Enviado especial ao Vaticano
Peter Isely fuma nervosamente um cigarro à porta de um discreto hotel de três estrelas a 200 metros da Praça de São Pedro, no Vaticano. O psicólogo norte-americano de 58 anos, que nos anos 70 sofreu abusos sexuais cometidos por um padre do seminário onde estudou, é uma das muitas vítimas de abuso que esta semana estão em Roma para, aproveitando a cimeira dos líderes católicos sobre o assunto, contarem as suas histórias. Isely foi também um dos doze sobreviventes que, na manhã de quarta-feira, um dia antes do arranque oficial da cimeira, se encontraram com os membros do comité organizador da reunião inédita para pedirem “tolerância zero” à hierarquia da Igreja.
Fundador da pioneira associação norte-americana SNAP (Survivors Network of those Abused by Priests — Rede de Sobreviventes dos Abusos por Padres), a primeira organização do mundo a apoiar de forma organizada as vítimas de abuso por parte do clero, Peter Isely não esconde a frustração pelo facto de o Papa Francisco não ter estado naquele encontro antes da cimeira. Apesar de a reunião não estar no programa oficial de Francisco, as vítimas esperavam que o Papa aparecesse juntamente com o padre, o arcebispo e os dois cardeais que compõem o comité encarregado de preparar a cimeira, que reúne até domingo 190 líderes católicos de todo o mundo para discutir a responsabilidade da Igreja na questão dos abusos sexuais.
Subimos para o bar do sétimo piso, de onde se vê em toda a dimensão a grande cúpula da basílica de São Pedro. Numa longa conversa ao fim de um dia em que se desdobrou em reuniões com bispos e cardeais, Peter Isely lembra ao Observador a história que o levou ali. Recordou como, com apenas 13 anos, era levado pelo padre para o escritório para responder a perguntas e acabava a ser massajado pelo clérigo. Só com 27 anos conseguiu falar pela primeira vez do assunto à sua noiva — foi ela que o salvou. E só quando percebeu que a hierarquia da Igreja lhe tinha mentido — quando garantiu ter resolvido o problema — é que ganhou coragem para contar a sua história em público. Hoje, procura ajudar outras vítimas a percorrerem este caminho difícil. E garante que “nada acontece sem que as vítimas se cheguem à frente e contem as suas histórias”.
O que aconteceu na reunião desta quarta-feira?
Nem sei bem como a reunião foi agendada. Parece ter sido uma coisa feita à pressa. Éramos 12 sobreviventes de abusos sexuais naquela reunião. Nós gostávamos de ter lá todos os sobreviventes do nosso grupo, claro. Para dar um pouco de contexto, eu fui um dos fundadores, nos Estados Unidos, da SNAP (Survivors Network of those Abused by Priests — Rede dos Sobreviventes de Abusos cometidos por Padres), que foi a primeira organização do mundo a juntar sobreviventes. Isto já foi há quase 30 anos, nem acredito! Eu era um jovem. Por isso, tudo aquilo por que as vítimas em Portugal e noutros lugares estão a passar… Estão a passar pelos mesmos estados pelos quais muitos de nós já passámos.
Quais são?
Quando falamos de abuso sexual… Abuso é uma palavra simpática. Estamos a falar de ataques, de violação, de crimes contra crianças. Calculo que em Portugal seja semelhante, mas nos Estados Unidos, onde tem havido muitos avanços em termos da lei criminal, das investigações e da atenção pública a este assunto ao longo da última década, este é o crime menos reportado às autoridades — e provavelmente no mundo também. Temos estudos sólidos sobre isto, e falo sobre os EUA, que dizem que só cerca de 8% ou 9% dos crimes é que são reportados. Isto significa que mais de 90% das vítimas nunca avançam para denunciar — e, quando o fazem, demora muito tempo.
Têm vergonha de contar as suas histórias.
