Índice
Índice
O advogado Rui Patrício sabe que o registo é informal, mas tem dificuldade em despir o seu blazer azul escuro para ficar em mangas de camisa e ser entrevistado no terraço do Observador. Prefere mantê-lo vestido e enfrentar os quase 40 graus que se faziam sentir durante esta Summer Session. Mesmo descontraído, ou tentando, o advogado que recentemente defendeu o ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, mantém a ironia e o sentido de humor que caracterizam as suas performances na barra do tribunal. Ele chama-lhe, também, mise en scéne, e diz ser fundamental num bom advogado.
O homem que tem em mãos a defesa de arguidos de alguns dos maiores processos de corrupção que correm em Portugal, como a Operação Furação ou, mesmo, a Operação Marquês, escolheu uma bebida com rum e limão para beber durante este encontro em que falou dos processos que mais o marcaram ao longo da sua carreira, e “que não foram de colarinho branco”. Respondeu ainda sobre o trabalho do Ministério Público e defendeu a visão anglo-saxónica da investigação criminal, em que se investiga de acordo com o princípio da oportunidade — selecionando o que se investiga — e não de acordo com o da legalidade, como em Portugal, em que todas as suspeitas que surgem num caso são escrutinadas. Só assim, defende contra todos, se evitariam megaprocessos.
Mas Rui Patrício não fala apenas de temas jurídicos. E até garante que é errado pensar que os advogados têm pouco tempo livre e que não vivem a vida. Ele vive-a, só não gosta é de o fazer rodeado de muitas pessoas. Gosta de ler, ver filmes e viajar, sobretudo sozinho. Não é dado a jantares numerosos, mas gosta de fumar o seu charuto e beber um copo à noite em casa. Para esta entrevista escolheu uma bebida com dois ingredientes, rum e limão, e não foi por acaso: “São, ao mesmo tempo doces, fortes e têm um toquezinho ácido. São três coisas importantes na vida quer pessoal, quer profissional estarmos preparados para lidar com estas três coisas: a força, o doce e o ácido. Se não fosse auto-elogio, eu diria que foram ingredientes bem escolhidos”.
É totalmente alheio às redes sociais, onde não existe. Rui Patrício no Facebook, só mesmo o guarda-redes.
[Veja no vídeo o best of da entrevista a Rui Patrício no terraço do Observador]
“Não frequento redes sociais. Zero”
Já alguma vez lhe ligaram por engano a pensar que estavam a falar com o Rui Patrício guarda-redes e não com o Rui Patrício advogado?
Por acaso já, várias vezes! Já me ligaram para o telemóvel, imagino que alguém tenha perguntado a outra pessoa: “Tens o telemóvel do Rui Patrício?” E a outra pessoa terá confundido. Já me aconteceu ligarem-me para eventos que eu não estava a perceber, como a inauguração da casa do Sporting num sítio qualquer… Depois percebe-se, para grande desilusão normalmente do interlocutor do lado de lá, que eu não sou o verdadeiro Rui Patrício. Já agora se me permite contar duas histórias engraçadas com a coincidência de nomes. Uma amiga convidou-me para ir a casa dela jantar e apresentou-me ao filho, que tem 8/9 anos e disse: “Vês, este é que é o Rui Patrício!”. A criança olhou para mim, fez um ar desapontado e disse: ‘Oh mãe, não é nada!’. Como se ela estivesse a enganá-lo e Rui Patrício só houvesse um. Também me acontece com frequência quando chamo o táxi e me perguntam o nome e eu entro no táxi.
… e causa uma desilusão…
O senhor olha para trás e diz: “É a chamada?”, e eu digo: ‘Sim é’. E ele diz: “Julgava que era o outro”. São coincidências de nomes. O outro é que é o verdadeiro Rui Patrício.
Também tentei pesquisar o seu perfil no Facebook, mas só encontrei o jogador de futebol. É avesso às redes sociais?
Não tenho redes sociais… não frequento.
Nenhuma? Porquê?
