É enfermeiro há mais de uma década no serviço de urgência do hospital Padre Américo, em Penafiel, prefere não ser identificado por ter medo de represálias, e fala ao Observador quando está dentro da casa de banho, “para não ser ouvido”. Relata uma “situação caótica, muito fora do normal”, e um “problema grave” de falta de espaço. “Neste momento existem 50 internados no serviço de urgência, dos quais 32 estão infetados com Covid-19, 10 já foram transferidos para o hospital de Amarante”, começa por explicar. “A primeira vaga? Foi para meninos.”
O profissional de saúde conta que os doentes com pulseiras verdes e amarelas que chegam à urgência podem demorar cerca de 10 horas para serem atendidos e que um corredor grande foi transformado numa sala de espera com macas. “Retiraram as cadeiras e colocaram duas paredes de pladur, uma em cada ponta. É lá que o médico faz a primeira observação e avaliação clínica”, descreve. O cenário pouco habitual começou a ganhar forma na semana passada e durante a mudança os circuitos Covid e não Covid nem sempre funcionaram a 100%. O mesmo enfermeiro revela que há falta de macas no serviço, o que o obriga a utilizar, pelo menos temporariamente, as macas dos bombeiros que transportam os doentes nas ambulâncias.
Tanto na sala de urgência como no corredor, são prestados cuidados, “mas nunca será igual a um internamento normal”. “Fazemos o nosso melhor, mas não é suficiente”, reconhece o enfermeiro, já que no mesmo local convivem doentes positivos e pessoas apenas com sintomas respiratórios, sem ainda terem sido testados à Covid-19. “Chegam cada vez mais pacientes com critérios de internamento”, alerta, garantindo que os casos infetados, ao contrário do que se verificava na primeira vaga, são mais novos, a partir dos 40 anos.
9,3% do total de internados estão aqui
Mesmo antes de serem decretadas medidas específicas para os concelhos de Paços de Ferreira, Lousada e Felgueiras, a 22 de outubro, já o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS) vivia uma “pressão inesperada”. “Fomos o primeiro hospital a sofrer os efeitos da pandemia e também o primeiro a libertar-se dela. Na primeira fase, tivemos 80 internados infetados, mas neste momento já contamos com 100 e com sete na unidade de cuidados intensivos”, afirmou na altura ao Observador o presidente do conselho de administração. Mesmo assim, Carlos Alberto Silva afastava na altura um cenário de ruptura ou colapso.
Hoje, os números estão bem piores. Há pelo menos 210 internados por Covid-19 e 10 em cuidados intensivos, um número que representa 9,3% do total nacional de internamentos (2.255) relacionado com o novo coronavírus. O hospital, dividido entre um polo em Penafiel e outro em Amarante, serve 14 concelhos de quatro distritos, e viveu “uma pressão inesperada” nas últimas semanas. Agora, a pressão aumentou ainda mais.
Este número de atendimentos diários na urgência, a rondar os 800 “nunca se verificou”, nem mesmo durante o pico da gripe de anos anteriores, sendo “algo completamente transcendente”. “A nossa capacidade já se esgotou, estamos a assistir a uma desgraça. Víamos fotografias assustadoras em hospitais de Itália e Espanha na primeira vaga e agora vejo isso aqui também”, descreve o enfermeiro.
O Centro Hospitalar Tâmega e Sousa contabiliza “mais de 100” profissionais de saúde “infetados ou em isolamento profilático”, desde médicos a enfermeiros e assistentes operacionais. Só no serviço de urgência o número ronda a meia centena.
“Ninguém estava à espera que a segunda vaga chegasse tão cedo, há uma explosão de Covid e tudo poderia ser diferente com estratégia e planeamento. A segunda vaga era previsível, devíamo-nos ter preparado melhor e começámos a fazê-lo muito tarde”, defende o enfermeiro, que dá mesmo um exemplo concreto ao Observador, fazendo referência a uma estrutura pré-fabricada de 600 metros quadrados que está a ser montada junto à urgência para dar apoio ao serviço. “Começou a ser construída só no dia 7 de outubro, ainda não está a funcionar e ninguém sabe quando estará.”
Também a tenda do INEM, instalada desde a semana passada no heliporto do hospital, tinha como objetivo fazer a separação de pacientes com sintomas típicos da doença, mas é, segundo o profissional, “para inglês ver”. “Funciona apenas como centro de rastreio para pessoas que vão fazer o teste e voltam para casa ou para doentes nossos serem testados antes de uma cirurgia oncológica, que é o único tipo de cirurgia que estamos a fazer.”
O mesmo enfermeiro adianta ao Observador que “doentes com melhor prognóstico” estão a ser reencaminhados para outros hospitais, como Braga, Guimarães ou Gondomar, mas também para unidades privadas, como o Trofa Saúde de Vila Real, Viana do Castelo ou o Hospital Fernando Pessoa. Fonte do CHTS adiantou à Lusa que já transferiu cerca de 50 doentes para outros hospitais da região. “Cerca de 45 já estão no hospital de Amarante [que pertence ao CHTS]. Outros cerca de 50 foram para a rede.”
Na sexta-feira o Hospital das Forças Armadas divulgou que acolheu 10 doentes “na sequência de um pedido do Hospital de Penafiel”. Já o Hospital Fernando Pessoa, uma unidade privada de Gondomar, acolhia naquela data 20 doentes provenientes do CHTS, de acordo com fonte da Administração Regional de Saúde do Norte.
