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Escritor brasileiro Airton Souza acusa organização do prémio literário Sesc de censura e diz que já não vai estar no Folio

Venceu o prémio Sesc com o livro "Outono de Carne Estranha", leu um excerto na Flip e viu depois acordos de distribuição e promoção cancelados. Autor brasileiro fala em "homofobia".

Quando, em novembro passado, Airton Souza subiu ao palco da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e leu um excerto da abertura do seu livro Outono de Carne Estranha, era um recém premiado escritor, com um dos galardões literários mais importantes do Brasil, o Sesc, atribuído desde 2003 pelo Serviço Social do Comércio, uma associação filantrópica fundada por empresários em 1946. Quando desceu do palco, após uma leitura que incluiu a cena erótica que abre a história, começaram a surgir as consequências para o primeiro romance do autor brasileiro, que conta a história violenta e poética de um amor entre dois garimpeiros na terrível serra da Pelada, nos anos 80.

A direção do Sesc, que premiou a obra, acusada de a tentar censurar e de despedir um dos criadores do prémio, terá modificado as regras do concurso e reduzido a tour de apresentação dos vencedores, dizem Henrique Rodrigues e Airton Souza. O escândalo chegou aos média brasileiros em fevereiro e, em março, a Record, uma das maiores editoras do Brasil, solidarizou-se com Airton Souza, declarou não tolerar atos censórios e acabou por se desvincular do prémio, do qual era parceira há 20 anos — ou seja, desde que foi criado. O cancelamento da vinda a Portugal ao Festival Literário Internacional de Óbidos, o Folio (presença associada à distinção atribuída) já foi comunicado oficialmente ao autor. Contudo, a Câmara Municipal, que gere o evento, garantiu ao Observador que “não foi informada de nada”, mas que “o Sesc é um parceiro e tem liberdade de decidir a programação que quer trazer ao festival”. Falámos com Airton Souza, que desabafou: “O que está a acontecer é a criminalização de uma cena de amor através de outro crime que é a homofobia”.

Já Betânia Pires Amaro, venceu o prémio Sesc na categoria de “conto”, com a narrativa O Ninho. A autora, ausente da promoção do seu livro devido ao nascimento de um filho, viu-se apanhada pela polémica de Airton Souza. O Ninho foi publicado e distribuído pela editora Record, mas acabou por ser penalizado pelo encurtamento da tournée pelo Brasil e Portugal decidido pela direção do Sesc. Embora o livro de Betânia não tenha causado qualquer polémica, as ações de divulgação e promoção serão agora idênticas às de Airton Souza e também lhe foi comunicado que a vinda ao Folio não se realizará. Ambos os escritores estão a tentar sensibilizar o Sesc para a importância da presença no festival literário de Óbidos.

O caso de Outono de Carne Estranha segue-se à retirada das escolas do estado do Paraná do romance O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, que retrata a violência racista no Brasil, para “verificação pedagógica” e fez os alarmes de censura dispararem no Brasil. Também há poucos dias, a Associated Press fazia eco do esmagador anúncio vindo do PEN Club americano, de que “entre 2022 e 2023 só no estado do Missouri foram retirados das bibliotecas, escolas e livrarias cerca de 300 títulos, entre eles os já clássicos The Handsmaid Tale, de Margaret Atwood, The Bluest Eye, de Toni Morrison e Gender Queer, de Maia Kobabe”. Segundo o mesmo artigo, neste momento há, nos EUA, 15 Estados a criminalizarem, com multas e penas de prisão, bibliotecários, professores, editores e livreiros que publiquem e divulguem matérias consideradas “obscenas”, como descrições de relações sexuais, ou questões relativas à homossexualidade, direitos LGBT. De acordo com a publicação, o partido Republicano está a tentar passar uma lei, de abrangência nacional, que penalize tudo o que for considerado “pornográfico”.

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"Outono de Carne Estranha", o livro que valeu a Airton Souza o Prémio Sesc e que está na base na polémica que se gerou a partir da Flip

Num momento em que a cultura, em especial a literatura, se vê sob o fogo cruzado entre movimentos “woke” e ondas conservadoras, o escritor brasileiro, já com dezenas de obras de poesia editadas, filho de um garimpeiro da Serra Pelada, conta que cresceu num bordel em Marabá (Pará), passou fome e descobriu os livros tarde. Considera que “a única forma de contrariar a censura é ser um bom leitor”.