Zero, por duas razões. A primeira porque não tenho nenhum tipo de apetência por essas coisas, não tenho, não vejo ali nada que me seduza. Segundo, não sei se gosto muito da ideia de rede social, não sei se gosto muito daquela exposição, por um lado, e daquela falsa ideia de proximidade, por outro. Acho que as redes sociais convidam muito à exposição que é uma coisa que eu não gosto. Eu tornei-me uma pessoa conhecida contra a minha vontade, não procurei isso, trabalho em alguns processos que têm alguma exposição, embora não procure a exposição. Acho que as redes sociais cultivam uma ideia de falsa proximidade e isso também não me agrada muito, portanto, por estas razões não frequento. Há sítios que não frequento e um deles são as redes sociais. Sei que há o Facebook e o Instagram e outras mais modernas, mas de resto não sei mais nada.
Entrou na Morais Leitão & Associados, ainda era estagiário, e nove anos depois, já era sócio. Esse é um percurso normal ou a sua ascensão foi rápida?
Vou tentar responder à sua pergunta sem mostrar muito uma característica que às vezes me apontam , que é ser vaidoso. Eu entrei na Morais Leitão assim que acabei a faculdade, aliás fiz lá a minha vida profissional. Estou lá há 24 anos. Naquela altura, (agora é diferente e demora-se um bocadinho mais), para quem fizesse um percurso empenhado e bem sucedido era um percurso normal. Portanto o lapso temporal que vai de 1994, em que começo o estágio, até 2005, altura em que sou eleito sócio, eu diria que é um percurso normal para alguém que os sócios que o elegeram consideraram ter uma carreira de sucesso dentro da sociedade. Hoje como há um maior número de pessoas, como cresceram as sociedades, como há maior pressão para a ascensão a sócio em termos numéricos pode demorar-se um bocadinho mais.
Queria ser ator ou escritor. E acabou por ser advogado
Que conselhos pode dar a um estagiário que inveje o seu percurso?
Em primeiro lugar que não inveje, porque invejar é feio. As pessoas não julguem que se se acharem muito talentosas, muito bem falantes, que fizeram um curso muito bem feito, que o estudaram muito bem e sabem muito bem as matérias, falam muito bem, vão muito bem a tribunal ou que escrevem… qualquer coisa… que estas coisas são por si suficientes, sem trabalho, trabalho, trabalho. O importante de uma carreira é antes de mais o trabalho, mas a todos os níveis: trabalhar com o direito, com os factos, rever as coisas, estar atento aos detalhes, trabalhar com as pessoas, trabalhar com os clientes, depois é gostar, é ter criatividade, é ter coragem. É preciso ser corajoso para ser advogado, porque às vezes é preciso enfrentar situações difíceis, é preciso dizer não.
Pensou e quis sempre ser advogado? Se não o fosse o que seria?
Desde pequeno quis ser aquelas coisas todas que os miúdos querem ser: bombeiro, agricultor…
Polícia…
Polícia nunca quis ser, não sei porquê, já devia ser alguma deformação profissional subconsciente de advogado (risos). Mas quis estudar Historia e Filosofia, que eram as duas coisas que gostavam muito. Perguntei aos meus pais o que achavam e eles torceram um bocadinho o nariz, e com aquela inteligência que os pais têm, quando temos 17 ou 18 anos, disseram me: “Nós não te vamos condicionar, mas se tu fores para estas coisas provavelmente acabas em professor do liceu, queres ser professor de liceu?’. E eu pensei: ‘não quero ser professor de liceu!’. Então decidi ir para Direito e hoje não me imaginaria a fazer outra coisa…
Dedicou-se logo ao direito penal?
Não, já lá vou… Deixe-me só responder à primeira parte da pergunta, para não parecer que estou a fugir… Se eu não fosse advogado, não sei exatamente o que seria, sei o que gostava de ser: escritor ou ator.
Mas são precisas algumas características dessa profissão para ser advogado.
Sim, por isso gosto muito de ser advogado. Não sendo ator nem escritor, há uma parte de escritor, de imaginação, de trabalhar as palavras, e há uma parte de mise en scéne, de performance — duas palavras portuguesas bonitas (risos). Um advogado também precisa, sobretudo, de ser um bom advogado em tribunal. Dizem também que eu falo pelos cotovelos e que sou vaidoso… Não comecei logo por direito penal. Quando comecei o estágio tive o privilégio de fazer muitas coisas, fiz fiscal, societário, contratos, fiz contencioso. Percebi imediatamente que o contencioso era onde eu me sentia bem. Portanto a partir de 1995 eu não faço outra coisa na vida senão contencioso. Fiz todo o tipo: cível, arbitragem, penal, contraordenações. Decidi avançar para o mestrado e escolhi o penal. Na altura em que eu comecei o penal era muito residual. Vivíamos outro paradigma, outro tipo de sociedade…
Outro tipo de crime…
Quando comecei a advogar o paradigma penal era o tráfico de droga, o pilha galinhas, o furto da velhota, o cheque sem provisão. O penal não era uma coisa glamourosa, isto sem nenhuma critica. Mas percebia-se, quem estivesse atento, que aquilo que estava a acontecer na Europa, e que já tinha acontecido nos EUA, mudaria. O paradigma sociológico, o paradigma criminológico, o paradigma da instâncias de investigação passaram a dar atenção a outras coisas e assim foi.
