Acontece todos os dias em qualquer parque infantil: as crianças correm para os pequenos carrosséis de ferro e giram, giram, giram, sem parar. Cá fora, os adultos contorcem-se com o estômago às voltas e começam os avisos. “Pára de girar, vais ficar maldisposta, vais acabar a vomitar.” Só que não: as crianças nunca vomitam, nem nunca ficam agoniadas.
O que a maioria dos pais não sabe é que girar é fundamental para os miúdos crescerem saudáveis. Palavra da terapeuta ocupacional Angela J. Hanscom, em entrevista ao Observador. Isso e rebolar na relva, ficar de cabeça para baixo e mexer-se em todos os sentidos sem restrições, por muito que isso deixe os adultos maldispostos. Quando o fazem, o líquido do ouvido interno está a andar de um lado para o outro, como é suposto, e só assim a criança vai ganhar sentido de equilíbrio — desenvolvendo o chamado sistema vestibular, explica a norte-americana.
Se este não estiver saudável, os miúdos vão cair mais, tropeçar com frequência, ter muito mais acidentes, e terão grandes dificuldades em concentrar-se na sala de aulas. “Uma criança irrequieta é sinal de que tem falta de movimento livre”, argumenta a fundadora do TimberNook, uma espécie de campo de férias onde “não são as crianças que aprendem o que podem fazer pelo ambiente, é antes o ambiente que ajuda as crianças a desenvolverem-se”.
No TimberNook, que começou nos EUA e que já tem campos em diversos países, a brincadeira na natureza é vista como uma forma de “medicina preventiva”, ficando as crianças mais capazes de serem bem sucedidas (na escola e na vida) se passarem tempo suficiente ao ar livre, brincando sem restrições e correndo riscos aceitáveis.
Riscos que nem todos os pais estão disponíveis para correr. E é por isso mesmo que Angela J. Hanscom diz que “o medo dos adultos é o maior entrave para que as crianças passem todo o tempo que precisam a brincar ao ar livre”. Nos Estados Unidos, por exemplo, os pequenos carrosséis começaram a desaparecer dos parques infantis por serem considerados pouco seguros. “É importante encararmos cada um desses medos e encontrar uma forma de lhes dar a volta. Se as crianças tiverem mais oportunidade de brincar ao ar livre, acredito que muitos dos problemas a que estamos a assistir irão dissipar-se.”
Os problemas de que fala Angela J. Hanscom estão descritos no seu livro “Descalços e Felizes” (ed. Livros Horizonte), uma espécie de guia que nos explica porquê e para que é que devemos levar os miúdos para a rua. Nos Estados Unidos, as crianças passam, em média, 9 horas sentadas por dia, estão mais fracas do que nas gerações anteriores, têm maior dificuldade em controlar as emoções e passam a vida a ter pequenos acidentes porque não têm sentido de equilíbrio e não reconhecem a própria força. Tudo, acredita a terapeuta ocupacional, porque têm falta de movimento. “Eles precisam de horas a escavar a terra, a rebolar por ribanceiras abaixo, a construir fortes com os amigos e a brincar na lama, de forma a integrar todos os sentidos e a desenvolver mentes e corpos mais fortes.”
A falta de movimento livre e sem restrições tem mais um senão: porque o sistema vestibular alimenta o límbico, responsável pelas nossas emoções, uma criança que tenha falta de movimento vai chorar por tudo e por nada e vai frustar-se com muita facilidade. “Os pais têm de deixar os filhos estar de cabeça para baixo, girar, rebolar e rodopiar com frequência”, defende a terapeuta. Até porque, “para andarem seguras na rua, é preciso que as crianças tenham liberdade total, com frequência, para se mexerem sem restrições.”
No livro, fala várias vezes sobre sistema vestibular e nem todos os pais saberão o que é. Como é que se explica aos adultos que é importante deixar as crianças estar de cabeça para baixo, para pôr este sistema a funcionar?