Na verdade, a cena sexual que causou a polémica e o “mal-estar” do público de Paraty, como alega o Sesc, não é muito diferente em termos de detalhes de obras de Rubem Fonseca, Hilda Hist ou mesmo dos romances cor-de-rosa da Harlequim que se vendem nos quiosques de jornais. A única diferença é que todos estes retratam cenas de sexo heterossexual, enquanto Outono de Carne Estranha tem umas vagas cenas eróticas entre os garimpeiros Manuel e Zuca. Quando se lê com atenção este primeiro capítulo, escrito numa linguagem densamente poética — ao contrario da crueza de Rubem Fonseca ou do vernáculo de Hilda Hilst, por exemplo — percebe-se que não há qualquer gratuitidade no discurso de Airton Souza e que o livro é muito menos sobre um amor homossexual e muito mais sobre a violência que estes dois garimpeiros vão testemunhar ao longo da história que protagonizam: a violência do Estado sobre as vidas, os corpos dos milhares que, ao longo dos anos, se perderam na quimera do ouro da Serra Pelada, uma mina a céu aberto no sul do Pará, tomada despoticamente pelo governo através da figura do major Curió, designado no livro como “o marechal”.

“Na noite em que li o trecho em Paraty, não me dei conta que havia crianças na plateia e o vídeo que foi feito mostrava isso mesmo. Mas o vídeo, que estava publicado no Youtube, foi apagado pelos funcionários do Sesc, para poderem sustentar esta mentira. Naquela noite, a minha leitura foi ovacionada pelo público, tanto que só já em janeiro deste ano é que fiquei a saber, através da editora Record, que a direção do prémio tinha ficado em choque com a leitura. Fiquei incrédulo com o facto de um mero livro originar uma situação tão dramática”, diz ainda o escritor.

Anatomia de um prémio censurado

O prémio literário Sesc, criado em 2003 por uma equipa que incluía Henrique Rodrigues, escritor e funcionário desta instituição, distingue obras inéditas de romance, conto e poesia. Já premiou, até hoje, 37 autores, entre eles Rafael Gallo que, em 2022, venceu o prémio Saramago e tem o seu novo romance Rebentar a sair na Porto Editora. Este ex-funcionário lembra, em entrevista ao Observador: “O livro vencedor de 2018, As Coisas, de Tobias Carvalho, tinha também temática sexual, teve um trecho lido na Flip e nada aconteceu, uma vez que as chefias de então respeitavam o conteúdo do nosso trabalho e entendiam o mínimo de arte e literatura. O que aconteceu agora foi uma sequência de amadorismo, arbitrariedade e censura por homofobia”.

"Até esse evento [a leitura do livro na Flip] eu era considerado 'um funcionário exemplar'. Mas como não evitei a qualquer custo aquela leitura, tornei-me culpado pelo constrangimento das chefias. E, por essa reação, eu percebi que a direção da Sesc não tinha sequer aberto o livro premiado", expõe Henrique Rodrigues.

O galardão era escolhido anualmente por um júri externo à Sesc, e depois os vencedores, publicados pela editora Record, faziam uma tournée pelas várias delegações da instituição espalhadas por todo o Brasil. Nos últimos anos, acrescentou-se a esse périplo de divulgação da obra a vinda ao Folio. Com os premiados de 2023 tudo parecia correr normalmente, até Airton Souza ter lido, no palco da Flip, o primeiro capitulo da obra, onde é descrita uma cena de sexo entre os protagonistas, Manuel e Zuca. A direção do Sesc, na plateia, terá ficado incomodada com a leitura e decidiu agir em conformidade, começando por demitir Henrique Rodrigues e a sua assistente Luciana Salles, diz o antigo responsável.

“Até esse evento [a leitura do livro na Flip] eu era considerado ‘um funcionário exemplar’. Mas como não evitei a qualquer custo aquela leitura, tornei-me culpado pelo constrangimento das chefias. E, por essa reação, percebi que a direção da Sesc não tinha sequer aberto o livro premiado”, expõe Henrique Rodrigues.

