Paul French, autor do livro “Coreia do Norte – Estado de Paranoia” (Edições Desassossego, 2019), começou por olhar para a Coreia do Norte como “apenas mais um país comunista”. Mas depois apercebeu-se de que não era bem assim: trata-se tanto de um regime comunista como de uma monarquista absolutista. Depois de Kim il-Sung e de Kim Jong-il, o poder passou para as mãos de Kim Jong-un — um líder que é muito mais do que o seu penteado estranho e que, de certa forma, está a revolucionar a maneira como os norte-coreanos olham para a política. “É uma surpresa esta capacidade que ele tem de se apresentar em público com a mulher, com um filho nos braços e, por cima disso tudo, falar! Ninguém alguma vez ouviu a voz de Kim Jong-il”, diz o autor britânico, que, surpreendentemente, tem a convicção de que o ditador da Coreia do Norte anda a estudar a postura mediática da realeza do Reino Unido.
Em entrevista ao Observador, durante uma passagem para promover o seu livro, admite que a edição que hoje está nas livrarias precisa de ser atualizada. Mais do que falha dele — que já fez seis atualizações à obra — é reflexo daquele regime e do seu modus vivendi: “A Coreia do Norte é sempre um alvo em movimento”.
Uma das ideias iniciais do seu livro é que há muitas ideias erradas, que derivam de preconceitos, em torno da Coreia do Norte. Quais eram as suas ideias erradas e os seus preconceitos quando entrou neste tema pela primeira vez?
A minha experiência começa a partir da China e é a partir da China que eu começo a olhar para a Coreia do Norte. Por isso, passei de olhar para um país comunista que estava, então, a fazer várias reformas para um país comunista que não estava a fazer reformas nenhumas. E também sou velho o suficiente para ter visitado a antiga União Soviética, a Alemanha Oriental, a Roménia e Cuba nos dias de Castro. E a ideia errada que eu tinha sobre Coreia do Norte era a de que era apenas mais um país comunista que, simplesmente, ainda não tinha implodido. E para mim isso queria dizer que a Coreia do Norte não tinha colapsado, como a União Soviética, ou ainda não tinha tomado a decisão de mudar, como a China.
Estamos a falar de que ano, mais ou menos?
Anos 90. Nos anos 80 eu era um estudante na China, mas só nos anos 90 é que comecei a olhar para a Coreia do Norte e a estudar o país. E isto foi na altura em que descobrimos, de repente, que havia uma crise de fome na Coreia do Norte. Fiquei surpreendido, porque, na altura, as crises de fome eram coisas que nós imaginávamos apenas em África. Porque é que haveria uma crise de fome ali? Os norte-coreanos diziam que a culpa era do tempo e outras pessoas diziam que era consequência da ação do Homem. E foi isso que me interessou. E fiquei interessado quando Kim Jong-il assumiu o poder [em 1994] e a pergunta era simplesmente: quem é Kim Jong-il? E, como muitas pessoas, eu pensava que aquilo era bizarro. Era muito fácil fazer piadas sobre aquele tipo.
Do ponto de vista de um comediante, a Coreia do Norte é sem dúvida muito apelativa…
… sim, do ponto de vista dos programas de televisão do final da noite, é engraçado. Kim Jong-un é engraçado, visto dessa forma…
Não terá essa perspetiva humorística, em que se vê a Coreia do Norte muitas vezes pelo ângulo da piada, impedido o Ocidente de entender o que se passa naquele país? Fala-se muito do penteado de Kim Jong-un e pouco de outras coisas…
Sim. Quando Trump se encontrou com Kim, ficou claro que não entendemos nem conhecemos a capacidade de pesquisa nem sabemos do esforço que eles fazem para saber mais sobre nós. Em Singapura, Kim entendeu Trump de uma ponta à outra e Trump não fazia ideia de que pessoa é que tinha à frente. Eu sei que Trump é uma exceção no que diz respeito a ouvir os outros e a aceitar conselhos, mas a crença que se generalizou por aqui é que na Coreia do Norte só há uma pessoa que importa e que depois não ouve ninguém. Essa é uma ideia muito fácil de formar da nossa parte, porque nós não sabemos quem é que aconselha Kim Jong-un, até que ele depois decide executar um deles. Mas até hoje ainda não sabemos que é o John Bolton de Kim Jong-un. Não fazemos ideia.
Acredita que isso é uma vantagem para Kim Jong-un?
