os números devastadores tiveram um compreensível impacto nos media norte-americanos. NBC, CBS, Newsweek, Forbes, USA Today, todos deram conta da previsão feita por Miguel Faria e Castro: a crise do coronavírus pode destruir até 47 milhões de empregos nos Estados Unidos e fazer com que a taxa de desemprego dispare para os 32,1%. O economista português, de 31 anos, que trabalha na divisão de investigação da Reserva Federal (Fed) de St. Louis, um dos 12 braços do banco central norte-americano, foi o autor deste estudo que acabou por passar as fronteiras dos EUA, numa altura em que o mundo inteiro quer perceber quanto vai custar esta crise sanitária.
Em entrevista à Rádio Observador, Faria e Castro é o primeiro a pôr água na fervura, salientando que aqueles números só se atingem no pior dos cenários. Tudo dependerá de quanto tempo vai permanecer a economia fechada. Mas lembra que este “é um choque muito diferente do que nós alguma vez vimos”. E se o dinamismo da economia americana pode fazer com que a uma queda rápida se suceda uma recuperação igualmente rápida, na Europa o caso muda de figura. Aqui as economias tendem, em geral, “a ser mais rígidas” e alguns países como Espanha e Itália entraram no túnel “com muita dívida e muito pouca margem de manobra”. O BCE, diz, tem dado uma boa ajuda e a mutualização da dívida também pode vir a ser um instrumento eficaz para evitar que por aqui se repita o pesadelo de há dez anos.
Um estudo recente que fez para reserva federal norte-americana avança com uma estimativa do impacto do novo coronavírus no emprego nos EUA. A pandemia pode resultar na perda de 47 milhões de postos de trabalho. É um impacto inédito na economia norte-americana?
Sim, mas isto também é um choque inédito na economia norte-americana. A última vez que algo semelhante aconteceu foi exatamente há 100 anos com a gripe espanhola de 1918 a 1920, mas na altura a estrutura da economia americana era muito diferente da que tem agora. Isto é uma estimativa muito simples, é o que em inglês se chama uma back-of-the-envelope calculation, com base em dados de outros estudos. Dá-nos uma ideia daquilo que poderá acontecer no pior cenário.
Ainda que sejam cálculos simples e com pouca informação, esta previsão atira a taxa de desemprego nos EUA para 32,1%. Parece que nem na crise financeira de 2008 ou na Grande Depressão no século passado esses valores foram ultrapassados.
Sim, isto seria completamente inédito. Agora, uma coisa que quero enfatizar é que os EUA são uma economia muito dinâmica. Para o bem e para o mal, têm um mercado de trabalho muito dinâmico na medida em que há muitos movimentos de emprego para desemprego e vice-versa. Uma taxa muito elevada de desemprego, de 32%, caso seja um fenómeno que ocorra apenas durante um semestre, não será necessariamente uma situação horrível. Isto desde que a recuperação seja rápida e, no caso da economia americana, se esta situação do isolamento social não se prolongar por mais semestres. Nesse caso, a economia pode potencialmente recuperar muito rapidamente. A duração do desemprego é tão — ou talvez mais — importante do que a própria taxa de desemprego.
A forma como o presidente dos EUA tem desvalorizado a doença também contribui para o agravamento da crise, ou não tem nada a ver?
Não é claro.
Não é uma relação óbvia…
Mais do que aquilo que ele diz, o mais importante é o que as autoridades efetivamente fazem. De facto, uma das grandes diferenças face aquilo que se passou em 2008 com a crise financeira e a Grande Recessão, ou até nos anos 20 com a Grande Depressão, é que estamos a assistir a uma desaceleração voluntária e controlada da economia americana. A situação grave de saúde pública tem de ser resolvida, e uma forma de a resolver é através de medidas de isolamento social que envolvem literalmente fechar partes da economia. Neste sentido, é uma situação muito diferente da que foi vivida em 2008, em que houve um choque que emanou do sistema financeiro e que afetou o resto da economia. Neste caso, são mesmo as autoridades que estão, de forma voluntária, a fechar partes da economia.