Há muitas dinâmicas aqui envolvidas. A vergonha é um resultado fundamental do facto de estes crimes terem sido cometidos contra nós enquanto crianças. É a natureza do crime… Todos os crimes sexuais são assim, mas particularmente para crianças. O ato é uma violação criminal e uma violação da lei moral, que quebra um tabu cultural profundo e universal. Quando isso acontece, provoca imediatamente vergonha. O que é interessante para mim, porque enquanto terapeuta também falo com muitas vítimas, é que não é o agressor que sente vergonha. A lógica diz que deveriam ser eles a sentir a vergonha por terem cometido um crime, mas não sentem. É a criança que sente a vergonha.
O Peter também sentiu vergonha?
Absolutamente. O que estou a dizer é que o ato cria esta vergonha e é a criança que a carrega. As crianças não sabem o que se passa. Eu não sabia o que estava a acontecer. Não temos a capacidade cognitiva para o compreender. Agora sabemos que as consequências neurológicas deste tipo de trauma afetam, literalmente, a arquitetura do cérebro. Isso, numa pessoa em desenvolvimento, causa danos neurológicos. E, neste caso, estamos também a falar dos danos espirituais, da devastação.
Porque a Igreja tem uma obrigação moral acrescida?
A única razão para a Igreja existir é enquanto instituição moral. É por isso que existe. Toda a existência da Igreja se baseia nisso. Quero dizer, todos nós temos de agir moralmente no nosso trabalho… Mas, por exemplo, você é um jornalista, tem um código de ética, mas não é um pregador da moral. Não é o senhor que está a ensinar as pessoas. E não tem os meios para a salvação e a vida eterna. No contexto da Igreja Católica, crescemos a acreditar que não podemos obter essas coisas, que são as mais importantes que podemos imaginar, sem a a Igreja e sem o sacerdócio.
O Peter estava ligado à Igreja?
Eu venho de uma família de oito, tenho um irmão gémeo. O meu pai morreu quando eu tinha nove meses de idade, deixando-nos aos oito com a minha mãe, que era uma católica extraordinariamente devota. Cresci numa cidade com cerca de 30 mil habitantes no Midwest dos Estados Unidos. Vínhamos à porta da nossa casa e tínhamos três igrejas no nosso campo de visão. Isso não é invulgar aqui em Roma (risos)! A paróquia em que cresci, a paróquia de São José, era o centro das nossas vidas. Íamos lá à escola, íamos para lá brincar, íamos à missa. Eu ia à missa todos os dias em criança. Todos os dias, com a minha mãe.
Iam os irmãos todos?
Bom, eu tinha um gosto particular… A religião sempre foi muito importante para mim, mesmo quando era muito pequeno. Eu queria ser padre. Havia muitas coisas que eu queria ser. Queria ser um jogador de basebol, porque adoro basebol; queria ser astronauta (risos); e queria ser padre. Talvez as coisas tenham mudado ao longo das décadas, mas era muito heróico ser padre. Era como ser bombeiro ou polícia.
Salvar as pessoas…
Estava a salvar as pessoas, exatamente. A dedicar a minha vida ao Evangelho e aos outros enquanto pastor, ajudando os outros. Era algo muito elevado. A minha mãe dizia constantemente que queria um padre na família. Eu tenho antepassados irlandeses e croatas, dois países incrivelmente católicos. Costumava dizer-se que ser padre era a melhor coisa que alguém podia ser. Quando ia à igreja enquanto criança, eu ficava quase hipnotizado pelos rituais, pelas práticas da Igreja. Íamos à bênção aos domingos à noite, rezávamos o terço. A minha mãe era uma crente muito devota na Virgem Maria. Ela acreditava em algumas aparições de Maria — um assunto sobre o qual Portugal sabe qualquer coisa (risos). Era quase um fenómeno de culto na família. Claro que um padre é celibatário, o que era quase dizer que é sexualmente seguro.
E estava consciente desse requisito para ser padre?
Não enquanto criança. Os abusos começaram quando eu tinha 13 anos, no seminário. Eu fui enviado para um seminário, que ainda hoje está operacional, dos Franciscanos Capuchinhos, no meio de nenhures. No meio do Wisconsin, um local belíssimo. Estávamos completamente isolados.
Gostava de lá estar?