Entre-os-Rios e a morte no pilar da ponte Vasco da Gama
E foi assim que lhe começaram a chegar processos?
E foi assim. Fiz contencioso civil durante muitos anos, depois começaram a aparecer casos penais, contraordenações dos grandes reguladores e agora há processos enormes e eu fui-me especializando. Acabei o meu mestrado em Ciências Jurídico Criminais, dei aulas muitos anos nessas áreas, depois tive dois ou três processos que, por razões ligados aos processo, tiveram alguma visibilidade. Depois imagino eu, sem querer ser muito presunçoso, acho que me desempenhei bem na maior parte dos casos. Vai havendo o boca a boca, as coisas foram acontecendo.
Esses processos mediáticos são bons para lhe trazerem outros processos ou as pessoas pensam: “Lá está o advogado que só defende casos de corrupção”?
É mais difícil gerir um processo mediático e o advogado perde a privacidade. Se quisesse ser uma figura pública tinha enveredado… mas não gosto, calhou-me… Mas não vamos ser hipócritas, que as pessoas não são tontas. É evidente que a popularidade pode atrair clientela, agora é preciso gerir essa popularidade, é preciso termos cuidado com o tipo de casos que aceitamos, com a forma como nos comportamos perante as câmaras, com aquilo que dizemos, porque também pode ter o efeito contrário. Algumas pessoas poderão no seu íntimo não escolher um advogado mais mediático, por não quererem ser associadas a um advogado que, se um jornalista vir, vai perguntar quem é. E haverá uma pessoa ou outra que não goste, porque provavelmente associa a imagem a um certo tipo de casos… nós não fazemos só esses casos. Os casos que são mais mediáticos são os de colarinho branco, mas fazemos outras coisas. Aliás, o primeiro grande processo, onde eu tive muita exposição, foi o processo da ponte Entre os Rios e da morte das crianças na ponte Vasco da Gama. O julgamento das crianças terá sido entre 2002 e 2005 e o julgamento da ponte Entre os Rios foi entre abril e outubro de 2006. Há processos que nos marcam e nós decoramos as datas.
Esses são dos processos que mais o marcaram?
São alguns dos, marcaram-me muito porque foram processos difíceis do ponto de vista jurídico e do ponto de vista pessoal. O advogado é um profissional, como um jornalista ou um médico, deve saber gerir a suas emoções, mas quando sai de casa de manhã não as deixa lá, ou pelo menos não as deixa lá todas. Nós estávamos a julgar se aquelas pessoas que estavam sentadas no banco dos arguidos eram ou não responsáveis pela morte de duas irmãs no início das obras da ponte Vasco da Gama. Na outra morreram algumas dezenas de pessoas e todo o País se lembra quando caiu a ponte Entre os Rios. Desse ponto de vista julgamentos difíceis, emotivos, com pessoas na assistência, com alguma carga emocional. Foram também dois processos que me marcaram porque eu tinha e tenho, e o tribunal felizmente nesses dois casos reconheceu, a absoluta convicção de que as pessoas que eu defendi não tinham nenhuma responsabilidade. Acabaram por ser absolvidos.
“Muitos colegas não têm o privilégio e o luxo que eu tenho de poder dizer não”
Mas há também processos que recusa. Por uma questão de princípio?
Há muitos processos que recuso. Primeiro, acredito convictamente naquela máxima, que não é balela, que toda a gente tem direito a defesa, o que não significa que toda a gente tenha que ter direito a defesa por mim. Em segundo lugar, poder recusar clientes é um luxo e eu tenho bem consciência disso. É um privilégio, nem toda a gente pode fazê-lo, porque Portugal tem muitos advogados e as pessoas precisam de trabalhar, sustentar-se, sustentar as suas famílias. Tenho a consciência de que há muitos colegas meus que não têm o privilégio e o luxo que eu tenho de poder dizer não. E digo-o muitas vezes por três razões: ou não tenho condições para aceitar o caso, não tenho agenda, não tenho tempo, não tenho equipa, casos que tenham que ver com tráfico de droga, porque estão associados a um universo no qual eu não gosto em trabalhar e casos que tenham que ver com crimes sexuais, abusos, violações, porque tenho alguma dificuldade em aceitar.