O problema é que estamos a restringir as crianças mais do que nunca. Aqui na América, os estudos mostram-nos que, por dia, os miúdos passam, em média, 9 horas sentados. Para organizar os sentidos, as crianças precisam de mexer o corpo de formas tão variadas que farão engasgar qualquer adulto — ficar de cabeça para baixo, andar à roda, dar cambalhotas, etc. E têm de fazê-lo com frequência para desenvolver a consciência corporal, para melhorar o foco e a atenção e para serem capazes de regular as suas emoções de forma conveniente. Também precisam de um certo tipo de “trabalho pesado” que só se consegue na natureza — cavar, subir às árvores e carregar pedras pesadas. Isto ajuda as crianças a desenvolverem os sentidos nas articulações e nos músculos, o que vai fazer com que sejam capazes de regular a força que têm em diversas situações, seja ao usar um lápis para escrever ou, por exemplo, quando estão a brincar com outras crianças.
Quais são os riscos de não desenvolver um bom sentido de equilíbrio? No livro levanta muito esta questão e de como as crianças de agora estão mais fracas e menos coordenadas do que as das gerações anteriores.
Quando uma criança não tem sentido de equilíbrio, tem dificuldade em saber onde é que o seu corpo se encontra no espaço. Isto faz com que haja maior probabilidade de se magoar e de ter acidentes. Para um miúdo poder navegar em segurança em diferentes ambientes, para as crianças andarem seguras na rua, é preciso que tenham liberdade total, com frequência, para se mexerem sem restrições. Para além disso, muito movimento ajuda-os a ter mais atenção na sala de aula. Esta é uma das razões por que os miúdos ficam irrequietos: estão a balançar-se para a frente e para trás para ligarem o cérebro. O que estão a fazer é a tentar ligar o sistema ativador reticular [a formação reticular é uma parte do tronco cerebral que distingue os estímulos relevantes dos irrelevantes e a sua principal função é ativar o córtex cerebral].
Ou seja, os miúdos de hoje estão a passar demasiado tempo sentados?
Sem dúvida. Passam demasiado tempo numa posição vertical. E eles precisam de se mexer em diferentes direções para que o fluido do ouvido interno ande para a frente e para trás, só assim conseguem desenvolver um forte sentido de equilíbrio (o sistema vestibular). Este sentido é a chave de todos os outros sentidos. Se estiver enfraquecido, pode afetar a integração de todos os outros sentidos.
Para além dos problemas físicos, a falta de movimento leva-nos a ver com maior frequência crianças que choram facilmente e que ficam frustradas por tudo e por nada?
Claro. O sistema vestibular também alimenta o sistema límbico [responsável pelas emoções e comportamentos sociais]. Os professores deparam-se cada vez mais com crianças que têm problemas de autoregulação, os miúdos choram sem se saber bem porquê e ficam frustrados muito, muito facilmente. Repito: eles precisam de muito movimento, que é a base de uma regulação emocional saudável.
A verdade é que, enquanto mães e pais, se tivermos um filho a balançar-se à mesa do jantar, o mais provável é pedirmos que pare com isso. E, nas salas de aulas, os professores também não lidam bem com miúdos irrequietos. O que devíamos, então, fazer?
Se as crianças estão irrequietas é um ótimo indicador de que precisam de se mexer mais. O que devíamos fazer, e isto é muito importante, é dar-lhes mais oportunidades para brincarem em grande escala ao ar livre. É nesses momentos que eles conseguem, de facto, mexer-se livremente e com frequência.
Devíamos repensar o tipo de modelo de escola que temos, os tempos de recreio, as horas que as crianças passam sentadas?
Sim, devíamos repensar tudo isso. É fundamental, como já disse, dar-lhes mais oportunidades de brincadeiras ao ar livre porque é nesses momentos que os sentidos estão todos ligados, a trabalhar juntos, e é aí que as crianças aprendem através de experiências práticas, porque estão a pôr as mãos nas coisas, a desafiar a mente, o corpo e os sentidos. Os miúdos não foram feitos para estarem sentados horas a fio, ou para apenas fazerem tarefas com papel e lápis — essas desafiam-nos muito pouco e têm até pouco sentido para os miúdos. Eles precisam de experiências de aprendizagem maiores, melhores e mais ricas.