Bom, eu queria fazer a minha escolaridade e queria ser padre. Quando era criança, tinha memorizado a missa, sabia aquilo tudo. E a minha mãe e a irmã dela faziam vestimentas para mim e para o meu irmão gémeo, vestes de acólitos. Eu gostava mesmo daquilo. Até esmagávamos bocadinhos de pão com um copo para imitar hóstias. Mas, mais tarde, durante a minha adolescência, comecei a não gostar tanto. Como eu estava designado para ser padre, a minha mãe começou a ser muito punitiva, muito negativa, se eu estivesse perto de raparigas. E isso é muito duro quando se tem aquela idade.
Que idade tinha quando foi para o seminário?
Tinha 11 ou 12, imediatamente antes de ir para o seminário. Mas eu ia de qualquer forma, iria ser padre. E também não queria desiludir a minha mãe, porque ela queria tanto aquilo. Os frades começaram o recrutamento para o seminário. Andavam por todo o Midwest a recrutar miúdos para serem padres. Olhando agora em retrospetiva, é incrível aquilo que se fazia e ainda se faz em algumas partes do mundo. É um conjunto de padres que vão recrutar um grupo de miúdos para serem padres. Agora, olhando para trás, não é muito boa ideia.
Não havia nenhuma mulher nesse processo.
Exato. E nós éramos deixados completamente sob o poder deles. Quando eu lá cheguei, no primeiro ano, éramos mais de 100. Vivíamos em camaratas, com uma cama e um cacifo, e devia haver cerca de 50 padres e frades a viver na congregação. Hoje nós sabemos tudo isto, porque temos documentos, incluindo sobre o tipo que abusou de mim: quando eu lá estive, havia provavelmente cinco ou seis padres que eram pedófilos e que eram conhecidos da ordem religiosa. E havia outros que também eram abusadores de crianças, embora eu não esteja suficientemente confiante para lhes fazer o diagnóstico de pedofilia. Mas também cometiam crimes sexuais. Eram muitos. Um deles ia ao dormitório dos caloiros, tirava os miúdos da cama durante a noite a abusava deles. O tipo que abusou de mim era o decano da disciplina, tinha um controlo quase completo sobre nós. Ele começou a abusar de mim durante a orientação espiritual, quando eu estava lá há menos de uma semana. Tínhamos de ter um diretor espiritual e ele era o meu.
O que é que aconteceu?
Não gosto muito de falar disso, mas o primeiro abuso é aquele que nunca esquecemos. Ele tinha um escritório, levava-nos para lá e trancava a porta. Ele tinha um procedimento para nos aliciar. Por exemplo, tínhamos uma aula com ele na qual íamos ter um exame oral. Nunca me vou esquecer. Ele dava-nos aulas de história e tínhamos de aprender e memorizar a definição de nacionalismo. Depois, alinhava-nos à porta do escritório e levava-nos lá para dentro um de cada vez. Eu entrava, sentava-me, e ele perguntava: “Qual é a definição de nacionalismo, Peter?”. Eu dei uma definição completa e ele olhou para mim e disse: “Errado!”. Não consigo descrever como foi aquilo. Porque é que ele me estava a dizer isso? Ele tinha uma autoridade, estava numa posição como o meu pai. Depois ele sentava-se, começava a falar, até que se levantava e vinha para trás da minha cadeira e começava a massajar-me os ombros. Era assim que começava. Depois, começava a mover as mãos pelas costas e parava a meio. E estava feito. Na vez seguinte, ele fazia igual, mas descia mais as mãos. E depois entrava com as mãos dentro das minhas calças, tocava nos genitais, masturbava… Isto escalava, porque nós estávamos a ser treinados para ser vítimas. A minha experiência era de me dissociar daquilo. Eu congelava e não sentia literalmente nada no meu corpo. Aquilo atordoa-nos. Quando ele começava a meter a mão dentro das minhas calças, eu não conseguia sentir nada. É a forma de a nossa mente se proteger do que está a acontecer. Era quase como se eu saísse da sala, como se não estivesse lá. E quando ele achava que já estava bom, destrancava a porta como se não tivesse acontecido e deixava-nos ir embora! Era como viver em dois universos em simultâneo…
E ele fazia isso também aos seus colegas?