Quase todos os dias recusa um caso?
Isso também não, mas recuso muitos por ano. Fiquemos por esta contabilidade.
E se eu ou o Observador lhe pedíssemos para nos patrocinar num processo de violação do segredo de justiça?
Vamos ver, aí teria que olhar para o caso e para vocês, porque relativamente à materia do segredo de justiça eu não tenho nenhum problema de princípio. E essa sua pergunta tem uma dose inerente de provocação… Eu sou muitíssimo crítico da violação do segredo de justiça, mas eu também sou muitíssimo crítico do branqueamento de capitais, do homicídio, do roubo, da corrupção, o que não significa que não aceite casos em que estão em causa esses crimes. Aceito-os porque olho para o caso, olho para o cliente, vejo se acredito ou não no que o cliente me está a contar, vejo o que eu acho que pode ser o caminho da defesa de acordo com a lei, com a deontologia, e a minha consciência.
Acreditar é um requisito?
O requisito é acreditar no que o cliente me diz. Aprendi com o maior advogado com quem trabalhei, o José Manuel Galvão Teles, que se eu acho que o cliente me está a mentir, e posso dar-me a esse luxo, vai porta fora. Não gosto que me mintam, gosto que me digam a verdade. Depois de me dizerem a verdade eu logo vejo como é que lido com ela e logo vejo se quero lidar ou não com ela, posso querer ou não querer. E se quiser lidar, eu posso querer lidar de uma maneira, que acho que é aquela que serve melhor os interesses do cliente, que está de acordo com a lei, com a deontologia, com a minha consciência e o cliente não querer. Também já me aconteceu. Portanto, se o Observador em geral, e a Sónia em particular, me consultassem para um caso de violação de segredo de justiça, eu não teria nenhuma objeção de princípio.
Há algum processo onde gostaria de estar e não está?
(pausa)
Responda com sinceridade…
Ou não respondo… Eu acho que essa vou passar e vou dar um trago no meu mojito…
Avaliação do Ministério Público: são as pessoas que fazem os cargos
Como é que avalia o trabalho do Ministério Público? É fácil desmontar uma acusação?
É difícil fazer generalizações. Quando me diz como é que avalia o trabalho do Ministério Público, depende, eu conheço tantos Ministérios Públicos, tantos processos, já vi de tudo. Como já vi de tudo na advocacia, na magistratura, no jornalismo. Mas digo-lhe, olhando para si: já vi magistrados do MP Muito Bons, já vi assim assim, já vi Bom+, já vi Médio -, já vi Maus e também já vi Muito Maus. Portanto como é que eu avalio globalmente? É difícil de dizer. Há casos em que as pessoas se esforçam enormemente, são muitíssimo competentes, muitíssimo trabalhadoras, há outros casos em que não tanto. Há só um Ministério Público na Constituição, enquanto órgão, há só um na lei, mas depois são as pessoas que fazem os cargos. Mas eu acho que a Justiça melhorou muito nos últimos anos, apesar dos problemas que tem e, dentro desta melhoria, o MP melhorou muitíssimo.
Graças aos profissionais?
Graças aos profissionais, a alterações legislativas, graças a uma maior exigência da sociedade, graças a um maior escrutínio, graças a um movimento da melhoria da justiça em geral, graças a muitas coisas…
O que é que é urgente melhorar para não termos processos tão demorados no tempo?
