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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

"Estado de raiva, sono e eventual exaustão." Seguranças do Urban começam a ser julgados

Os três seguranças da discoteca Urban Beach que, em novembro de 2017, foram filmados a agredir clientes vão esta terça-feira a julgamento. Estão acusados de homicídio qualificado na forma tentada.

Magnuson Brandão já estava estendido no solo quando a cena de pancadaria à porta do Urban Beach começou a ser filmada. À sua volta, de pé, estão dois seguranças daquela discoteca que aparentam estar a afastar-se lentamente dali. O jovem tenta então levantar-se, cambaleando e apoiando-se no amigo André Reis, que também ali se encontrava. Mas as agressões estavam longe de acabar: aqueles eram só os primeiros 15 segundos de um vídeo com quase dois minutos, que mostrava três seguranças a agredir violentamente dois jovens, à porta de uma das discotecas mais conhecidas da noite lisboeta, na madrugada do dia 1 de novembro de 2017.

O vídeo foi gravado por um cliente que, tal como muitos outros, já tinha saído da discoteca, mas permanecia ainda no seu exterior. A filmagem começou a circular no WhatsApp, no dia seguinte. As imagens eram chocantes pela violência que retratavam — um dos seguranças chegou a saltar com os dois pés na cabeça de André — mas não deixaram quem as via propriamente surpreendido: o que ali se passava não era novo. O caso de Magnuson e André estava longe de ser o único mas, por alguma razão — talvez pela atenção dada pela comunicação social ou porque, meses antes, um outro caso a envolver 15 jovens tinha já originado alguma polémica –, ganhou uma dimensão diferente.

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O vídeo foi o empurrão para um caso que começa esta terça-feira a ser julgado — o mesmo vídeo que, nos argumentos da defesa, não reflete o que realmente se passou na madrugada depois da festa de Halloween. Os três seguranças — Pedro Inverno, João Ramalhete e David Jardim — vão responder pelo crime de tentativa de homicídio no Tribunal Central Criminal de Lisboa. É a primeira vez que, entre centenas de agressões reveladas e denunciadas, um caso de agressões no Urban chega à justiça. Mas o que aconteceu que o vídeo não revela?

[Recorde o vídeo que mostra as agressões à porta do Urban Beach, na madrugada de 1 de novembro de 2017]

O que se viu e não se viu no vídeo: os assaltos, a garrafa, a navalha e o salto na cabeça

A festa de Halloween já tinha acabado. Eram 6h30 da madrugada do dia 1 de novembro de 2017 quando os seguranças ao serviço do Urban Beach terão sido informados de que um grupo de quatro rapazes estaria a “provocar os clientes que se encontravam a consumir na roulotte de comes e bebes” perto da discoteca, segundo a acusação do Ministério Público (MP) a que o Observador teve acesso. Magunson e André faziam parte desse grupo, que ali terá sido confrontado por dois seguranças — então acompanhados pelo homem que lhes transmitiu a informação. Pedro Inverno e João Ramalhete questionaram o grupo com “a sua presença no local, nomeadamente com o facto de ali se encontrarem a assaltar as pessoas“.

“Começaram logo a perguntar-nos o que é que a gente estava ali a fazer. Nós dissemos: ‘Estamos aqui a passear. Viemos aqui porque eu vim comer e estávamos a decidir se vamos entrar ou não no estabelecimento’. Eles disseram: ‘Não. O que vocês estão aqui a fazer ou é para arranjar conflito ou é para roubar’“, recordou Magnunson, na altura, em declarações à TVI, acrescentando de seguida: “Espetou-me logo um murro na boca“. O jovem referia-se a Pedro Inverno. Terá sido ele que, aos olhos do MP, “súbita e inesperadamente, desferiu um soco” no cara de Magnunson, “que o fez cair por terra”.

"Eles disseram: 'Não. O que vocês estão aqui a fazer ou é para arranjar conflito ou é para roubar'. Espetou-me logo um murro na boca"
Magnuson Brandão, vítima das agressões

Depois do soco, Pedro Inverno terá pegado numa garrafa com o objetivo, acredita o amigo André, de atingir Magnuson — o que, a ser verdade, acabou por não acontecer. “Ia dar-lhe com a garrafa. Ele hesitou, largou a garrafa, pegou numa faca e deu-lhe uma facada na perna”, disse o jovem também em declarações à TVI. Nada disto se viu no vídeo divulgado. O MP também não menciona ter havido uma intenção de atingir o jovem com a garrafa, mas acusa Pedro Inverno de ter dado um golpe na perna de Magnuson, quando este estava encolhido no chão, com uma navalha que teria no bolso. O segurança terá ainda tentado atingir, com a mesma navalha, outro rapaz menor de 15 anos que também ali se encontrava.

Os facto ocorreram na madrugada do dia 1 de novembro de 2017, à porta da discoteca Urban Beach (Foto: DIOGO VENTURA/OBSERVADOR)

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Magnuson aproveitou para se tentar levantar, com a ajuda de André. É pouco antes de se pôr de pé que alguém toma a iniciativa e que as agressões começam, sem que ninguém soubesse, a ser filmadas. Pedro Inverno terá começado a agredir o jovem com socos e um pontapé na cara, com força suficiente para o atirar para o chão novamente. Segundos depois, outro segurança entra em cena. É João Ramalhete que, ao aproximar-se, terá dado “um pontapé na parte de trás da cabeça” do jovem. Depois, afastaram-se novamente.