Ele tinha um conjunto de vítimas que escolhia na turma. Como qualquer pedófilo, ele tinha um tipo particular de criança pelo qual tinha esta atração sexual pervertida. Eu era meio artístico e ele gostava desse tipo de coisa. Era meio frágil, magrinho. A maioria das vítimas dele eram assim. Ele fazia com que nós achássemos que éramos especiais, porque depois deixava passar pequenas coisas. Por exemplo, se não acabássemos alguma coisa numa aula… Levava-nos em viagens de estudo…
Como se fossem os preferidos.
E éramos, de certa forma. Outra coisa que ele fazia era entrar naquilo a que eu chamo o modo de ataque. Quando ele começava aquele movimento de vir para trás da cadeira, começava a dizer “como estás?”, “está tudo bem?”, a falar de coisas básicas. Quando ele falava como se nada estivesse a acontecer era quando ele começava a massajar os ombros. Era como se ele se dividisse ao meio à minha frente. E enquanto fazia aquilo repetia a palavra “see” (“vê”). Não estou a brincar! See, see, see, see. É mesmo difícil de descrever, é esquisito, é um predador em série.
Quanto tempo duraram os abusos?
Houve um período em que eu me tentei afastar dele o mais que consegui. Eu sabia que algo de errado se estava a passar. Ele fazia passar a impressão de que não se conseguia conter. Por outras palavras, que era eu que o estava a levar a fazer aquilo. Uma vez ele disse-me: “Se a tua mãe soubesse o que tu me fazes fazer!” E eu acreditei, porque odiei cada momento em que tive consciência daquilo. Perguntava-me: “Porque é que eu o estou a levar a fazer esta coisa horrível, apesar de eu não querer nem saber o que é?” É como se houvesse algum íman dentro mim, algo de mau, de diabólico. Que ele era um padre bom e que não havia descrição para o que eu estava a fazer. Era uma coisa má, nojenta, horrível. Eu tinha 14, 15 anos.
Até quando é que ficou naquele seminário?
Terminei lá os meus estudos! Ele depois foi denunciado por outro estudante… A dada altura, ele fartava-se de nós. Um ano e meio ou dois anos depois de lá entrarmos. Eu afastei-me dele o máximo que consegui, mas, a dada altura, ele deixa-nos e segue para outros miúdos mais novos. Ele já abusava de vários estudantes ao mesmo tempo, mas nós nunca falávamos uns com os outros, era uma coisa escondida. Isto acontece noutras instituições, como no exército, por exemplo.
Quando é que falou pela primeira vez disto a alguém?
Eu acabei os estudos e, acredite ou não, juntei-me à congregação para ser um frade franciscano. Eu queria ser um franciscano! E pensava que havia algo de tão errado comigo que a minha vida ainda não podia ter acabado. Não havia nada de bom em mim, mas eu ainda podia fazer algo de bom pelos outros. Era nisso que eu acreditava. Com 19 anos, estava a trabalhar com uma comunidade afro-americana enquanto pensava em tornar-me frade franciscano. E foi aí que conheci a minha futura mulher. Ela salvou-me. Porque eu adorava aquela comunidade onde estava, era aquilo que eu queria fazer na vida. Aquela comunidade afro-americana, talvez por causa da sua luta, pelas suas desvantagens, tinha uma espiritualidade que, verdadeiramente, me salvou. Foi aí que eu comecei a perceber que havia algo de errado. E saí da congregação.
Com que idade?
Com 20 ou 21. Estava a estudar, comecei a interessar-me por filosofia e religião e quis tirar um curso na Universidade de Harvard. Não queria ser um padre católico, mas estudar religião. Foi quando saí dali, geograficamente, que as coisas começaram a melhorar. Estava com a mulher com quem queria casar e ela foi a primeira pessoa a quem contei, quando tinha 27 anos.
