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Pode estar na República Dominicana ou numa quinta em Azeitão, ninguém sabe ao certo onde está Juan Carlos, um dia depois de ter escrito ao Filipe VI a anunciar que iria abandonar Espanha. O antigo rei de Espanha invocou “a repercussão pública de certos acontecimentos passados” da sua “vida privada” na carta que lhe enviou na segunda-feira. De que falava o pai do rei espanhol?
Rei emérito desde junho de 2014 — quando ao fim de 39 anos abdicou a favor do filho Filipe —, Juan Carlos I de Espanha foi sempre visto como um bon vivant de comportamento excêntrico. Protagonizou controvérsias e escândalos que indiciaram, e depois confirmaram, um perfil pouco consistente com a imagem-padrão de um chefe de Estado.
Em tom crítico, o diário espanhol Público — onde saíram investigações sobre escândalos do monarca jubilado e que por estes dias promove uma petição que exige ao Governo a retirada do título vitalício de rei emérito — diz que perante o cerco da justiça o antigo soberano fugiu de Espanha antes de anunciar que iria fugir. Menos assertivo, o El Español descreve-o como protagonista de uma “trajetória brilhante”, porém inadaptado às exigências do mundo atual e com um estilo de vida mais próprio de um monarca feudal. Serão estas as duas principais razões pelas quais entrou em rutura com os espanhóis e se tornou uma personalidade tóxica a quem já só o exílio parece servir.
1956: morte do irmão
O tumultuoso percurso inclui agora acusações públicas de corrupção, “negócios opacos”, detalhes sórdidos e interpretações morais sobre a sua vida íntima. Mas o fio destas histórias começa antes ainda da transição para a democracia (de 1975 a 1978, desde a morte de Franco até à aprovação de uma nova Constituição). Juan Carlos de Bourbon foi coroado aos 37 anos, em 22 de novembro de 1975, depois de quase quatro décadas em que Espanha foi governada com mão de ferro. Os anos de juventude ficaram tristemente marcados pelo episódio da morte do irmão, Alfonso, de 16 anos. Foi aí que começaram a pairar as nuvens negras.
Aconteceu na Páscoa de 1956. O futuro rei vivia em Espanha e encontrava-se a passar férias com a família que se exilara em Portugal — o pai, Juan de Bourbon, conde de Barcelona; a mãe, D. María de las Mercedes; e os três irmãos: Pilar, Margarida e Alfonso. Na sexta-feira santa de 29 de março de 1956, a Villa Giralda, no Estoril, ouviu o som de um tiro. Os dois irmãos tinham insistido com a mãe e estavam a brincar com uma pistola que tinha sido oferecida a Juan Carlos. O jovem, de 18 anos, carregou no gatilho e atingiu o irmão na cabeça, causando-lhe morte imediata.
Foi recriminado ao longo dos anos, viveu um período depressivo que demorou a passar e a relação com o pai terá ficado para sempre comprometida. Por não ter havido autópsia nem ter sido aberta uma investigação, especulou-se muito sobre o verdadeiro motivo do disparo, mas a tese de acidente é a única que parece viável. A arma estaria inadvertidamente carregada.
Até à abdicação, em 2014, Juan Carlos nunca falou em público sobre o sucedido e finalmente confessou numa entrevista que sentia muitas saudades do irmão e que a relação entre eles tinha sido de grande cumplicidade. A entrevista foi feita no âmbito do documentário Yo, Juan Carlos, Rey de España, primeiramente transmitido em França e só mais tarde autorizado a passar em Espanha.
“Era um solteiro muito cobiçado”
Nascido em 5 de janeiro 1938 em Roma, onde o avô Afonso XIII estava exilado desde a instauração do regime republicano, em 1931, cresceu em várias geografias, incluindo a Suíça e Portugal, mas foi em Espanha que fez os estudos, sob orientação de Franco, com quem acabou por forjar uma amizade próxima, a ponto de alguns o verem como joguete do Caudilho (a quem prometeu obediência em 1969, ao prestar juramento como futuro herdeiro do trono).
Passou largas temporadas no Estoril a partir dos oito anos, fez amizade com Francisco Pinto Balsemão e Ricardo Salgado — o primeiro seria primeiro-ministro, o outro iria presidir ao Banco Espírito Santo e acabaria acusado de 65 crimes, incluindo corrupção ativa. Foi uma juventude solar e privilegiada enquanto Portugal era também uma ditadura. Aproveitou uma high life de aventuras e de “alvoroços amorosos”, na expressão da imprensa espanhola.