Médica recorda “problema crónico de falta de espaço” e número “insuficiente” de profissionais de saúde
Trabalha há 12 anos no hospital Padre Américo, em Penafiel, é médica internista e prefere não ser identificada. “As urgências já eram pequenas e está a ser cada vez mais difícil gerir doentes para internamento, pois temos uma problema crónico de falta de espaço. Doentes internados nas urgências? No pico do inverno é recorrente”, revela.
No último sábado, dia 31 de outubro, o hospital internou 38 doentes, “tendo visto pelo menos o triplo”, sendo que o número de profissionais de saúde “continua a não ser suficiente” para dar resposta à situação atual. “Estamos cansados e desanimados, não vemos uma luz ao fundo do túnel. Acho mesmo que o futuro poderá ser ainda pior.”
A mistura de doentes positivos com doentes suspeitos “existe desde o início da pandemia”, no entanto, com o aumento do período de espera na urgência, esse risco de contágio também cresceu. “Até um doente ser observado ou receber o resultado de um teste pode demorar de 6 a 7 horas. Nunca conseguimos atender os pacientes com pulseira amarela numa hora, como é recomendado, mas sim em três.”
Há duas semanas que doentes Covid e não Covid estão a ser transferidos para outros hospitais “por falta de espaço”, mas a médica acredita que quando estes começarem a ter procura “terão o seu limite”. “Mesmo com mais estruturas, há limitação de recursos humanos”, sublinha, acreditando que a solução poderá mesmo passar por existirem hospitais exclusivos da doença, uma vez que os doentes Covid-19 exigem um internamento prolongado. “Se o número de doentes continuar a aumentar, penso que o nosso funcionamento pode estar em causa. Entrar em ruptura é fechar o hospital? Então admito que sim.” A médica garante não estar preparada para escolher quais os doentes tratar. “Triagem de catástrofe? Nunca fiz isso, não estou pronta para fazer isso.”
Administração pede ajuda, Ordem pressiona e ARS Norte dá parecer “favorável” a reforço de recursos humanos
Segundo a Agência Lusa, na passada sexta-feira à noite o presidente do conselho de administração do CHTS, Carlos Alberto Silva, publicou nas redes sociais do centro hospitalar um apelo à população, no qual pedia que “todos” cumprissem as recomendações como o uso de máscara, lavagem das mãos, etiqueta respiratória e distanciamento social.
“O CHTS tem estado nestas últimas semanas sob uma pressão tremenda, com uma injusta sobrecarga de trabalho dos seus profissionais, devido à elevadíssima concentração de casos positivos nesta região. Aliás, nunca tinha acontecido, desde o início da pandemia, que um só hospital tivesse concentrados 10% de todos os doentes internados por Covid-19 do país. É o que está atualmente a acontecer no CHTS. Apesar das dificuldades provocadas por uma situação desta dimensão, ainda que preferíssemos que não precisassem de acorrer ao hospital, continuaremos a trabalhar para os nossos utentes”, pode ler-se.
“Está complicado”. Administração do hospital de Penafiel diz que é “mesmo preciso ajuda”
Esta segunda-feira, segundo o jornal Público, o presidente do CHTS enviou um e-mail à Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte e à ministra da Saúde a pedir ajuda e mais médicos de clínica geral para preencher as escalas da urgência do hospital de Penafiel. “Se tiverem médicos de clínica geral que possam vir fazer urgência era bom porque tivemos aqui alguns positivos que fragilizaram as escalas e está complicado”.
Em resposta ao Observador, o gabinete de relações públicas da ARS do Norte garante estar “a acompanhar a situação” e a “agilizar respostas”. “O Conselho Diretivo da Administração Regional de Saúde do Norte, está a acompanhar a situação e, juntamente com o Conselho de Administração do CHTS, a agilizar respostas, numa primeira fase potenciando a resposta em rede dos hospitais de âmbito do SNS – colocando aqui doentes Covid-19 provenientes do referido Centro Hospitalar – e, em paralelo, promovendo a celebração de convenções, quer com o sector privado, quer com o sector social.”
Sobre o pedido de mais profissionais de saúde para combater a “afluência muito elevada, acima do esperado para a fase epidemiológica que estamos a viver” no Serviço de Urgência da Unidade Hospitalar Padre Américo, em Penafiel, a ARS do Norte avança que o Conselho Diretivo emitiu “de imediato” um parecer “favorável”, não adiantando, no entanto, o número de médicos nem a data prevista para a sua contratação.
À rádio Observador, António Araújo, presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, fala de uma situação “dramática” e defende que a ARS do Norte tem obrigação de prestar ajuda o mais rapidamente possível. “A ARS Norte tinha e tem o dever, tal como o Governo, de antecipar situações dramáticas como esta e, não antecipando, tentar resolver a situação quando ela surge.”
O representante da Ordem dos Médicos alerta que a ajuda é “para hoje”. “Têm-nos chegado muitos relatos de profissionais de saúde desesperados, a chorar, perfeitamente impotentes para lidar com a situação que estão a viver, portanto, requerer urgentemente de ajuda. Não é para amanhã, a ajuda tem que ser hoje e já devia ter sido ontem.”
O Observador questionou o conselho de administração do CHTS sobre os relatos obtidos juntos dos profissionais de saúde, mas até ao momento não obteve qualquer resposta.