Ainda demorou sete anos a contar-lhe desde que saiu da congregação…
E isso é pouco, para muitas vítimas! É difícil descrever. É como se nunca tivesse acontecido até eu o ter dito. Ao dizê-lo em palavras, tornou-se real.
Foi aí que surgiu a ideia de criar a SNAP?
Voltei aos frades franciscanos, porque pensava que podia haver outras crianças a sofrer abusos. Eu assumia que eles não sabiam de nada, porque eu também achava que era o único. Todas as vítimas acreditam nisso e, muitas vezes, a Igreja diz-nos isso também. Mas habitualmente é mentira. Voltei ao superior da congregação e disse-lhe. E ele respondeu-me que iriam fazer o que podiam para o afastar. Era nisso que eu pensava, tinha medo que ele fizesse aquilo a mais alguém. Ele foi tão caloroso quando falou comigo e eu acreditei. Ainda tinha um sentimento de culpa, apesar de saber que a culpa não era minha. E depois vim a saber que ele tinha mentido. Tiraram-no do seminário e puseram-no numa paróquia. Vim a descobrir que ele organizava acampamentos com crianças. Foi nesse momento que decidi contar a minha história em público. Não tinha outra escolha. Era o final da década de 1980.
Não foi fácil tomar essa decisão, calculo.
Não. Mas, na altura, os casos estavam a começar a vir a público. Já havia grandes histórias. Isto não está a acontecer só agora, nem começou em Boston em 2002. Quando eu contei a minha história em público, isto tudo estava a acontecer de forma orgânica e não planeada em vários lugares dos Estados Unidos. Foi assim que nos encontrámos uns com os outros e começámos a contactar, a criar uma rede de vítimas. Encontrámos outras vítimas, outros sobreviventes contaram as suas histórias, encontrei outras vítimas do mesmo padre…
Na altura, não havia ainda nenhuma organização deste género para vos apoiar.
Esta foi a primeira do planeta. Começámos a organizar-nos, porque sabíamos que eles não iam mudar. As autoridades não iriam investigar nem acusar estes padres. A maioria destes padres nunca foram condenados.
Também há o problema dos prazos de prescrição dos crimes…
Quando as investigações começaram, houve esse problema. Mas houve processos civis e, depois, foi aí que fomos buscar os documentos. Depoimentos, por exemplo, em que o padre admitiu algumas coisas sob juramento. Isso muda a nossa vida. Ver um padre que eu sabia que tinha abusado de crianças, na televisão, algemado. É inacreditável. É algo com que nunca sonhámos… Muda uma vida ver aquilo.
Sentiu alguma justiça a ser feita?
Exatamente. E esse é o maior problema, é a falta de justiça. Assim, coloca-se a vergonha onde ela pertence. Não em mim, não nos abusos que sofri, mas onde merece. O padre que abusou de mim teve processos civis, foi investigado, mas depois morreu durante o processo.
O que é que acha que mudou no último ano para levar o Papa Francisco a convocar esta reunião sem precedentes?
A única coisa que provoca mudanças e avanços é a revelação das histórias das vítimas. Nada acontece sem que as vítimas se cheguem à frente e contem as suas histórias. Nada. Mas outra coisa que é preciso são documentos, provas, com as palavras dos próprios padres. Isso é um ponto de viragem. Porque tudo o que a hierarquia da Igreja faz é para impedir estas coisas de serem divulgadas em público.
Que expectativas tem para esta cimeira? Pode mudar essa mentalidade de que fala?
Isto é histórico e muito importante, e levou-nos a lançar este projeto ECA (Ending Clergy Abuse — Acabar com os abusos cometidos pelo clero), que é a primeira organização global de vítimas. Muitas destas vítimas são ativistas, têm vindo a trabalhar sobre estes assuntos nos seus países desde há muitos anos. Foi isso que dissemos na reunião desta manhã. É preciso ouvir as pessoas que conhecem o assunto, que têm experiência e conhecimento. Nós trabalhamos com centenas de sobreviventes. Somos nós. Foi por isso que ficámos chocados e surpreendidos por o Papa Francisco não querer estar na reunião. Claro que devia estar lá.