É uma vantagem porque é mais uma coisa sobre a qual nós não conseguimos escrever. Se lermos as coisas que a Coreia do Norte publica, mesmo em inglês, é tudo uma loucura. A linguagem é louca. E é preciso saber ler por baixo da camada da linguagem. E, para aí chegar, é preciso saber de onde é que eles vêm, é preciso conhecer a História deles. É muito fácil dizer que ninguém quer invadir a Coreia do Norte e que eles são malucos por terem armas nucleares, uma vez que não têm de se preocupar com nada. Mas depois há a perspetiva deles. Kim il-Sung [fundador da Coreia do Norte, avô do atual Presidente] foi um guerrilheiro que, antes de tudo, teve de lutar contra o colonialismo japonês. Depois, entregou-se a outra batalha, a Guerra da Coreia, onde chegou a haver um pedido de permissão ao Presidente Eisenhower para utilizar armas nucleares. E é um facto que os EUA foram, até agora, o único país a utilizar armas nucleares em guerra e isso tinha sido há menos de 10 anos antes daquela guerra. Além disso, no final da Guerra da Coreia, Pyongyang e a Coreia do Norte estavam devastadas. Como a Síria está hoje. Não sobrou nada. É muito importante entender tudo isto. Agora, também é certo que a família Kim — Kim1, Kim2 e Kim3 — usou isso para manterem o seu povo num estado de paranoia e a viver em condições de guerra, em parte por causa da sua incapacidade de pôr uma economia a funcionar. Mas é importante entender de onde é que eles vêm.
Para lá da propaganda, isto é uma crença comum entre os norte-coreanos? Eles acreditam que estão constantemente em risco de entrar em guerra, apesar de já não haver uma guerra há várias décadas?
Não, mas sentem-se ameaçados. E, depois, há um país com 35 mil soldados dos EUA mesmo a Sul [Coreia do Sul], a 7ª armada do Pacífico dos EUA é enorme e faz exercícios com a Coreia do Sul mesmo ali na costa. Depois, o Japão, que é um inimigo de longa data da Coreia do Norte, é, para os norte-coreanos, um Estado vassalo dos EUA.
Além de que, no Japão, há 50 mil tropas norte-americanas.
Isso. E os norte-coreanos olham para tudo isto e pensam “bom, não podemos esperar uma grande ajuda da China, já que nunca tivemos uma relação de jeito com eles” e “a nossa economia colapsou, porque a economia soviética também ruiu e, por isso, não temos nenhuma ajuda direta da Rússia”. E, a partir daí, pensam: “O que é que fazemos agora?”. Além disso, também sabem que têm uma economia que não consegue sustentar um exército grande. O exército deles, do ponto de vista do exército tradicional, é inútil. É tudo uma questão de logística, de levar meios de um lado para o outro quando há uma colheita. E por isso é que foram para a solução nuclear. É a estratégia do porco-espinho.
O programa nuclear da Coreia do Norte é frequentemente descrito como o seguro de vida do país. Não é a apenas um projeto maquiavélico para destruir inimigos, é um meio de sobrevivência. Concorda?
Claro. É um seguro de vida e é também uma forma de chantagem. É a única que eles têm. Se olharmos para a situação da Coreia do Norte neste momento, com uma intensa falta de comida e seca extrema, Kim Jong-un sabe que precisa de chegar a alguma solução na questão das sanções. As sanções têm sido duras e têm feito muitos estragos. Mas, quando a China entrou nas sanções, o que foi inesperado para a Coreia do Norte, a situação ficou muito pior. E eu acredito que quando Kim Jong-un foi a Singapura estava à espera de chegar a um acordo que permitisse suspender as sanções em troca de um congelamento do programa nuclear. Mas as coisas não foram assim e Trump deu vários passos em falso que impediram aquele desfecho, ao exigir que os EUA observassem o congelamento do programa.
Acredita que o resultado teria sido outro se se tivesse proposto uma equipa de observadores independentes?
Uma equipa de observadores independentes podia ter essa função, mas os EUA não são independentes. O que eu digo sempre é que tem de ser alguém como os suecos, em quem toda a gente confia…
… ou os noruegueses, tanto faz, porque também são conhecidos pela sua capacidade de mediação…
[risos] Sim, tem de ser alguém assim. E, a partir daí, podia haver um roteiro a seguir. Podia haver um acordo estruturado, com a mecanismos que permitissem criar confiança entre as partes. Mas não foi disso que se falou. O que se falou foi de Trump conseguir um acordo onde a Coreia do Norte abria mão de todas as armas.
Ficou surpreendido quando, na segunda cimeira entre Kim Jong-un e Trump, em Hanói, as negociações foram interrompidas e cada um foi para o seu lado?
