O jornal El Español divulgou esta segunda-feira dois documentos que comprovam a transferência de 100 milhões de dólares, o equivalente a 65 milhões de euros, proveniente do Ministério das Finanças da Arábia Saudita, para Juan Carlos. A transação teve lugar em 2008 e a quantia teve como destino uma conta do então rei de Espanha no Banco Mirabaud, uma instituição de banca privada com sede em Genebra, na Suíça.

Só agora é que os detalhes da transferência, bem como da abertura da conta, viram a luz do dia, na sequência de uma investigação daquele diário espanhol, que tem vindo a trazer a lume revelações como esta. Nos referidos documentos, a transferência surge classificada como “montante enviado pelo rei Abdalla da Arábia Saudita como presente a outras monarquias, de acordo com a tradição saudita”.

De acordo com o El Español, apenas os administradores do banco suíço tinham acesso à documentação relativa à abertura dessa conta (o segundo documento em questão), no dia 6 de agosto de 2008. Mantido em segredo, fechado num cofre ao qual apenas a administração tinha acesso, o relatório onde consta o nome do rei emérito de Espanha inclui também o estado civil do beneficiário da fundação — casado –, bem como a morada — Palácio da Zarzuela, Madrid”. Segundo os testemunhos prestados, o departamento jurídico do banco nunca foi informado da identidade do beneficiário.

100 milhões como manda a “tradição saudita”

Agora divulgado foi também o relatório, datado de 6 de agosto de 2008, que corresponde à abertura da conta por Arturo Fasana, gestor da Rhône Gestion, que terá recebido instruções do agora rei emérito para assim proceder. A referida conta foi aberta em nome da Fundação Lucum, da qual Juan Carlos era o beneficiário. Segundo o El Español, a fundação com sede no Panamá terá sido criada, a 31 de julho, para escudar as transações do monarca. Fasana era o presidente e Dante Canónica, advogado suíço ao serviço do agora rei emérito, ocupava o cargo de secretário.

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São estes os nomes que constam em todas as movimentações de dinheiro procedentes da conta do banco suíço, à exceção da suspeita transferência de todos os fundos para Corinna Larsen, ex-amante de Juan Carlos, — em 2012, no valor de quase 65 milhões de euros –, da qual consta a assinatura do próprio rei, imediatamente antes do encerramento da conta.

Em 2008, apenas 48 horas epararam a abertura da conta da transferência choruda, proveniente do Ministério das Finanças da Arábia Saudita. O montante já era conhecido — Juan Carlos fez questão de pôr os seus gestores suíços em contacto com Adel Al-Jubeir, embaixador saudita nos Estados Unidos e futuro ministro dos Negócios Estrangeiros. Terá sido nessa mesma altura, durante uma reunião no Palácio da Zarzuela, em Madrid, que o monarca lhes pediu que criassem uma “estrutura” que lhe permitisse receber a fortuna fora de Espanha.

King Juan Carlos of Spain (L), Queen Sof

O rei Abdullah Bin Abdulaziz Al-sahud recebido em Madrid pelo rei Juan Carlos, pela rainha Sofia e pelo príncipe Felipe, atual rei de Espanha © JAVIER SORIANO/AFP via Getty Images

Menos de um ano depois, em fevereiro de 2009, Espanha assistiu a um escândalo de fraude fiscal, branqueamento de capitais e tráfico de influências conhecido como Caso Gürtel. Arturo Fasana e a Rhône Gestion estavam envolvidos na trama que favorecia o empresário Francisco Correa Sánchez em contratos públicos, parte de um esquema de corrupção do Partido Popular espanhol. Fasana chegou mesmo a ser detido, o que não demoveu nem o banco nem o rei de trabalharem com o gestor e com a empresa.

Mirabaud: “Diria que foi uma transação estranha”

O relatório agora divulgado pelo mesmo jornal espanhol exibe a Fundação Lucum como titular da conta, mas também o nome do atual rei emérito — “J. Carlos de Borbón y Borbón” — na qualidade de beneficiário da organização. No mesmo documento, o monarca surge ainda classificado como pessoa politicamente exposta (PEP), informação normalmente recolhida pelos bancos em caso de chefes de estado ou de governo, políticos proeminentes, altos cargos governamentais, judiciais ou militares, entre outros.

“Como regra geral, a política do Banco Mirabaud não permite estabelecer relações comerciais com um PEP. Qualquer desvio a essa regra é da responsabilidade da administração”, lê-se no relatório de abertura de conta. Contudo, tanto a abertura de conta como a avultada transferência do Governo saudita foram processadas pelo banco suíço.

Corinna diz que recebeu 65 milhões de euros de Juan Carlos como “sinal de gratidão e amor”

Em março deste ano, Yves Mirabaud, um dos sócios gestores da instituição bancária, testemunhou no âmbito da investigação levada a cabo pelo procurador suíço Yves Bertossa. Nas declarações prestadas, indicou que a administração tomou conhecimento da abertura da conta, embora não se recordasse de ter pedido aconselhamento jurídico para apurar se o cargo de rei de Espanha impedia Juan Carlos de receber uma quantia de dinheiro tão avultada.