Que reunião foi esta? Só para ter um contexto: durante esta semana, paralelamente à cimeira no Vaticano, há um conjunto de atividades promovidas por associações de vítimas de abusos em Roma. Como é que esta reunião aconteceu?
Aconteceu quando cá chegámos, porque nem sabíamos disto. O Vaticano organizou-a entre nós e os organizadores da cimeira: o arcebispo Charles Scicluna, que tem investigado os casos de abusos sexuais, o padre Hans Zollner, um psicólogo da Alemanha, o cardeal Oswald Gracias, da Índia, e o cardeal Blase Cupich, de Chicago, que eu conheço e com quem tive uma troca de palavras interessantes na reunião. O cardeal Cupich, um dos homens que estão à frente desta cimeira, tem a diocese dele e várias dioceses do estado do Illinois investigadas pela procuradora-geral do Illinois. Isto mudou mesmo. Já há 15 estados que lançaram investigações como a da Pensilvânia sobre o encobrimento dos casos por parte da Igreja. A dele é uma delas. O relatório preliminar saiu há umas semanas e foi duro. Eles sempre asseguraram que foram transparentes, divulgaram nomes, que fizeram tudo. Mas a procuradora-geral descobriu que eles não tinham reportado dois terços dos padres sobre os quais tinham provas substanciais. São 500 padres. E eu tinha de lho dizer: “Sabe, cardeal, o senhor é o rosto disto, foi escolhido pelo Papa, parece um homem bom, mas eu não confio em si”. Isto é uma coisa difícil de se dizer num momento daqueles, em que ele estava a falar de que faziam isto e aquilo e que queriam ouvir as vítimas. E eu tive de dizer: “Não, espere lá um segundo. Em quem eu confio é na procuradora-geral do Illinois e ela concluiu, no relatório preliminar que foi tornado público — porque é isso que se faz —, que não divulgaram tudo. A investigação ainda está a decorrer. E eu não confio em si. Eu confio na procuradora-geral do Illinois, e quando ela me disser que se pode confiar em si, eu confio em si. Mas não é isso que ela diz”.
E ele?
E ele não disse nada. É a hipocrisia disto.
Não acha que uma reunião deste género entre responsáveis do Vaticano e representantes das vítimas significa que a Igreja está interessada em ouvir os testemunhos de quem sofreu os abusos?
Quando eles ouvem as vítimas, ouvem a justiça, ouvem o senso comum. É o que está a dar agora. É ouvir as vítimas: “Nós vamos contar-vos as nossas histórias. Mas sabem o que nos estão a pedir? Vocês sabem as nossas histórias, não precisam de ouvir mais nenhuma história. Para que é que precisam de ouvir mais uma história para perceber isto? Já têm toda a informação. Nós estamos a dar-vos algo e o que é que vocês nos dão de volta?” Estão a tomar notas. Mas eles têm toda a informação. O arcebispo Scicluna, que gere as investigações na Congregação para a Doutrina da Fé, sabe de 4.200 casos, porque já o disse, de padres que abusaram de crianças em todo o mundo. E o que fazem com isto? Porque é que nós não sabemos quem são estas pessoas? Estão a manter o segredo — e isso é encobrimento. Eis o que esperamos da cimeira: tolerância zero a sério.
O que é que significa tolerância zero a sério?
Vou explicar. O Papa tem prometido isto há seis anos, está na altura de cumprir a promessa para com as vítimas e para com as crianças da Igreja Católica. A tolerância zero é simples. Em toda a Igreja, e não apenas nos Estados Unidos. Há duas dimensões. Em primeiro lugar, qualquer padre, clérigo, irmão, religioso, qualquer pessoa que trabalhe para a Igreja. Se for provado que abusou sexualmente de uma criança, independente da data e do local, tem de ser removido permanentemente do sacerdócio e entregue às autoridades civis, independentemente da prescrição. Deixem as autoridades civis determinar isso.
E a segunda dimensão?