Já percebemos que ver crianças irrequietas, que tropeçam muito e que não param de se mexer são sinais de alerta. O que podemos fazer?
Volto a repetir: precisam de oportunidades para se mexer. E é isso que os pais têm de fazer: dar-lhes oportunidade de estarem de cabeça para baixo, de andar à roda, de girar, de rebolar, de rodopiar…
De que é que uma criança precisa para desenvolver uma mente sã em corpo são?
Precisa de muito tempo e espaço para brincar com outras crianças ao ar livre, em atividades que as desafiem e as inspirem. Também precisam de adultos bem-intencionados, capazes de dar um passo atrás e capacitar as crianças para desenvolverem os seus próprios planos, ideias e esquemas de brincadeira. Esta é a única maneira de as crianças conseguirem aprender a pensar e a brincar de forma mais avançada.
Então, o movimento é apenas uma peça do puzzle?
Claro, eles precisam de ar livre, boa nutrição, muitas horas de sono e adultos que os amem.
Mas porquê a brincadeira ao ar livre? Não podemos substituí-la pela prática de desporto, por exemplo?
A brincadeira ao ar livre é semelhante ao cross training [treino funcional que combina vários exercícios para trabalhar diferentes partes do corpo]. Desafia as crianças de uma forma que um exercício concebido por um adulto bem-intencionado nunca conseguirá desafiar. Por exemplo: de cada vez que uma criança se pendura numa árvore, usando diferentes membros do seu corpo, está a estimular diferentes músculos e a desenvolver uma musculatura mais arredondada. Por outro lado, brincar ao ar livre inspira a criatividade e a imaginação, algo que não acontece quando se está simplesmente a repetir exercícios físicos.
Uma das coisas que os miúdos adoram nos parques infantis é andar nos pequenos carrosséis de metal. Quando vemos isto, normalmente há sempre um pai a dizer: pára com isso, vais ficar enjoado. Mas andar à roda é extremamente importante, correto?
Sim, andar à roda ajuda as crianças a saber onde é que está o corpo delas no espaço. O movimento do carrossel é um pouco diferente. Cria uma força centrífuga no ouvido interno que ajuda a desenvolver a atenção sustentada e o “grounding”. É muito terapêutico para as crianças. [Atenção sustentada é, segundo a psicologia, um dos quatro tipos de atenção e caracteriza-se por sermos capazes de nos focar numa atividade contínua e repetitiva. O grounding não tem um termo equivalente em português, mas significa estar com os pés assentes na terra, em contacto com a realidade e com a própria existência.]
Também defende que as brincadeiras ao ar livre não podem passar só por idas a parques infantis. Têm de ser na natureza, de pés descalços na terra?
Brincar na natureza é o que enriquece a experiência sensorial das crianças. Por exemplo, o simples facto de estarem a ouvir o chilrear de um pássaro ajuda-as a saberem orientar o seu corpo de acordo com o sítio de onde vem aquele som — e isto é o básico dos básicos para se ter uma boa consciência corporal.
Ainda assim, e apesar das vantagens que aponta, alguns pais terão sempre algum receio e estarão preocupados com questões de segurança, evitando deixar os filhos andar livremente na natureza. Que conselho daria aos adultos?
O medo dos adultos é, de longe, a maior barreira para deixarmos as nossas crianças brincar todo o tempo que precisam ao ar livre e na natureza. Não devemos deixar os nossos medos interferirem numa coisa que é um direito humano básico e que é também uma necessidade dos miúdos. É importante encararmos cada um desses medos e encontrarmos uma forma de lhes dar a volta. Se as crianças tiverem mais oportunidade de brincar ao ar livre, acredito que muitos dos problemas a que estamos a assistir irão dissipar-se. Eles precisam de horas a escavar a terra, a rebolar por ribanceiras abaixo, a construir fortes com os amigos e a brincar na lama de forma a integrar todos os sentidos e a desenvolver mentes e corpos mais fortes.
Alguma hipótese de a TimberNook chegar a Portugal?
Adorava levar a TimberNook a todos os cantos do mundo.