O desafio começou com uma letra de Manel Cruz (esse mesmo, o homem dos Ornatos Violeta, dos Pluto, de Foge Foge bandido e do que mais houver) oferecida à fadista Aldina Duarte, escrito para ela e apresentado no tom da cantora. Só faltava acrescentar-lhe a voz. Um convite destes seria para aceitar à primeira, mas a vida não é assim tão simples.
Aldina estava no escuro, a viver o luto da paixão, “que é o pior luto porque ainda não há nada, sobretudo nada de mau, ainda está tudo por acontecer e não acontece”. Mas o fado escrito por Manel Cruz acabou por ser a primeira pedra de Quando Se Ama Loucamente, o novo disco de Aldina Duarte, que estará à venda no dia 13 de outubro. A artista descreve-o como uma “autoficção”, o retrato direto de um momento difícil.
Cruzamento de várias artes, Quando Se Ama Loucamente transformou-se num tributo a Maria Gabriela Llansol, a escritora que foi capaz, como poucos, de escrever “o invisível”, as pequenas/grandes coisas que mais ninguém vê mas que todos sentimos, de uma maneira ou de outra, e que fazem de nós gente.
Encontrámos Aldina Duarte durante as gravações de um mini documentário sobre o novo disco, no reservatório da Mãe d’Água das Amoreiras, em Lisboa. Foi nos túneis e nas galerias (secas) do Aqueduto que foram filmadas as canções, ilustradas no disco pelas fotografias de Isabel Pinto, que colocam a fadista no elemento com que mais se identifica: a água.
A conversa seguiu-se ali ao lado, no jardim, onde nos contou a história destes novos fados, as influências, dúvidas e hesitações. Ora entre risos e exclamações, ora com a voz e o olhar embargados, Aldina Duarte em entrevista ao Observador.
Que vídeo foi este que esteve a gravar?
Foi um especial de 20 minutos, um especial que fazemos em cada disco, que consiste em seis temas. Um é o videoclipe propriamente dito mas na realidade estamos a fazer seis videoclipes. Uma espécie de minidoc. A RTP 2 e a SIC têm um espaço para estes especiais. Tendo em conta as características do meu trabalho não há muito espaço para ir falar à televisão.
Porquê?
O ambiente televisivo para cantar o meu repertório é bizarro, não dá, não me consigo concentrar. Como é que vou cantar estes poemas? Não é a minha praia, não é bom para o programa nem é bom para mim. Se a televisão tivesse formatos que permitissem estarmos a li a ter uma boa conversa e depois passassem o vídeo, não me incomodava. Canto em direto porque cantar em playback dá-me vontade de rir. Parece que estou a brincar.
Quem é que participa neste especial?
Entro eu, o Pedro Gonçalves dos Dead Combo, que é o meu produtor musical e o Manel Cruz, que fez um tema a pensar em mim e que um dia me fez pensar “porque não agarrar neste tema e fazer uma autoficção?”.
E como é que surgiu esse encontro?
Conheci o Manel Cruz pessoalmente quando os Ornatos Violeta fizeram o último concerto no Coliseu. E temos um grande amigo comum que sabia da minha admiração por ele e que fez questão que nos conhecêssemos. Sempre fui fã dele e ele disse-me que era meu fã. Achei que ele estava a ser simpático porque nunca acho que esta malta de fora dos fados conheça fado. Se calhar é um erro meu, um preconceito. Já tinha cometido esse erro com o Pedro Gonçalves, que afinal ia aos meus concertos todos. Disse ao Manel “um dia ainda vamos fazer qualquer coisa juntos”, meio a brincar, “mas primeiro tens de conhecer o que eu faço”. “Mas eu conheço”, disse ele. Isto até há dois anos.
O que aconteceu há dois anos?
Recebi um email que dizia “fiz a pensar em ti”, uma canção feita no meu tom, com o Manel a cantar o tema “Quando Se Ama Loucamente”, só com um tecladozinho. “Se achares que não tem nada a ver diz-me porque eu queria muito compor para ti”. Afinal era tudo verdade. É preciso ter uma sensibilidade artística e criativa que me comoveu. Mas eu não estava numa de fazer discos, estava num luto de uma paixão, que é o pior luto porque ainda não há nada, sobretudo nada de mau, ainda está tudo por acontecer e não acontece. E então desliguei. Agradeci e disse-lhe que não sabia o que ia fazer.