A segunda dimensão, que eu acho que ainda é mais importante — se só pudesse ter uma e tivesse de escolher, escolhia a segunda —, é a tolerância zero para qualquer bispo ou cardeal que tenha ocultado crimes sexuais contra crianças. Se for provado que um bispo ou cardeal encobriu abusos, tem de deixar de ser padre. Não digo deixar de ser bispo. Deixar mesmo de ser padre. Sair da Igreja. É difícil acusar uma instituição em vez de uma pessoa concreta. As investigações na Austrália, por exemplo, demonstraram a existência de um sistema de encobrimento dos abusos sexuais. Não há melhor educação do que ler estes documentos. É um sistema de gestão e todos os gestores séniores estiveram envolvidos neste tipo de conduta. O ponto aqui é que, de facto, a maioria dos padres não abusa de crianças. Ainda assim, argumentaria que é uma percentagem maior do que noutras profissões. Mas coloquemo-la entre os 7% e os 10%. É seguro dizer que 90% não cometem abusos. Mas, quando se olha para os bispos, qual é a percentagem dos que encobriram crimes sexuais contra crianças? Provavelmente, cerca de 70% ou 80%. Esse é o problema!
Tem estatísticas sobre essa questão?
Bom, olhando para os Estados Unidos temos muitas provas. Por exemplo, os bispos dos Estados Unidos reuniram-se porque estavam sob muita pressão, por causa do relatório da Pensilvânia, do cardeal McCarrick, e muitos outros problemas, e disseram que resolveram o problema. Não nos parece. Tiveram a reunião da conferência episcopal em novembro e houve uma grande investigação do Boston Globe e do Philadelphia Inquirer com base em casos em tribunais. E dos cerca de 200 bispos que lá estavam, havia 130 que se tinha provado terem ocultado abusos sexuais. Agora até há questões sobre o próprio Papa Francisco. Ele foi arcebispo na Argentina, foi provincial dos Jesuítas. Não vimos ainda os casos em que ele esteve envolvido, mas sabemos agora que existiram. Houve um padre que abusou de crianças surdas em Verona e foi mudado para a Argentina. Este caso era do conhecimento do Papa Francisco, que não fez nada sobre ele. Há outro caso, do padre Júlio Grassi. Este homem foi considerado culpado na sua diocese quando o Papa era presidente da conferência episcopal argentina e a Igreja pagou a produção de um dossiê de vários volumes, que foi enviado para o Supremo Tribunal, para que a decisão do recurso fosse favorável ao padre. Eles perderam. O Supremo Tribunal não leu o documento, mas ele já foi visto. É este tipo de coisas que nos faz pensar…
Ainda tem esperança de se encontrar com o Papa Francisco esta semana?
Claro! Estamos aqui a semana toda. Tudo o que ouvimos da parte deles é “vítimas, vítimas, vítimas”. Eu disse-lhes que nunca tinha ouvido tanto amor pelas vítimas como aqui. É por isso que achámos estranho o Papa não estar ali. Ele vai passar três dias com aqueles bispos, que ele diz que vêm de vários lugares do mundo e que não sabem bem o que é o abuso sexual. É chocante. Estes homens são bem formados. Se eles têm de aprender sobre abusos sexuais, não é um bom sinal.
O que diria a uma vítima de abusos que nunca contou a sua história a ninguém?
Digo sempre o mesmo. É preciso haver um lugar seguro para contar a história, onde seja possível colocar a história e mantê-la controlada. Quando começamos o processo de recuperação, as coisas podem ficar piores antes de melhorarem. Mas é preciso ter um lugar seguro para falar do assunto. Um terapeuta, por exemplo. Se a pessoa optar por divulgar, depois, a história em público, precisa de apoio, até organizacional, de associações como a ECA, a SNAP, e outras. Mas o ponto aqui é que, se a pessoa disser alguma coisa, vai ser difícil. E se a pessoa mantiver o silêncio, também vai ser difícil. É preciso olhar com cuidado para cada uma destas dificuldades e escolher qual a dificuldade que queremos. Porque ser fácil não é uma opção. Isso foi-nos tirado no dia em que sofremos os abusos.