Eles basicamente viram que não iam tirar nada dali e, por isso, concordaram que era melhor cada um ir à sua vida. Mas acredito que vá haver em breve uma terceira cimeira, desta vez mais estruturada.
A questão aqui é que tanto a cimeira de Singapura como a de Hanói, ou o que houve desta, foram muito fortes em termos de imagem. Em Singapura, pela primeira vez, deu para ver estes dois líderes juntos. A apertar a mão um ao outro…
… isso foi uma vitória para Kim Jong-un…
… sempre num ambiente quase de amizade. E, na primeira metade da cimeira de Hanói, também foi assim. Deu para ver, inclusive, os dois líderes a caminharem junto à piscina do hotel onde decorreu a cimeira. Trump disse até que foi tudo “muito bonito”. Depois, para culminar isto tudo, havia o jantar a seguir à cimeira. Mas ninguém acabou por se sentar àquela mesa, para surpresa de todos. Também ficou surpreendido?
Nem por isso. Ninguém tinha planeado aquilo. Os EUA não traziam nada de novo para a mesa e os norte-coreanos também não. Não havia nada para discutir.
Estava morto à nascença, então?
Sem dúvida. E, depois de tudo aquilo, alguns pensaram que Kim lá teve as suas fotografias, que era o que ele queria, e Trump deu cabo de tudo ao não ouvir os conselhos dos outros. Mas talvez seja certo pensar que Trump quer uma vitória na política externa e que Kim precisa de uma coisa. Quem é que precisa, afinal de contas, que as sanções das Nações Unidas sejam levantadas? Ora, para conseguir isso, Kim vai ter de oferecer alguma coisa.
Mas até lá ele parece estar disposto a usar as suas armas nucleares como meio de chantagem. Ainda há pouco, voltou a fazer testes nucleares, que era coisa que não acontecia desde 2017.
Claro, claro. Claro que ele voltou a fazer os testes e toda a gente está nervosa outra vez. Está tudo cheio de medo de que alguma coisa corra mal e um dos mísseis caia em Hokkaido [ilha no Norte do Japão, com várias cidades e mais de 5 milhões de habitantes] ou algo do género. Mas, sem querer reconhecer muito o trabalho de Trump, quando ele foi confrontado com os testes e com a ideia de que eles eram uma violação ao acordo [de Singapura], ele disse que não era. E as pessoas disseram: “Mais uma vez, não está a ouvir o que os conselheiros lhe dizem”. Mas, se ele disser que é uma violação do acordo, volta a haver um conflito. E se ele disser que não, não é uma violação do acordo. Mesmo que, na verdade, possa sê-lo, sobra algum espaço para haver uma nova ronda de negociações. Foi muito inteligente fazer isso.
O seu livro já foi publicado há alguns anos…
Em 2005. Mas já foi atualizado umas seis vezes.
Quando foi a última atualização?
Em 2016.
Há três anos. Em anos de Coreia do Norte, sobretudo quando olhamos para os últimos, é uma vida!
Sim. Geralmente atualizo o livro a cada três anos.
E agora tem muito para atualizar.
Sim. Mas nas outras vezes pensei sempre que não tinha assim tanto para atualizar. Atualizei o livro quando o Kim Jong-il morreu, depois foi atualizado quando já sabíamos algumas coisas sobre Kim Jong-un… Agora, tivemos as cimeiras entre Trump e Kim. Vou ter de digerir isso e incluir na próxima edição. A questão é se eu faço a nova edição já e depois eles convocam uma terceira cimeira…! A Coreia do Norte é sempre um alvo em movimento.
Então está à espera de uma terceira cimeira e depois atira-se à nova edição?
Eu acho que vai haver uma nova cimeira e, depois, é preciso fazer uma avaliação acertada de quanto poder é que ele tem nas mãos.
Era mesmo isso que lhe queria perguntar. É que na edição do livro que acaba de lançar em Portugal nota-se que ainda é cauteloso no que toca a avaliar o quão poderoso ele se tornou no país. Já tem uma ideia mais concreta agora?