E o que fez com o tema?
Mandei-o para o Pedro Gonçalves. Ele disse que era espantoso, disse “vamos fazer um disco composto por mim e pelo Manel, todo escrito por ti”. Disse-lhe que não tinha capacidade. Aquilo germinou. Ao mesmo tempo fiz o primeiro capítulo de um livro para crianças. Foi meio terapêutico, porque a música é o meu trabalho. Não sou escritora mas tenho jeito. E funcionava como uma espécie de ginástica. E as minhas letras estão cheias de um subtexto emocional que toca a toda a gente. Estou sempre a apaixonar-me, e não falo de pessoas. Os amigos, os livros, os fados, os gatos, a vista que já vi da janela vezes incontáveis… a música é diferente.
Porque a música também implica esforço.
Porque me dá um prazer tão grande e absorve-me tanto que, em vez de me fazer bem, faz-me mal. Das duas uma, ou me anestesia ou então a intensidade do trabalho anula a vida, e quando volto para ela tenho tendência a entrar em negação. E eu lido muito mal com o vazio, nunca aprendi, até hoje. É pior que a tristeza, que a melancolia, que a raiva. Não sei o que fazer no vazio, tenho terror.
Mas isso complica a vida de quem é músico.
Pode complicar sim, porque muitas vezes obriga a abrir mais a ferida, mas não para a tratar. É para escarafunchar. E eu andava à procura do que me pudesse afastar desse vazio. E quando dei por mim, ainda a “sangrar”, achei que já não estava no ponto de não saber o que fazer e precisava de sair a ganhar. E fiquei com a parte boa da história, com plena consciência da tragédia, que foi o final da relação. E virei-me para o trabalho. Canto com o que sou mas não sou de me cantar a mim. Desta vez juntei as duas coisas e quando dei por mim achei que estava a cantar algo que era de nós todos.
É por isso que se trata de uma autoficção?
É. É uma história concreta, sei com quem estou a falar, sei de quem estou a falar, do quê, mas a lógica, a cronologia e os cenários dos factos construí tudo a partir da obra da Maria Gabriela Llansol.
Porquê?
Em primeiro porque os livros dela fazem parte desta história verídica. Há um fado que eu canto que começa com a frase “quem me vê é que me tem” e a seguir eu digo “diz-me o livro que me deste”. Foi rigorosamente assim. É uma escritora extraordinária que criou um mundo que não é só dela mas que é singular e quando entramos nele achamos que é nosso. E tenho uma história à volta dela que, do ponto de vista artístico, me encanta sobremaneira. Pensar que uma escritora pouco conhecida tem uma obra viva e que o seu espólio está a ser tratado por gente como o João Barrento ou a Hélia Correia. E foram grandes amigos dela. Juntaram as coisas mais bonitas: a amizade com o trabalho.
E é daquelas escritoras que são mesmo uma companhia, é um amparo, está ali tudo o que precisamos, quase como se fosse uma pessoa, às vezes até é melhor, porque choramos mais à vontade, porque nos rimos mais à vontade. Ela tem esse espaço de liberdade total. E isso é fascinante. E eu vivi uma boa parte do meu luto nos livros dela. Porque a vida não permite que as pessoas se acompanhem em lutos.
E este disco pode cumprir para alguém a função que esses livros desempenharam?
É uma grande pretensão da minha parte mas gostava. Se alguma utilidade este disco poderá ter é só essa. Já me aconteceu receber emails extraordinários que contam histórias absolutamente respeitáveis do ponto de vista do sofrimento humano que custa a crer que, pelo facto de terem entrado em contacto com o meu trabalho, descubram um bocado este efeito que a Maria Gabriela Llansol teve em mim. Ou como o Jacques Brel também já teve. Porque eu sou um bocado solitária, é a minha natureza. Sou um bocado como os gatos, gosto de lamber as minhas feridas. Porque é preciso sofrer, quem não sofre não está vivo. E não aprende. Até que se ultrapassa e saio de mim, há um momento em que acontece.
E quando é que isso aconteceu?
Com toda a questão dos refugiados, tocou-me muito. Essa fuga, a correr risco de morte, trouxe-me de volta uma pulsão para viver. Relativizei, claro, sem apagar o meu sofrimento porque é o meu e é verdadeiro. Mas relativizei. E foi aí que voltei ao trabalho e que aconteceram coisas…
…inesperadas.