E já é possível prever quais são as profissões e atividades que serão mais afetadas neste cenário negativo?
Isso é uma questão bastante relevante. Aliás, a minha estimativa deriva de estudos sobre a composição setorial da força de trabalho americana. Estamos a assistir ao fecho completo de determinados setores de atividade, nomeadamente setores de atividade que envolvem maior contacto físico.
Indústria, restauração…?
Restauração, hotelaria, cruzeiros, casinos, companhias aéreas. É aquilo que eles chamam hospitality, que inclui também grande parte do setor dos transportes. As companhias aéreas são muito importantes na economia americana, têm um peso muito grande, empregam indiretamente quase 10 milhões de pessoas, e tudo o que são viagens de avião parou completamente com as medidas de isolamento social.
Tudo pesado agora, e saindo do tema do emprego, esta crise pode ser pior do que a Grande Depressão de 1929?
Ainda é muito cedo para dizer e isso tem a ver com aquilo que referi anteriormente: a duração, de quanto tempo é que isto vai demorar. Assumindo que a situação de saúde pública é controlada antes do final do segundo trimestre, digamos em junho/julho, a economia americana pode ter um segundo trimestre muito mau, uma taxa de desemprego muito elevada, uma taxa de crescimento do PIB muito negativa, mas pode potencialmente recuperar muito rapidamente. O problema é se a situação de saúde pública não for resolvida e estas medidas de isolamento social tiverem que continuar pelo terceiro trimestre dentro. Aí, talvez se comecem a gerar danos na economia que serão mais difíceis de reparar.
Neste esforço de contrariar esses danos foi aprovado, na sexta-feira, pelo Senado, um pacote de 2 biliões de dólares com várias medidas que incluem também algumas no sentido da proteção dos empregos. Acha que isto vai ter alguma eficácia?
Penso que sim, claramente. Este pacote de medidas é muito importante, principalmente enquanto bolha de oxigénio, na expectativa de que a situação se resolva no final do segundo trimestre. Vamos ter um segundo trimestre, em princípio, muito mau a nível dos principais indicadores — taxa de desemprego, crescimento do PIB, etc. — e vai haver muita gente desempregada, sem rendimentos. Grande parte das medidas que estão incluídas neste pacote envolvem transferências diretas a famílias, principalmente a famílias com menores rendimentos e desempregados. E caso esta seja uma situação temporária, estas medidas vão ser muito importantes para manter essas famílias a flutuar.
Mas é a resposta certa neste momento por parte do executivo, ou seja, dar dinheiro às pessoas para garantir que a economia continua o seu funcionamento?
Dada a natureza deste choque, o objetivo das autoridades não será tanto manter a economia a funcionar, porque querem propositadamente fechar partes da economia. Isto é um choque muito diferente do que nós alguma vez vimos. Economistas em bancos centrais e em autoridades orçamentais percebem relativamente bem como combater aquilo que chamamos de ‘choques procura’, como aquele que observámos em 2008. O tipo de medidas usadas para combater esses choques são medidas para estimular a procura, estimular a atividade económica. Neste caso, a situação é um pouco mais complicada. Não queremos estimular a atividade económica, não queremos fazer com que as pessoas saiam e vão às compras ou vão trabalhar. Queremos manter as pessoas em casa, mas ao mesmo tempo não queremos que as pessoas morram à fome em casa.
No fundo, queremos desligar a economia da máquina.
Sim, exato. E esperar que isto se resolva durante um trimestre. Se esta situação se prolongar e tivermos de manter a economia fechada mais do que um trimestre, aí os danos mais permanentes poderão começar a surgir.