O que podemos dizer agora é que ele provou ao exército de que é um tipo duro. Afinal de contas, ele fez uma purga a 75 líderes militares, inclusive ao próprio tio. Outra coisa que não é referida nessa edição do livro e que terá de ser atualizada é que ele assassinou o seu meio-irmão na Malásia. Não há discussão quanto a isso, é óbvio que o matou. Além disso, ele conseguiu avançar com o programa de armas nucleares. A Coreia do Norte é agora uma potência nuclear. Infelizmente, vamos ter de viver com isso, porque é mesmo isso que eles são. E também conseguiu ter Trump numa fotografia e sentado à mesma mesa. Kim Jong-un está numa posição extremamente forte no seu próprio país, com uma exceção: as sanções da UE. Isto quer dizer que ele não está a dar mais comida às pessoas. Depois há a política de byungjin — que é a política de desenvolvimento paralelo, em que a primeira regra é garantir a segurança do país com armas nucleares e a segunda é a ressuscitar a economia. Sinceramente, eu acho que ele quer mudar a economia. Pelo menos, quer permitir que entrem mais bens de consumo e mais comida. Mas, numa altura em que os americanos não estão a mandar comida nenhuma e em que as Nações Unidas só têm dinheiro para mandar metade do que é necessário, ao mesmo tempo em que há sanções apoiadas pela China, é impossível para Kim Jong-un fazer isso. Por isso é que ele precisa de um desenvolvimento qualquer numa próxima cimeira.
Mas que tipo de desenvolvimento?
Ir a uma nova cimeira e aceitar um congelamento do programa nuclear, com observadores independentes.
Ou seja, algo ao estilo do acordo nuclear com o Irão.
A partir daí, podemos suspender algumas sanções que resultem no benefício imediato do povo. Por exemplo, se o petróleo puder voltar a entrar, isso quer dizer que vai deixar de haver apagões e vai ser possível meter medicamentos no país, tal com fertilizantes. Eu sei que falo muito sobre fertilizantes no livro, mas os fertilizantes são muito importantes na Coreia do Norte! E o fertilizante que eles usam é um derivado de petróleo. Portanto, eles precisam de petróleo. Além disso, é preciso ter os sul-coreanos envolvidos no centro industrial de Kaesong e a fomentar qualquer tipo de investimento transfronteiriço. A partir daí, as coisas podem avançar. O cenário para que estamos a avançar agora é não haver um acordo em torno das armas nucleares. Sabemos que a ração diária para cada pessoa foi diminuída para 300 gramas e sabemos que as Nações Unidas têm menos de 50% do dinheiro que é necessário para enviar comida para lá e também sabemos que as sanções não estão a produzir resultados. Além disso, sabemos que há uma seca tremenda, o que significa que não é possível plantar arroz, porque não há água para os arrozais. Isso quer dizer que a colheita de um ano é inexistente. Se tudo isso acontecer, as pessoas vão passar fome e vamos repetir a crise de fome dos anos 90.
Nesse caso, a ajuda humanitária pode muito bem ser utilizada como moeda de troca na mesa de negociações.
Sim, claro. E Kim Jong-un sabe isso muito bem. Embora o Juche [ideologia criada nos anos de Kim il-Sung, que descreve como deve agir o país e os cidadãos] signifique literalmente “auto-suficiência”, tudo isto tem acontecido por causa dessa chegada a conta-gotas de ajuda humanitária por parte da comunidade internacional. E ele precisa disso. Porque, se as pessoas começarem a passar fome — sobretudo, se o exército passar fome —, é aí que as pessoas vão começar a pensar na possibilidade de o tirarem do poder. Se chegasse a um ponto em que as pessoas, por fome, começassem a atravessar a fronteira com a China em massa, a China ia passar-se. Talvez venha a ser essa a altura em que Pequim e o exército decidam que chegou o momento de tirá-lo do poder. Por isso, é bastante provável que, a haver algum derrube do regime, seria não por revolução popular, mas antes por golpe. Seria uma questão de tirar a família Kim e meter alguém no lugar deles. Mas a Coreia do Norte não iria mudar muito, pelo menos aos nossos olhos. Estaria apenas mais aberta à China. Há, porém, uma pedra no sapato, que é Trump. Há um ano, estive em Pequim a falar com algumas pessoas e muitas disseram-me que estiveram assustadas com os mísseis — acho que, na Europa, não chegámos a entender bem o que medo que tudo aquilo criou — e, por isso, apertaram com a Coreia do Norte. Fecharam-lhes as contas bancárias em Macau e em Hong Kong e também pararam as vendas de petróleo. Ora, há um mês, falei com essas mesmas pessoas e perguntei-lhes o que é que achavam. A resposta foi que não estavam tão incomodados quanto isso. Primeiro, porque já não viam ensaios com mísseis há algum tempo. Depois, porque a guerra comercial com os EUA agora é a sua maior prioridade. E, numa altura destas, quem quer que consiga criar problemas aos EUA é bom para os chineses. Quer seja a Coreia do Norte, a Rússia ou a União Europeia. Só pensam na guerra comercial.
Não há dúvida de que isto empurra a Coreia do Norte para um segundo plano no que diz respeito à China…
E, no final de contas, a China só quer saber da China. Não quer saber de mais ninguém.