“Era um solteiro muito cobiçado”, disse a irmã Pilar em 2014. “Tinha um sucesso tremendo, era bonito, simpático e dançava muito bem. Que mais se pode pedir?” Casou-se com a princesa grega Sofía em 14 de maio de 1962, mas terá mantido até esse momento uma relação com a condessa italiana Olghina Nicolis de Robilant. A primeira grande crise do casal real deu-se em 1976, quando doña Sofía decidiu levar os filhos numa viagem até à Índia para a qual nem pediu a necessária autorização ao governo, o que foi encarado como uma resposta a alegadas infidelidades do marido. O rumor vai no sentido de que Juan Carlos tivesse nessa época um caso com Sara Montiel, vedeta do cinema e da canção ligeira espanhola.
De facto, o semblante da rainha Sofía foi sempre o de uma mulher abatida e triste, o que eventualmente poderia estar relacionado com problemas no casamento. O mais recente fascículo diz respeito à empresária alemã Corinna Larsen, uma antiga “amiga íntima” de Juan Carlos que voltou a ser notícia há poucos dias depois de o jornal El Mundo revelar correspondência trocada entre ela e a Casa Real. As cartas são uma suposta prova de que o rei emérito foi subornado.
Alpinista social ou mulher apaixonada. Quem é Corinna Larsen, a ex-amante de Juan Carlos?
Ele e Corinna conheceram-se em 2004 mas a relação só se tornou pública em 2012. Tão séria terá sido que o jornal italiano La Stampa chegou a escrever que em Espanha havia duas rainhas: Sofía, a oficial, e Corinna, a oficiosa.
Alegadamente, desde a década de 70 que a relação entre Juan Carlos e Sofía será meramente protocolar e foram muitas as oficiosas. “É um velho libertino”, classificou o publicista britânico Andrew Morton, conhecido por livros sobre famílias reais e celebridades. O mesmo autor atribui à princesa Diana uma frase pouco abonatória sobre Juan Carlos: “Incrivelmente encantador, porém demasiado atencioso”, o que ela teria dito depois de o conhecer em Maiorca em meados da década de 80.
“A corrupção na casa real é visível e isso deu aos comentadores legitimidade para discutirem o papel do rei e também a forma como gere a sua vida privada”, disse Andrew Morton em 2013 numa entrevista ao jornal brasileiro O Globo, acrescentando que desde há muito é do conhecimento de outras casas reais europeias o afastamento de Juan Carlos e Sofía.
Caça ao elefante no Botswana
Em 2012 os espanhóis descobriram que o monarca apaixonado por desportos náuticos afinal era também um exímio caçador em safaris africanos em tempos de austeridade. Em abril desse ano, Juan Carlos fraturou a anca durante uma caçada de elefantes algures no Botswana e teve de regressar mais cedo a Espanha para receber tratamento médico no hospital de San José, em Madrid. Os espanhóis não sabiam da viagem e ficaram indignados. Os partidos da oposição exigiram explicações, houve manifestações nas ruas e a isso acresceu o insólito de ele ser presidente honorário da filial espanhola do World Wildlife Fund, uma associação ambientalista pela preservação de espécies em risco ou em vias de extinção, como é o caso do elefante africano. Acabou afastado desse cargo.
O país vivia os efeitos da crise económica e financeira mundial, o desemprego atingia um nível histórico de 23%, o Estado cortava despesas e salários e Juan Carlos não prescindia de luxuosos e mortíferos hábitos calculados em cerca de 50 mil euros por viagem.
“Esta gaffe exigiu um gesto inédito na história das monarquias europeias. Um rei em pleno exercício de funções pedia publicamente perdão pelos seus erros”. “Sinto muito, enganei-me e não voltará a acontecer”, redimiu-se Juan Carlos à saída do hospital naquela embaraçosa primavera de 2012, abrindo caminho para a mais que certa abdicação.