Essa pergunta implica estarmos aqui não o resto da tarde, mas provavelmente o resto do mês. Vamos lá ver, essa é a pergunta do regime, não digo do regime na sua globalidade, mas enquanto regime da Justiça…
Se pudesse escolher apenas três medidas para melhorar a Justiça…
Duas delas ocorrem-me já. Uma: endurecia bastante o sancionamento disciplinar dos profissionais que põem o pé na argola, de todos intervenientes, e para isto era preciso mudar o sistema de avaliação, pensar em acabar com os Conselhos Superiores e reunir a matéria disciplinar que está corporativamente distribuída. A segunda: é preciso que a Justiça saiba comunicar, a Justiça não sabe comunicar, as pessoas não sabem comunicar e hoje em dia quer se goste, quer não se goste, vivemos numa sociedade em que comunicar é fundamental. Há um fechamento. Vou dar-lhe um exemplo: eu tenho muitos colegas que acham muito mal que um advogado à porta do tribunal diga umas palavrinhas à saída, mesmo que sejam uma palavrinhas redondas que não digam nada de especial. Acham muito mal, porque a advocacia deve ser uma profissão discreta, porque os jornalistas isto e aquilo e isto não é um espetáculo. Com todo o respeito por esses colegas, isso é uma visão do século passado, porque quer se goste, quer não se goste, o que eu digo ou não digo, a maneira como eu olho, como sorrio, como me comporto, como me movo à porta de um tribunal é fortemente interpretado não sobre mim, mas sobre o meu cliente e o meu caso. E os outros atores da Justiça também têm que ter a consciência disso. Em terceiro lugar acho que é importante, falando no processo-crime e enfrentando aqui um tabu, discutir uma coisa: saber se ainda faz sentido o principio da legalidade, ou se íamos antes à maneira anglo-saxónica de ter um princípio da oportunidade. Que é que isso significa?
Sim.
O Princípio da Legalidade diz que toda a suspeita que se tenha tem de ser investigada, o Princípio da Oportunidade diz: o titular da ação penal pode escolher, de todas as suspeitas que lhe aparecem, dedicar-se a umas e não a outras. De uma forma muito simplista é isto. Entre nós vigora o Princípio da Legalidade, o que significa que se eu estou a investigar, perdoe-me a expressão, a sua saia, e se o tema é a sua saia, de repente a meio do processo aparece-me um casaco e eu também tenho que investigar o casaco, depois a seguir um cinto, e eu também tenho que investigar, mas continua lá a saia, e continua lá o casaco…
E criamos megaprocessos…
E criamos megaprocessos e temos todo o aparelho a investigar tudo, desde as coisas pequeninas às coisas grandes, e quando começa a investigar uma coisa tudo o que se lhe junta tem que ser investigado. Há livros, e livros e livros e cadeiras universitárias e dezenas de argumentos a defender a Legalidade, eu não estou a dizer que devíamos substituir, acho é que devíamos falar sobre isto. Cada vez que eu digo isto publicamente, quase que não me deixam enunciar o problema, porque não a Oportunidade? Agora a Oportunidade implica justificar a escolha porque há o perigo de escolher umas coisas e não outras, como é evidente. Esse é o grande argumento clássico.Mas o que é a vida se não escolher? O que faz um político se não escolher? O que é que faz um gestor se não escolher? O que é que faz um advogado se não escolher? Não é? Podia usar a frase do Jorge Luís Borges: “todos os caminhos se bifurcam”. Tem que haver uma fortíssima accountability. Temos que fazer esta discussão, que tem que ser muito séria, muito política no sentido nobre, muito empenhada. E se um dia viermos a optar por isto, garanto-lhe que vai deixar de haver megaprocessos.
“Já fui insultado e ameaçado”
É advogado do engenheiro Manuel Vicente num dos processos que feriu as relações diplomáticas entre Portugal e Angola e acabou por conseguir aquilo que sempre defendeu: entregar o processo às autoridades angolanas para que prosseguissem a investigação relativamente ao seu cliente. Acha que esta foi uma decisão diplomática?
A resposta foi totalmente jurídica, quem ler o acórdão, concorde ou discorde com a fundamentação, verá lá uma fundamentação jurídica cuidada, longa, coisa que nem sempre acontece em acórdãos de tribunais superiores. Não estou a dizer isto por dar razão ao meu discurso. Vou dizer isto com ar carrancudo porque não gosto de pessoas que só respeitam os tribunais às segundas, quartas e sextas-feiras: eu sou advogado, já perdi muitas vezes, já ganhei também muitas, mas quando perco, ou quando discordo, continuo a respeitar. Também respeito muito a decisão do juiz da primeira instância, do qual recorri e que não me deu razão. Agora a verdade é que esta decisão dos senhores juízes, do Tribunal da Relação, teve depois leituras, interpretações e outras coisas que eu não vou adjetivar. Mas isso já não é comigo.