Há uma questão importante para tudo isto que me parece ser pouco abordada, que tem a ver com a China. O que é que a China tem a perder numa situação de agravamento da crise na Coreia do Norte. Toda a gente fala da possibilidade de um êxodo massivo da Coreia do Norte para a China. E que mais?
O êxodo massivo é o que mais os preocupa e a minha previsão é que vai haver mais tropas destacadas pela China para a fronteira. Outra coisa que os preocupa particularmente — e por isso é que eles são a favor de observadores internacionais para o programa nuclear da Coreia do Norte — é que ninguém sabe em que estado está o reator nuclear de Yongbyon. Ninguém foi lá e está muito perto da fronteira com a China. Ninguém sabe se está ali um próximo Chernobil prestes a acontecer. E se os ventos estiverem na direção errada… quem vai sofrer é o nordeste da China.
Diria que a Coreia do Norte tem como chantagear a China? Ou fá-lo de forma mais subtil?
Parece-me que é menos subtil. Na verdade, eles estão-se a borrifar.
Não querem saber da China para nada?
Eles têm algum reconhecimento para com a China, mas há uma razão por trás do facto de eles não estarem a responder diretamente ao que a China lhes pede. Isto tem a ver com questões que são anteriores até à fundação da Coreia do Norte. Tem a ver com raiva para com a China há várias gerações. Até há uma disputa territorial, em que a Coreia do Norte reclama a posse de metade do nordeste da China. Por isso, há muitas razões para eles se estarem a borrifar para a China. Mas não se estão a borrifar para o petróleo da China. E a China, a partir de agora, irá sempre abordar a Coreia do Norte da mesma maneira que o resto do mundo tem abordado a Nova Rota da Seda, onde diz: nós podemos entrar, reconstruimos o porto de Rajin e fazemos uma linha de comboio como deve ser e, partir daí, podemos ir da ilha de Taecho-do até Amesterdão. Há muito dinheiro em questão aqui.
Então se há tanto dinheiro em questão, porque é que Kim Jong-un não tem demonstrado abertura à Nova Rota da Seda?
Porque ele acha que qualquer movimento nesse sentido pode implicar uma perda de poder. Sempre que os chineses vão ter com ele, dizem-lhe: “Porque é que não abre uma janela e deixa entrar um bocadinho de ar fresco? Olhe para nós! Abrimos a economia e agora temos pessoas a comprar apartamentos, a andar de Mercedes e a ir de férias a Lisboa para ir às compras e depois voltam. Não há problema, porque nós continuamos a mandar em tudo”. Ou seja, um abordagem que é só perestroika e que não tem nada de glasnost. Mas o que os norte-coreanos respondem a isso é sempre o mesmo: “Se abrirmos uma janela, as moscas entram”. É sempre assim.
E que moscas é que os preocupam?
Preocupam-se com que se livrem deles. Por um lado eles, sentem-se muito seguros e, por outro, sentem-se muito fracos. Eu estive na Coreia do Norte pouco depois da crise na Líbia. Isto foi quando tinha saído aquele vídeo de Khadafi a ser arrastado de um carro e a ser morto. Tudo aquilo assustou-os muito. Ainda mais do que a queda de Saddam ou o colapso da União Soviética. O facto de aquela pessoa, que também pregava a auto-suficiência, que tinha a sua versão de Juche…
… só que com petróleo, no caso da Líbia…
… exato, com petróleo! Mas o que eles viram ali foi um país que parecia ser muito leal a mudar muito depressa. Se olharmos para todo o bloco de leste na Europa, na Coreia do Norte eles podiam dizer que, na Rússia, também nunca mais foram marxistas a sério depois da morte de Estaline. Mas o exemplo para onde eles sempre olharam era a Roménia. Era um país sólido! Mas, depois, um par de dias antes do Natal, quando Ceaucescu estava a discursar, as ovações passaram a ser apupos e, mais tarde, no dia de Natal, deram-lhe um tiro na nuca.
Foi muito rápido.
Muito. E, para eles, olhar para o que se passou e não conseguir, de forma científica, perceber como é que tudo aconteceu tão depressa, é muito assustador. Na Coreia do Norte não há um movimento sindical clandestino como o Solidarnost, não há uma organização religiosa de pé, não há um movimento de dissidentes fora do país a organizar um parlamento no exílio ou algo do género. E não há ninguém a organizar-se dentro do país. Por isso, todas as condições para uma revolta, como vimos na antiga União Soviética ou na Líbia, não se aplicam à Coreia do Norte. É difícil ver como é que pode haver um clique.