Nos EUA vai haver transferência direta de dinheiro para as contas bancárias dos cidadãos. Na Europa, a abordagem é diferente, com o reforço dos apoios sociais e garantia de crédito às empresas, no fundo para que estas possam continuar em atividade e manter os empregos. Pode ser mais eficaz no caso europeu esta intervenção?
Depende. A economia americana é muito diferente das economias europeias, em muitos aspetos é uma economia muito mais dinâmica. Assiste-se a uma maior criação e destruição de empresas e de postos de trabalho. Se a economia pára durante um trimestre, obviamente muitas empresas vão ser destruídas, vão à falência, muitos postos de trabalho vão ser destruídos. A história diz-nos que a economia americana consegue recuperar rapidamente deste tipo de situações.
A queda é rápida, mas a recuperação também.
Exatamente. Quero esclarecer que isto não é uma avaliação do que é bom e do que é mau. As economias europeias são um pouco diferentes, tendem a ser mais rígidas, menos dinâmicas.
Portanto…
Uma grande destruição de empresas — principalmente pequenas empresas — nesse tipo de setores que vão ser mais afetados pelo isolamento social, como a hotelaria, por exemplo, pode ter consequências em Portugal de muito longo prazo. Imaginemos que a situação de saúde pública e as medidas de isolamento social são levantadas em finais de maio ou inícios de junho. Muitas das empresas que desapareceram durante este período não vão regressar imediatamente. Na Europa faz mais sentido, de facto, garantir que as empresas, principalmente as mais pequenas, se mantenham à tona.
E a questão da mutualização da dívida? Muito se tem falado das ‘eurobonds’ e ‘coronabonds’. Podem ser também uma solução nestas diferenças entre a economia europeia e americana?
Um dos problemas da Europa é que muitos países, principalmente os que estão a ser mais afetados, como Itália ou Espanha, estão a entrar nesta situação com muita dívida. Esses países fazem parte da zona euro, que restringe ações de política orçamental, dependendo do nível de dívida que essas economias têm. Basicamente, estas economias estão a entrar nesta situação com muito pouca margem de manobra.
Podemos correr o risco de cair outra vez num crise da dívidas, como aconteceu há cerca de uma década?
Exatamente. Esse não é um problema que os Estados Unidos enfrentam, pelo menos, num curto ou médio prazo. Têm mais margem de manobra a nível de política orçamental para fazer o que for necessário para estabilizar a situação económica do que muitos países na Europa. Necessariamente, os instrumentos que seguissem na direção de mutualizar a dívida ajudariam, em princípio, a evitar uma situação como a que vivemos há 10 anos.
E o setor financeiro? O crédito malparado vai aumentar necessariamente, muita gente deixa de ter capacidade para pagar os seus empréstimos. Os bancos estão preparados para este choque?
Nos EUA ou na Europa?
Nos EUA e na Europa. Há grandes diferenças no balanço e na solidez, neste momento?
Há. Nos EUA, os bancos estão muito melhor preparados do que na Europa. Os bancos recuperaram muito melhor nos EUA do que na Europa da crise financeira de 2008-2009. Há fragilidades nos EUA, o setor bancário não regulado é muito grande, cresceu muito. A seguir à crise financeira, foi criada muita regulação nova imposta no setor financeiro e isso fez com que muitas atividades de intermediação saíssem do setor regulado para um setor menos regulado. E houve muito crescimento de dívida a empresas, dívida muito arriscada. Ainda estamos para ver o que vai acontecer. Mas a Reserva Federal tomou várias medidas imediatamente, assim que se começou a ver que ia dar para o torto. Levou a cabo muitas medidas de injeção de liquidez nos mercados de forma a garantir que esta crise de saúde pública não se torne numa crise financeira. Na Europa, a situação dos bancos é um pouco mais complicada, mas o Banco Central Europeu também tem levado a cabo muitas medidas extraordinárias e esperemos que consiga evitar que isto se torne uma crise financeira.