Este julgamento tomou-lhe uma grande parte do seu tempo este ano.
Indiscutivelmente.
Chegou a ser insultado em tribunal.
Também é verdade.
Foi ameaçado alguma vez?
Não vou responder a essa pergunta.
E já foi insultado ou ameaçado noutros processos?
Já fui… as duas coisas.
E como é que convive com isso?
Muito bem. Digo muitas vezes uma frase que não é minha. Tenho 47 anos, a caminho dos 50, e tenho a certeza que vou morrer, mas que há duas coisas de que eu não vou morrer: não vou morrer de parto e não vou morrer de medo. E acho que isto responde. Nem uma coisa nem outra são agradáveis, já me aconteceu mais insultos do que ameaças, já me aconteceu todo o tipo de coisas.
Mas já aconteceram ameaças que lhe provocaram medo, ou não?
É óbvio, claro. Quando eu digo que não vou morrer de medo, não significa que eu não tenho medo, significa que eu não posso ficar prisioneiro disso. E já me aconteceu lidar com processos que mesmo sem ter medo, ameaças ou insultos, são processos delicados. Já fiz processos de extradição de pessoas suspeitas de terrorismo, por exemplo trabalhei no processo de extradição do Abu Salem para a Índia. E alguns colegas que trabalham outras coisas perguntam-me: ‘tu não tens medo? Tu não pensas que te pode acontecer alguma coisa?’. E eu respondo com toda a sinceridade, isto não é blasé: eu não penso nisso, se pensasse fazia outra coisa, por isso é que há bocado lhe disse que para ser um bom advogado é preciso coragem
“Essa coisa que um advogado trabalha muito e que não tem vida é uma treta”
Qual é a pior hora para um suspeito ser detido e lhe telefonarem a dizer que precisam de si?
A pior hora para o suspeito ou para mim?
Para si, para o suspeito será sempre uma má hora…
Para ele é uma hora qualquer, para mim é à noite, porque sou um ser solar, não no sentido que emano alguma luz, mas no sentido que funciono bem com luz e mal à noite. Não sou bom a trabalhar à noite, sou bom a trabalhar de dia. Deito-me cedo, levanto-me cedo. Tenho melhores ideias ou menos más de manhã, do que à noite, o pior é à noite. À noite gosto de estar em casa, de estar sossegado, de jantar e de fumar
Gosta de fazer o quê? Tem tempo para hobbies no meio de tantos megaprocessos?
Hobbies é uma expressão que eu não gosto, tenho tempo para fazer coisas que gosto, isso sim. Essa coisa que um advogado trabalha muito e que não tem vida é uma treta… Trabalha-se, é óbvio, trabalha-se 12 horas por dia, às vezes 14, outras vezes 10, outras 8, outras vezes trabalha-se ao fim de semana. Mas há espaço para ter vida, coisas que eu gosto e fazer. Adoro ler, ver filmes, qualquer pessoa que me conheça ou que me leia sabe que eu gosto destas coisas. Gosto de estar descansado, com família ou amigos, jantar e fumar um charuto, por isso é que também saio pouco. Não se pode fumar em lado nenhum nem estar descansado em lado nenhum. Gosto destas coisas simples. Se me pergunta o que levaria para uma ilha deserta, filmes não levaria porque seria difícil reproduzir o filme, mas levaria dois ou três livros…
Não, essa não era a pergunta… A pergunta era para onde é que não viajaria de todo mesmo que lhe pagassem?Eu gosto tanto de viajar que é difícil dizer. Talvez de hoje em dia não viajasse para a Síria ou para o Iraque ou para certos sítios do Congo. Quando eu digo que não morro de parto, nem de medo… Não exageremos…
E com quem é que não viajaria mesmo que lhe pagassem?
Isso com muita gente, isso é o contrário dos sítios. Já me viu em ambiente profissional, sou falador, sociável, mas isso é uma coisa, outra coisa é a minha vida. E aí não recebo multidões em casa, não faço jantaradas para 20 ou 30 pessoas. Mas, assim numa rajada de cinco segundos, dizia-lhe pelo menos 30 ou 40 que me estou a lembrar. Mas não vou cometer essa indelicadeza, até porque os meus pais que tiveram tanto trabalho a educar-me achariam de uma indelicadeza horrível dizer que eu não viajaria com pessoa A, B, C ou D. Olhe, com eles viajaria de certeza.