Não há nenhum Lénine a chegar de comboio, não há um aiatola Khomeini a chegar de Paris, não há ninguém desse género.
Nada. Também não há um Lech Wałęsa ou padres a darem missa às escondidas às pessoas. Mas há uma coisa. Desde que o Kim Jong-un está no poder, tenho feito muitas entrevistas com jovens que saíram da Coreia do Norte. E muitas destas pessoas que fogem não são diplomatas ou militares, mas antes jovens. Na Coreia do Norte existe o sistema de punição coletiva. Ou seja, se uma pessoa sair, vão castigar o mãe ou o pai deles, os filhos… até o chefe. Isso quer dizer que muitas pessoas não saem por causa do sentimento de culpa associado a tudo isto. Mas muitas das pessoas que saem são jovens — ou seja, pessoas que ainda não estão casadas e que ainda não têm relações muito profundas. E, muitas vezes, saem porque têm autorização dos pais. Os pais dizem-lhes: “Vai embora, arranja outra vida, não te preocupes connosco”. E o que estes jovens me dizem, e eles não são pessoas politizadas, é que, nos últimos anos, a corrupção sente-se muito mais. Ora, esta ideia na Coreia do Norte de que “tudo bem, eles são a elite e nós somos o povo, mas a elite também não tem uma vida espetacular” está a desaparecer. Hoje em dia, quando se vai a uma repartição estatal para ter a carta de condução ou para ter uma autorização para mudar de casa, é preciso pagar um suborno. Por tudo isto, a classe política está a tornar-se numa classe parasitária. E há uma que coisa que vimos nos últimos 20 ou 30 anos, desde a crise de fome dos anos 90. É que se as pessoas decidirem que já não são representadas pelos políticos, que já não há sentimento de uma luta comum contra o imperialismo e que os políticos só querem tirar o dinheiro às pessoas, talvez haja aí um rastilho.
Isso é uma ideia muito perigosa para o regime.
É perigosa, sem dúvida. Mas depois há as sanções das Nações Unidas. Antes das sanções, como é que o Kim Jong-un mantinha as pessoas felizes? Não lhes podia dar imenso dinheiro, não podia fazer da elite um conjunto de oligarcas. Era impossível. Mas era possível arranjar um carregamento de relógios vindos de Macau e assim todos podiam ter um relógio melhorzinho ou uma cozinha melhor. Com as sanções, isto secou tudo. Além disso, estas pessoas, que fizeram dinheiro de várias formas ilegais, podiam depositar os lucros em contas em Macau ou Hong Kong. Agora já não podem. Por isso, no que toca a estas pessoas, se Kim Jong-un quiser ter a lealdade política delas terá de suborná-las. Será que isso chega? Será que isso é suficiente para impedir que surja uma oposição a sério? Na Coreia do Norte já sabemos que a primeira pessoa a queixar-se é logo morta.
Foi isso que aconteceu com o tio de Kim Jong-un, Jang Song-thaek.
De certa forma, sim. Mas o que eu quero dizer é que se um grupo de pessoas se juntar no meio de uma aldeia e disser que não está contente com os líderes, vão logo ser mortos. Vai ser uma situação ao estilo de Tiananmen. A única saída daqui é fazerem o que os chineses fizeram recentemente — e a verdade é que ouvi falar de algumas pessoas que já fizeram isto —, que é arranjar maneira de os cidadãos dizerem que o autarca deles ou alguém no partido está a roubar o dinheiro das pessoas. E depois dizer: “Ai, se o nosso Querido Líder soubesse…!”. Na China, seria assim.
Ou seja, ao estilo de Xi Jinping.
Sim. “Ai, se Xi Jinping soubesse disto, de certeza que faria alguma coisa. Mas ele não tem como saber tudo.” Isto é uma maneira muito inteligente de dizer: “O que estou a tentar fazer é dizer ao nosso Querido Líder que sou tão patriota ao ponto de denunciar esta pessoa”. Acho que é possível algo semelhante a isto surgir, mas, ainda assim, será uma luta enorme.
Há uma parte do livro em que fala de uma subida nas vendas e no uso de maquilhagem. À primeira vista, isto até pode ser um bom sinal, já que pode indicar uma sociedade onde as necessidades básicas estão supridas e que, dessa forma, já se pode dar a alguns luxos. Mas depois diz logo a seguir que isto é uma consequência da dieta comum na Coreia do Norte, que leva a que as pessoas tenham manchas na pele. Há outra parte ainda em que descreve uma sociedade muito classista, que é algo que não se esperaria. Há três classes sociais e, entre estas, 51 subcategorias.