Na altura, o procurador insistiu. “Diria que foi uma transação estranha”, admitiu Yves Mirabaud. No mesmo testemunho, acabou por confirmar que Arturo Fasana se encontrou com o seu tio, Pierre Mirabaud, para discutir a abertura da conta de Juan Carlos. “Do que me lembro, durante a reunião [do conselho de administração] foram mencionados alguns elementos: o histórico financeiro da transação, a identidade do beneficiário da Fundação Lucum e a origem dos fundos”, adicionou.

No mesmo depoimento, Mirabaud afirmou desconhecer as razões que levaram Juan Carlos e Abdullah bin Abdulaziz al-Saud a escolher uma instituição bancária sediada na Suíça — “Espero que pela qualidade do serviço prestado”, referiu. Ainda assim, o administrador não evitou que o banco continuasse a ser alvo de investigação no processo aberto na Suíça por suspeitas de crime de lavagem de dinheiro.

Documentos guardados a sete chaves

Também os nomes dos filhos constam do relatório da abertura da conta, até aqui mantido num cofre, em Genebra — Felipe, o atual rei (que em março deste ano renunciou ao direito a qualquer herança da parte do pai), Elena e Cristina, listados por esta mesma ordem. No campo reservado à profissão, pode ler-se “rei”, escrito à mão. Da mesma forma, também a caixa coma a informação “Não deseja ser contactado” aparece assinalada. O nome de Antoine Boissier consta do relatório — foi ele um dos primeiros contactos de Fasana para preparar a abertura de conta, tendo ficado como responsável pela mesma. Atualmente, Boissier  já não faz parte da administração do banco.

Doação de Juan Carlos a Corinna foi protegida por contrato. Se ela morresse, os herdeiros do então rei não poderiam aceder ao dinheiro

Segundo as declarações prestadas, há quatro meses, por Yves Mirabaud ao Ministério Público suíço, a identidade do beneficiário da Fundação Lucum era conhecida apenas pelo conselho de administração, o único de acordo com o administrador. Apesar de ter dito não se recordar de ter informado o departamento jurídico, Mirabaud afirmou, no entanto, que o chefe do departamento de compliance foi informado “verbalmente”. “A única razão pela qual decidimos manter o nome deste beneficiário confidencial dentro do banco foi evitar que a informação se dispersasse entre os funcionários, por uma questão de discrição”, disse.

O “príncipe da comissão”

De acordo com a investigação do El Español, Juan Carlos ter-se-á referido a um membro da família real saudita, de elevada posição, como o “príncipe da comissão”. A menção aconteceu 23 dias antes de receber a transferência de 100 milhões de dólares por parte do rei Abdullah bin Abdulaziz, que morreu em 2015. De passagem por Madrid, em julho de 2008, a comitiva real foi recebida no palácio com pompa e circunstância. O então rei de Espanha acabaria por explicar o sentido da alcunha — o líder em questão “cobrava comissões por quase tudo”.

Entre maio e junho desse ano, os laços entre as duas monarquias estreitaram-se. Os dois líderes reuniram-se três vezes — uma primeira viagem de Juan Carlos I e da rainha Sofia à cidade saudita de Jeddah, a visita de uma delegação encabeçada pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita e por dois ministros apenas dez dias depois e derradeira gala em Madrid, a 15 de julho, com a presença do monarca saudita. Os encontros culminaram na agora polémica doação.

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Haramain, a linha de alta velocidade que liga as cidades de Meca e Medina, na Arábia Saudita © GIUSEPPE CACACE/AFP via Getty Images

“Juan Carlos disse-me que o rei da Arábia Saudita queria dar-lhe um presente em dinheiro. Expliquei-lhe que isso poderia ser delicado e que precisava de mais informações sobre essa doação”, segundo explicou o advogado Dante Canónica a Yves Bertossa. Embora a transferência tivesse ficado classificada como um presente, em cumprimento com tradições da cultura saudita, a investigação associa o montante recebido pelo rei espanhol a uma compensação por ter influenciado a adjudicação da construção de um comboio de alta velocidade para ligar as cidades sauditas de Medina e Meca a empresas espanholas.

A suspeita é de que as empresas pagaram um valor extraordinário pelo papel crucial do atual rei emérito nas negociações com o Governo saudita. O contrato foi fechado em 2011, por 6.736 milhões de euros, a linha, que se estende ao longo de mais de 450 quilómetros de deserto, começou a funcionar em outubro de 2018. Neste seguimento, em junho deste ano, o Supremo Tribunal espanhol decidiu investigar as suspeitas de delito de corrupção de Juan Carlos I.