“Na véspera da minha demissão, soube que iriam criar um ‘grupo’ para mudar o Prémio Sesc e fazer a seleção final após uma lista recebida pelas comissões julgadoras, pois o objetivo era que livros como o do Airton Souza não vencessem mais o concurso”, afirma. “Felizmente, fiz questão de não fazer parte disso”, lembrando ainda que o nome era “grupo censor”. Soube também que “iriam reduzir ao mínimo a circulação do Airton, sem nenhuma justificação plausível, o que de fato está a acontecer. Ainda na Flip, vasculharam o edital e a biografia dele a fim de encontrarem algo que pudesse anular a atribuição do prémio Sesc, algo absurdo”, exclama.

Segundo uma notícia publicada no jornal Estadão, em fevereiro, a Sesc, que se viu na insólita situação de dar o prémio a um livro e depois posicionar-se contra o mesmo, estaria a fazer  circular no seu interior um documento “que previa criar um filtro interno que limitasse os livros que chegariam à final”, porque o livro de Airton Souza, alegadamente, “poderia ativar gatilhos emocionais e psíquicos” nos leitores, pelo que “deveria ser acompanhado de uma mediação, na qual o público seja informado e orientado sobre o conteúdo antes de ser exposto ao mesmo”.

A demissão de Henrique Rodrigues, a não divulgação da tournée do escritor (e de Betânia Pires Amaro) pelo Brasil e Portugal e a suspeita da criação de “um filtro extra-literário para a selecionar as obras finalistas” levaram a editora Record, uma das maiores do Brasil, a emitir também um comunicado onde mostrava o seu “extremo incómodo” e lembrava o “seu compromisso com a liberdade de expressão e criação inseparáveis da atividade editorial”.

De facto, em março, a chancela anunciou publicamente que se desvinculava do prémio, que passará, a partir de agora, a ser publicado pela Senac Rio, uma pequena editora na esfera de influência desta associação de empresários do Comércio. Para Henrique Rodrigues, “o fim desta parceria torna o Sesc um prémio morto, ou pelo menos um prémio zombie”, pois era ela que garantia que o livro chegava a todo o país, publicando e distribuindo as obras premiadas. Apesar de se ter afastado do galardão da Sesc, o Observador sabe que a editora Record está a imprimir a terceira edição do romance Outono de Carne Estranha. Já Airton Souza confirma  “que nunca tinha sido tão bem tratado por nenhuma editora” e que os funcionários da Record “foram os mais entusiasmados leitores do seu livro”. Frisa ainda que “mais determinante do que a sua religião é o facto de serem bons leitores”: “Os bons leitores não censuram livros. Os censores são sempre aqueles que não leem, que nunca tiveram necessidade de ler para estar no poder. Por isso, considero que uma das coisas mais urgentes no Brasil é apostar a sério na formação de leitores. Um povo que lê é mais difícil de manipular”.

A Feira Literária Internacional de Paraty, onde Airton Souza leu o primeiro parágrafo de "Outono de Carne Estranha", é um dos maiores e mais importantes eventos literários da América Latina

Guido Nietmann

Num ano normal, a divulgação do roteiro das cidades a visitar pelos vencedores teria sido feita em fevereiro, porém a Sesc decidiu mudar o funcionamento do prémio e só em Abril anunciou as novidades: desde logo, a redução da tournée literária dos vencedores de 2023, Airton e Betânia, e a substituição da mesma por um valor monetário já a partir deste ano, bem como a obrigação dos livros a concurso serem obras “para um público de todas as idades”. Perante isto, é “bastante frustrado” que o escritor confessa que “a possibilidade de ser editado numa grande editora como a Record e a tournée pelo país eram os maiores aliciantes deste prémio, porque eram a garantia de que o livro chegava aos leitores. Além disso, diz, “é extremamente injusto que a Sesc nos tenha tirado a possibilidade que deu aos outros escritores antes de nós, que é a ida a Portugal, ao Folio”.

Já Henrique Rodrigues afirma que “depois de 20 anos tendo trabalhado para que o projeto se tornasse um dos mais importantes prémios literários do país, é triste vê-lo se afundando sob a pecha da censura e afastando essa grande editora. Fizeram agora algo a que nos recusamos desde o início do projeto: dar dinheiro como prémio [que na prática já existe, pois os autores recebem cachê durante a circulação] e publicar as obras numa editora caseira [Senac Rio] que mal distribui e nem literatura publica.”