E transitar de uma dessas classes para outra é muito difícil.
Numa situação de caos, seja uma crise de fome ou um Chernobil, como disse, esta escassez que se sente e também as divisões que existem podem servir de catalisador para qualquer tipo de revolta?
É possível. Mas uma coisa que várias pessoas que têm fugido da Coreia do Norte me têm dito é que uma das poucas coisas em que Kim Jong-un tem tido sucesso é na sua tentativa de cair nas graças dos mais jovens.
Faz isso com bens de consumo?
Com bens de consumo, sim, mas também com o seu próprio estilo de vida e com a sua família. Ele certamente estuda a família real britânica. Tenho a certeza de que ele anda a seguir os passos de William e Kate, ou de Harry e Meghan, ou coisa que valha. Esta é a primeira vez que um líder vai a jogos de basquetebol — com o Denis Rodman, até —, que vai a concertos de pop, que vai a escolas e a universidades…
Além do mais, ele é casado com uma ex-estrela pop.
Uma estrela pop, sim, que é uma mulher atraente. E têm um filho, se calhar até têm mais, não sabemos. De vez em quando, são vistos a passear, enquanto casal, que é algo que nunca foi visto. Tanto quanto sabemos, ele nem tem amantes. Não há sequer sussurros nesse sentido. E isso foi uma das coisas que mais pesou contra Kim Jong-il. É bizarro para nós, que vimos de culturas em que a cultura da juventude é muito diferente, mas é uma surpresa esta capacidade que ele tem de se apresentar em público com a mulher, com um filho nos braços e, por cima disso tudo, falar! Ninguém alguma vez ouviu a voz de Kim Jong-il. Eles são uma monarquia comunista e ele tem esta capacidade de demonstrar uma postura jovem e moderna, à maneira da Coreia do Norte. Kim Jong-un até aparece a fumar em público — há até uma imagem dele em que está a visitar uma sala com crianças e ali, no meio daqueles brinquedos todos, ele está a fumar [risos]. Tudo isto é incrivelmente moderno. E é desenhado para apelar à juventude. Também há os restaurantes de hambúrgueres em Pyongyang. É certo que é em Pyongyang e é para a elite. Mas, mesmo assim, é moderno. Creio que Kim Jong-un gostaria de alargar mais isto…
… tornar o acesso a estes bens de consumo mais democrático, se é que esse termo se pode aplicar à Coreia do Norte?
Certamente, ele quer mais bens de consumo no país. Não tenho a certeza de que ele entende isso como uma vantagem para criar uma maior circulação de capitais.
Será mais pela imagem?
Sim, é para dar a imagem de que as coisas estão a ficar melhores, depois de tanto tempo em que estavam a ficar piores. Mas nada disto pode ser feito até ele resolver a crise alimentar e as sanções das Nações Unidas. E isso traz-nos de volta às armas nucleares e ao que ele vai fazer com elas. Não há volta a dar.
Trabalhar em torno da Coreia do Norte não acaba por ser sempre esta espiral negativa? Num momento estamos a falar de maquilhagem, hambúrgueres e uma abertura à sociedade e, logo a seguir, já estamos a falar de sanções, de seca e de fome.
E essas aberturas acontecem num pequeno círculo em Pyongyang, não é sequer uma realidade nacional.
Exatamente, há muito que resta fazer. E também não é com hambúrgueres que se vai curar uma nação. Mas queria perguntar-lhe: há alguma altura da História da Coreia do Norte em que, fugindo à propaganda, se possa falar de uma espécie de era dourada? Houve alguma altura em que as coisas deram certo para a Coreia do Norte?
Os primeiros 10 ou 15 anos. A partir de alguns números que estão disponíveis, podemos ver que a Coreia do Norte cresceu mais depressa do que a Coreia do Sul nessa altura. Isso não é necessariamente surpreendente, porque, se pegarmos num país totalmente destruído e tivermos de o reconstruir, provavelmente um economia centralizada e comunista é a maneira mais rápida de lá chegar.
Além de que, comparativamente com a Coreia do Sul, a Coreia do Norte tinha mais recursos naturais à altura, com destaque para a indústria mineira.
E os soviéticos estavam a ajudar. Tinham mais recursos do que o Sul, sim. E o Sul ficou, de certa forma, entregue a si próprio, porque é assim que funciona o capitalismo. Milton Friedman disse isto a Fidel Castro: “Maravilha! É possível reconstruir um país em termos económicos e sociais, com questões como a literacia, mais depressa com um sistema comunista. O mais difícil é entender quando é que se deve transformar o sistema numa economia de mercado”. A China, provavelmente, fez essa transição 15 anos mais tarde do que devia, mas acabou por fazê-lo. E a União Soviética nunca o fez e, por isso, morreu. A Coreia do Norte também não o fez e continuou com esse sistema, até aos dias de hoje.