De repente aparece-me o Rogério Ferreira, com quem trabalho há muito no Senhor Vinho, juntamente com o Paulo Parreira. O Rogério disse-me que tinha um tema do pai, queria que eu ouvisse. É o “Refúgio”. Ou seja, no meio de tudo isto, em pleno século XXI, eu crio de raiz um fado tradicional com letra minha. Ficou Fado Ferreira, com uma música com 40 anos. Porque a música… o bom fadista é aquele que absorve quem houve na emoção da história e da palavra e que deixa que a melodia se transforme apenas no chão que te está a levar.
Uma das primeiras descrições deste disco apresentava-o como um trabalho que cruza várias artes. Como assim?
De repente faço uma autoficção a partir da obra da Maria Gabriela Llansol. O Pedro Gonçalves diz-me que vamos gravar de uma forma que nunca tínhamos seguido, preparando os temas com o tempo que fosse preciso e depois gravar tudo aos takes mas tudo junto. Ou seja, quando alguém se enganava voltávamos todos atrás.
E qual foi o resultado?
Gravámos o disco em duas ou três tardes. Há um ano que rodávamos os temas, nos ensaios de som dos concertos, em ensaios em minha casa, no Senhor Vinho, todos os dias. Depois, as letras eram minhas, fiz as letras numa semana, todas. Mas acho que ando a escrever estas letras há 23 anos. No fundo é a primeira vez que me atrevo a escrever sobre uma coisa muito minha, muito íntima, sobre mim. Nasce depois de ter feito oficinas de escrita de letras para fados, porque sei bem a técnica mas nunca lhe dei muita importância. Quando foi o momento de fazer, foi tudo de uma vez.
Mas há também uma parte estética.
Há, surgiu com o Pedro Cabrita Reis, que eu prezo imenso, um grande amigo e um homem brilhante. E é vidrado no meu trabalho. Fui à procura de melodias tradicionais que não tivessem sido gravadas nas últimas décadas. Arranjei seis melodias fortes e comecei a escrever para elas. Quando tinha sete letras pedi ao Pedro para ele me ouvir enquanto lhe cantarolava as letras. Ele comentou e sugeriu algumas alterações, com a linguagem visual que ele tem. Melhorei as letras todas e mostrei-lhe só o resultado final.
Mas isso evoluiu para algo mais.
Sim, quando ele disse que queria desenhar para o meu disco. Tenho muito pudor em pedir coisas aos meus amigos mas às vezes isso funciona ao contrário. Durante anos não aceitei coisas valiosíssimas porque vinham de amigos. Ainda hoje isso me faz confusão. Enfim. Eu digo ao Pedro que o CD é um suporte pequeno, tendo em conta as obras monumentais que ele faz. Mas o Pedro às tantas diz que vamos fazer um livro.
Que livro é esse?
Para frases da Maria Gabriela Llansol eu fiz uma letra. A Isabel Pinto fez uma fotografia para cada letra e o Pedro desenhou uma ilustração para o texto da Hélia Correia que faz parte do disco. A fechar o disco, o João Barrento escolheu um texto da Llansol, de acordo com as letras, para ler e fechar o disco. O livro, que vai surgir só no ano que vem, inclui tudo isto, como se todos fizessem a sua própria autoficção. E o disco apresenta já tudo isto.
Há outro elemento fundamental neste disco e que é visível logo na capa: a água. Que importância tem a água no meio de tudo isto, da paixão, dos livros, do fado?
Quando era pequena tinha uma infelicidade enorme por não saber nadar. Ainda por cima passei a infância em Sintra, Penedo, Almoçageme, Praia da Adraga, Praia das Maçãs, as minhas férias eram sempre aí porque a família da minha mãe é toda de Colares. Lembro-me de estar sempre a mergulhar, queria estar sempre dentro de água, não sabia nadar mas queria estar sempre a mergulhar. E aprendi a nadar entre crianças, já adulta. A água para mim está associada a alívio, entro na água e tenho sempre um vislumbre do que é estar bem. Como se me acrescentasse alguma coisa que me está em falta. Ir ao Guincho no Inverno. A água e o ar. E é isso que sou a cantar.