Confrontada com esta situação, Margarida Reis, do pelouro da Cultura da autarquia de Óbidos, respondeu ao Observador que “o Sesc faz a sua própria programação […] Demos o prazo até final de maio, início de junho, para essa programação nos ser entregue. Nesta altura, não fazemos ideia dos escritores que nos vão propor”. O Observador tentou obter uma posição do Sesc relativamente a esta questão, mas não houve qualquer resposta.

Tanto Airton Souza como Henrique Rodrigues veem nestas mudanças uma clara “atitude censória”: “A partir de agora, um livro como Outono de Carne Estranha nunca mais será premiado”, afirma Rodrigues. Já o autor diz-se “convicto de que estas mudanças tornarão ainda mais difícil ao Brasil confrontar-se com a sua própria História, uma História de violência profunda e constante, onde os culpados nunca pagam pelos seus crimes e os que não têm poder nunca poderão construir uma posição crítica face às forças que os esmagam”.

“Outono de Carne Estranha”: quando um livro se torna uma arma política

Ao longo dos anos 80, o ouro da serra Pelada fez florescer as cidades em redor, nomeadamente o comércio, e, entre ele, a prostituição. Os homens moviam-se entre a lama da mina e os bordéis de Marabá, eram fantasmas sonhadores e amedrontados, sujeitos à violência da Terra, aos desabamentos, às quedas mas também à violência dos Homens, instigada por um estado ditatorial, que passou a ver naquelas minas uma forma de ganhar dinheiro e poder. O romance move-se ao ritmo do medo, da revolta silenciada, da morte iminente, das fantasias de riqueza como salvação num mundo onde deus não dá sinal de si. Assim se faz o livro onde a carne é cristicamente martirizada e a sexualidade não é senão uma extensão da solidão com que mais de 30 mil homens desciam as escadas precárias até ao coração da terra, que foram batizadas com o eloquente nome de “adeus-mamãe”.

"Somos um país fundado na violência e isso manifesta-se até hoje, só quando vimos a nossa experiência retratada podemos compreender melhor a nossa própria vida. É essa a grande força da literatura. Considero mesmo que a censura ao meu livro é também uma censura à confrontação do Brasil com o seu passado e o seu presente", diz Airton Souza.

Airton Souza, que coloca em epígrafe uma frase de Bertold Brecht e outra de Vicente Franz Cecim, grande poeta da Amazónia, reclama uma genealogia literária que vai deste poeta, autor do prodigioso Óserdeespanto, a Raduan Nassar, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Clarice Lispector, mas também Mia Couto, Ondjaki ou Pauline Chiziane. Com este primeiro romance, cujo valor literário tem sido diluído pela polémica, o escritor diz querer “contar a história do Norte do Brasil, uma terra feita de violências profundas, de pobreza, de fome e sempre à margem das atenções mediáticas que forjam uma visão da cultura brasileira como algo que só acontece no eixo Rio de Janeiro/São Paulo/Belo-Horizonte e nos quais os Estados do norte são sistematicamente apagados”.

De qualidade literária inquestionável, este pequeno livro tornou-se uma arma, “não tanto da política mas da politicagem, típica de um ano de eleições regionais, onde a uns fica bem fazer eco de posições conservadoras e a outros não fazer nada que levante muitas ondas. Vivemos numa bipolaridade doentia entre a esquerda e a direita de onde um artista dificilmente sai vivo”, declara ainda.

E, a propósito deste “apagamento tanto político como mediático” do seu romance, Airton acaba por concluir que, “ao contrário do que já acontece em África, o Brasil ainda não está a refletir sobre a sua História, ainda não sente a necessidade de ajustar contas através da literatura, e eu quero fazer isso. Somos um país fundado na violência e isso manifesta-se até hoje, só quando vimos a nossa experiência retratada podemos compreender melhor a nossa própria vida. É essa a grande força da literatura. Considero mesmo que a censura ao meu livro é também uma censura à confrontação do Brasil com o seu passado e o seu presente.”

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