O caso do Botswana permitiu a descoberta da ligação à empresária Corinna Larsen, então conhecida como Corinna zu Sayn-Wittgenstein (apelido do ex-marido) e então eclodiu a história de que ela vivia como intermediária em negócios de empresas espanholas no estrangeiro, no que cobrava comissões de 3% a coberto do prestígio que a ligação ao soberano espanhol lhe granjeava. Um desses negócios terá sido o da construção de caminhos-de-ferro de alta velocidade na Arábia Saudita, entregues a consórcios espanhóis a partir de 2006 e em cujas negociações Corinna terá participado ao lado de Juan Carlos.
Máquina de contar dinheiro no palácio
Descrito como artífice do êxito da transição espanhola para a democracia — ou “um grande monarca que assegurou de forma pacífica a transição de Espanha da ditadura de Franco para uma democracia plena de padrão ocidental”, como descreveu Pinto Balsemão em artigo de opinião em 2014 —, Juan Carlos parecia ter recuperado à data da abdicação alguma “estabilidade emocional” depois de “uma série de erros próprios, circunstâncias alheias e o desgaste típico de um posto de alto risco”. Mas a sua popularidade estava ferida de morte e os anos que seguiram não foram melhores, com o desvelar de alegadas práticas de corrupção que ainda hoje não estão totalmente esclarecidas.
Juan Carlos e o esquema dos 100 milhões. As provas que o banco suíço tirou do cofre
É o caso dos 65 milhões de euros que surgiram numa conta do banco suíço Mirabaud, em nome de uma fundação cujo beneficiário seria Juan Carlos. Esse dinheiro, de acordo com investigações da imprensa espanhola, teria sido oferecido ao rei em 2008 a título de “presente” pelo rei da Arábia Saudita e sugere-se que terá sido um suborno ao monarca por aquele ter “facilitado” os negócios da construção do TGV em Medina e Meca — tendo a então amante, Corinna Larsen, servido de intermediária.
São revelações das últimas semanas, tidas como a ponta o iceberg que agora levou o pai de Filipe VI a abandonar o país. As autoridades judiciais da Suíça e de Espanha investigam a origem do dinheiro. Em junho último, o Supremo Tribunal espanhol iniciou um inquérito para avaliar a responsabilidade de antigo monarca. Juan Carlos está cercado.
Há mais negócios escuros e não são de agora. Segundo o Público espanhol, ele acumulou uma fortuna ainda antes de chegar ao trono, apesar de esse património pessoal, alegadamente de dois mil milhões, não estar refletido na contabilidade oficial. O mesmo jornal alega que o rei recebeu em 1977 um montante de 100 milhões de dólares do príncipe saudita Fahd bin Abdulaziz com o suposto objetivo de “fortalecer a democracia” espanhola, ainda que tal verba astronómica nunca tivesse integrado o erário público, e acrescenta que Juan Carlos terá estado durante décadas envolvido num esquema de recebimento ilícito de uma comissão por cada barril de petróleo que o estado espanhol comprava a “países árabes“.
A girândola imparável tem animado as páginas dos jornais espanhóis ao longo de meses e o rei que outrora parecia um símbolo de estabilidade e confiança é agora protagonista de uma farsa que ainda vai a meio. Durante anos, introduziu em Espanha milhares de euros em notas provenientes da sua fortuna secreta sediada em Genebra, segundo contou em meados de julho o jornal El Confidencial. O dinheiro era-lhe entregue pessoalmente na Palácio da Zarzuela por um advogado suíço que viajava até Madrid em voos da Ibéria. A informação constará numa gravação com a voz de Corinna Larsen. A empresária alemã saberia até da existência de uma máquina de contar notas a que o rei recorreria na residência oficial, nos arredores da capital espanhola.
Ex-amante de Juan Carlos ameaça com revelações secretas e exige envolvimento legal de Felipe VI
A confirmarem-se as suspeitas, o antigo soberano será o único monarca da Europa diretamente envolvido em casos de corrupção. Sofía já fez saber que permanecerá em Espanha e rejeita qualquer ligação à conduta do marido. Felipe VI distanciou-se do pai em março ao retirar-lhe o subsídio da Casa Real espanhola, de cerca de 200 mil euros por ano, e renunciou à herança pessoal que lhe seria devida. Aparentemente, as presumíveis ilegalidades terão ocorrido antes de 2014, quando Juan Carlos ainda reinava, o que lhe confere imunidade e lhe permite, caído em desgraça, ansiar por um exílio dourado e só.