Magnunson começa a tentar levantar-se novamente com a ajuda de André. Surge então um terceiro segurança, David Jardim, que parecia querer ajudá-lo a levantar o amigo. Pelo contrário, terá agarrado “pelo capuz da sweatshirt e projetou o ofendido André Reis ao chão”, segundo a acusação, e executa a agressão que mais choque causou a quem viu o vídeo: “Saltou a pés juntos para cima da cabeça” de André “que, instintivamente, colocou os braços sobre aquela zona visando assim proteger-se do golpe”. David terá atingido “a zona esquerda da cabeça e os braços”, apesar dos esforços do jovem para se defender.

"Saltou a pés juntos para cima da cabeça do ofendido que, instintivamente, colocou os braços sobre aquela zona visando assim proteger-se do golpe"
Ministério Público

Os seguranças abandonaram, depois, o local. Os dois jovens foram levados de ambulâncias para o Hospital de São José, em Lisboa. Magnunson sofreu um traumatismo cranio-encefálico, lesões na face, um corte de cerca de dois centímetros na coxa direita, fratura dos ossos do nariz e desvio da pirâmide nasal. André sofreu um traumatismo na cabeça e no ombro direito.

Além do INEM, também a PSP foi chamada ao local. Só depois das 7h00 da manhã é que uma patrulha da esquadra de Belém ali chegou, não só por causa dos relatos de agressões mas também por causa de alegados roubos. Seis seguranças, três deles os alegados agressores, e os dois jovens agredidos foram identificados. Mas o registo do caso no sistema da PSP só foi feito um dia e meio depois — o que revelou a indiferença das autoridades e originou um inquérito interno.

Relação diz que salto sobre cabeça da vítima “não é evidente”. Os três são acusados de tentativa de homicídio

No dia após ter sido divulgado o vídeo — e quando o caso já era notícia por todos os jornais nacionais –, os três seguranças, além de afastados da empresa, foram detidos: o primeiro, durante a madrugada, e os outros dois ao início da tarde. Ao mesmo tempo, o Ministério da Administração Interna ordenou o encerramento da discoteca. No dia seguinte, 4 de novembro de 2017, os três seguranças foram ouvidos por um juiz no Tribunal de Instrução Criminal (TIC), que considerou que os arguidos cometeram as agressões “movidos por um desejo de violência gratuita e no gozo de um sentimento de superioridade”.

No dia 3 de novembro de 2017, os três seguranças, além de afastados da empresa, foram detidos (Foto: DIOGO VENTURA/OBSERVADOR)

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Ainda assim, as medidas de coação aplicadas foram diferentes. Pedro Inverno e David Jardim, indiciados pela prática do crime de homicídio na forma tentada, ficaram em prisão preventiva. Dias depois, acabaram por passar para prisão domiciliária com pulseira eletrónica, depois de a medida de coação de a medida de de coação ter sido revista pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Já João Ramalhete, indiciado por ofensa à integridade física, saiu em liberdade, embora sujeito ao termo de identidade e residência e proibição de contactar os outros dois arguidos e de exercer a atividade de segurança privada. A justificação? O TIC considerou que o segurança “se limitou a desferir alguns socos e pontapés” a Magnunson e não se envolveu nas agressões a André.

David Jardim recorreu da medida de coação e foi-lhe dada razão. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que não era “evidente”, nem no vídeo que mostrava as agressões, nem nos exames feitos no hospital que não detetou numa fratura — que o segurança tinha saltado com os dois pés sobre a cabeça da vítima. “As imagens revelam que o arguido saltou a pé juntos sobre o corpo do ofendido André Reis, mas não são, a nosso ver, claras quanto à zona atingida”, lê-se na acórdão a que o Observador teve acesso.

"As imagens revelam que o arguido saltou a pé juntos sobre o corpo do ofendido André Reis, mas não são, a nosso ver, claras quanto à zona atingida"
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Em maio do ano passado, Pedro Inverno, João Ramalhete e David Jardim foram acusados de homicídio qualificado na forma tentada. O MP entendeu que os seguranças “agiram de forma livre, deliberada e conscientemente”. Mais: segundo a acusação, os três arguidos sabiam que nas zonas do corpo que atingiram com as agressões “se encontravam órgãos vitais e que os ferimentos daí resultantes poderiam determinar a morte do mesmo“.

“Estado de raiva, carência de sono e até eventual exaustão psicológica”

Os três seguranças requereram a abertura de instrução. Mas o Tribunal Judicial da Comarca decidiu levar a julgamento os arguidos “nos exatos termos” do MP. Para começar, considerou como prova válida o vídeo que captou as agressões — algo que a defesa tinha pedido para ser considerada uma “gravação ilícita”. Entendeu ainda que “não existem indícios” de que Magnuson e André “estivessem a praticar um furto ou sequer estivessem a provocar desacatos que lesassem o direito à integridade física de terceiros”, segundo o despacho de pronúncia a que o Observador teve acesso.

Em maio do ano passado, Pedro Inverno, João Ramalhete e David Jardim foram acusados de homicídio qualificado na forma tentada (Foto: DIOGO VENTURA/OBSERVADOR)

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Considerando que os seguranças se encontravam em “estado de raiva, carência de sono e até eventual exaustão psicológica, que os animou à extrema violência que se visiona”, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, entendeu que “todos os factos” descritos pelo MP se “encontram suficientemente indiciados e que os mesmos integram a prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada”.

“Deixa-me satisfeita, por agora”, disse a advogada das vítimas, Sandra Cardoso, à saída do debate instrutório, acrescentando que em fase de julgamento espera que se prove “que todos os factos da acusação foram praticados e, portanto, o crime de homicídio qualificado na forma tentada foi praticado por todos os arguidos. E haver depois uma condenação”.  Essa não será para já. Estão já marcadas, pelo menos, três sessões de julgamento até que a decisão seja tomada.

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