A única maneira que eles têm de sobreviver no que diz respeito à alimentação é se nós enviarmos mais comida. Não há maneira de saírem da crise alimentar em que estão metidos se cultivarem mais comida, porque não conseguem cultivá-la. E mesmo que não fosse por causa das secas e das cheias, a agricultura coletiva não lhes permitiria isso. Eu já fui a explorações agrícolas na Coreia do Norte e o que se vê lá são campos com ervas sem maquinaria ou gado. As coisas estão tão más que já comeram todas as galinhas, portanto já não há ovos. Comeram as vacas quando ainda são vitelas, porque têm fome. Comeram as sementes antes da sementeira, porque têm fome. Não têm fertilizantes nem inseticidas ou pesticidas, portanto não se produz nada e só há bichos. Depois, há as cheias. Só que, claro, para ganhar dinheiro, eles cortaram as árvores nas colinas e venderam-nas à China. E, quando chove, a água vai em catadupa e arrasta tudo pelos campos. Ou então há anos como este, em que há uma seca e, depois, não há sistemas de irrigação e não há barragens ou reservas de água. Não têm nada. E é muito difícil perceber o que é que nós podemos fazer para melhorar isto. Podemos mandar sacos de comida para a Coreia do Norte, mas não podemos irrigar-lhes os campos. Isso não é possível. E eles não conseguiram fazer nada. Portanto, uma pessoa visita estas quintas e não se passa ali nada. Nem sequer há transportes para lá, portanto as pessoas têm de andar quilómetros para irem para o trabalho. Quando chegam lá, já estão exaustas.
No seu livro, conta que, a certa altura, o regime começou a dizer às pessoas para irem a pé para o trabalho, porque é bom para a saúde.
Pois, mas depois, quando chegam ao trabalho, estão exaustos porque nem comeram nada. Mas quando se vai a uma casa de um agricultor, a quem é permitido ter um pequeno quintal, aquilo é incrível. Há tomate, há couves, há tudo.
Então o individualismo ali funciona!…
Isso! É que, se eles trabalharem bem na quinta coletiva e as coisas correrem bem, o mais certo é o governo pegar na produção toda e mandá-la para Pyongyang. Não sobra nada. Então, o que eles fazem na maior parte do dia é dormir tanto quanto possível e, nas horas que sobram, tratam dos seus quintais. Quem vive no campo, possivelmente consegue sobreviver com aquilo. Nos quintais, a produção é incrível. Nas quintas coletivas, não há nada. Eles sabem o que estão a fazer, conhecem as técnicas, mas simplesmente não lhes é permitido utilizá-las. Mas quando há um culto de personalidade e uma ideia de que o líder nunca está errado, como é que se pode chegar a um ponto em que se diz que “esta forma de agricultura não funciona” ou “esta indústria não funciona”? Na China, Deng Xiaoping foi inteligente ao dizer, sobre Mao, aquela famosa expressão de que ele tinha tomado “70% de decisões boas e 30% de decisões más”. Ou seja: a ideia não era pedir desculpa por nada, Mao continuaria na praça de Tiananmen, tudo é incrível e não esperem que a Internet funcione a 4 de junho [data do massacre de Tiananmen]. Mas há 30% para mudar.
De qualquer forma, para o povo já saltava à vista que pelo menos 30% das coisas estavam mal…
Uma das piadas recorrentes que faço quando entrevisto políticos chineses é perguntar-lhes: “Então, já que passaram tantos anos desde que se falou dos 70% e dos 30%, estaria disposto a mudar os números? 75% e 25%? 60% e 40%? 80% e 20%?”. Claro que eles nunca querem mudar. Porque aqueles 30% não têm de ser 30% — aqueles 30% podem ser tudo! Não importa. Não é preciso estar a dizer o que é que corresponde aos 70% que são bons e aos 30% que são maus. O que importa a estes políticos é haver espaço de manobra para que possam introduzir um sistema de preços competitivo, que torne possível cobrar mais às pessoas nas cidades, para dar mais dinheiro às zonas rurais. E, na Coreia do Norte, ainda não têm a capacidade para fazer isto. Era mais fácil isto acontecer na China, porque não é uma monarquia comunista. Deng Xiaoping só teve de dizer que Mao estava errado, o que já é difícil que chegue. Mas Kim Jong-un teria de dizer que o pai ou o avô estavam errados. Ou seja, os Kim estão errados.