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Artigo publicado originalmente a propósito do sismo de 2023 em Marrocos e republicado na sequência do sismo de 5,3 na escala de Richter registado em Portugal a 26 de agosto de 2024.
João Guterres lembra-se perfeitamente daquela noite de fevereiro. Tinha cinco anos quando a terra começou a tremer. “Estava no quarto e o meu pai, que também era engenheiro, pegou na minha mãe e no meu irmão e fomos todos para a rua.” Moravam na Avenida 5 de outubro, em Lisboa. Agora, mais de 50 anos depois, João trabalha como engenheiro civil, tal como o pai, e diz não ter dúvidas: caso se repita um sismo como aquele de 1969, com uma magnitude de 7.9 na escala de Richter, aquela será uma das zonas mais afetadas da capital, devido ao tipo de construção.
Os números que chegaram em 2023 de Marrocos, onde um sismo de 6.9 se fez sentir numa noite de sexta-feira, impressionaram: mais de 1.300 mortos, quase dois mil feridos e 30 réplicas. Números que contrastam com as 13 mortes que se registaram em Portugal, em 1969, muito embora a magnitude tenha sido inferior. “E é preciso lembrar que, por cada grau na escala de Richter, a energia libertada é 33 vezes maior”, lembra o engenheiro João Guterres.
Significa isso que, em caso de um novo sismo forte em Portugal, é improvável que vejamos cenas de destruição como as que vemos em Marrocos? Sim. Mas isso não significa que estejamos livres de risco.
O risco de um sismo em Portugal é real, mas o que mata é a queda dos edifícios
Quem o garante é João Duarte Fonseca, investigador do Instituto Superior Técnico especializado em sismologia. “Não estamos na situação pior. Conseguimos evitar as centenas de milhares de mortes”, diz, apontando para situações catastróficas como o sismo de Sumatra em 2004 (230 mil mortes) ou do Haiti em 2010 (220 mil mortes). “Mas é muito fácil haver um sismo forte numa zona de grande ocupação em Portugal e morrerem dezenas de pessoas. Foi exatamente isso que aconteceu em Benavente, em 1909.”
O sismólogo considera que não faz sentido comparar os efeitos do sismo de 1969 com o que aconteceu em Marrocos por ter características muito diferentes: o epicentro do sismo português foi no oceano, distante da costa, e numa zona muito profunda. E nos sismos, diz, para além da magnitude, há que ter em conta a diretividade: “Se eu gritar para si diretamente ouve com mais intensidade do que se eu me virar de costas e gritar. É a mesma coisa. Portanto, um sismo com a mesma magnitude pode causar destruições diferentes.” Para além disso, o facto de ter acontecido de noite e no mês de fevereiro garantiu que quase ninguém era afetado pelo pequeno tsunami que se formou.
“Se me dissesse que tivemos um sismo com 7.9 e quase não morreu ninguém, não acreditava. Mas aconteceu, tivemos sorte”, diz, contrapondo com o “azar” do sismo de 1755, onde muitas pessoas morreram por ser Dia de Todos os Santos e estarem em igrejas. “Não vamos ter sempre sorte”, alerta o especialista.
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Isto porque Portugal está numa zona em que três placas tectónicas (a euro-asiática, a africana e a americana) se cruzam e, portanto, a possibilidade de ocorrer um sismo de magnitude elevada existe sempre — não só com epicentro no mar, como o de 1969, mas também os provocados pelas falhas em terra. “Temos algumas, que têm gerado sismos semelhantes a estes que ocorreram agora em Marrocos. Tivemos um em 1531, tivemos o de Benavente… Nós vamos ter sismos como o de Marrocos”, afirma, referindo-se à magnitude.
A placa africana está a rachar o país e mais uma dúzia de dúvidas sobre sismos
E as zonas de risco estão claramente identificadas pelos especialistas. Devido à localização das falhas, o centro e sul do país têm muito maior probabilidade de serem afetados, com particular relevo para Lisboa e Algarve. A que se soma o caso dos Açores.
A diferença dos efeitos provocados por um sismo destes em Marrocos e numa cidade como Lisboa está, dizem todos os especialistas ouvidos pelo Observador, na capacidade da resistência da construção. “Em Marraquexe, por exemplo, a maior parte dos edifícios modernos mantiveram-se em pé. E a única coisa que mata num sismo é a queda dos edifícios.”
O bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando de Almeida Santos, garante ao Observador que os dois países têm uma situação “muito diferente”. “Em Marrocos vemos um tipo de construção muito mais antiquado. Em termos estruturais, nos países ocidentalizados como o nosso, tem havido um investimento de conhecimento tecnológico e imposição legal.” O que não significa, porém, que estejamos totalmente seguros.
Regulamentos anti-sísmicos funcionam — se não houver “prevaricação”
Os dois engenheiros ouvidos pelo Observador asseguram que o atual regulamento anti-sísmico tem boas regras, “desde que sejam cumpridas”.
A primeira construção projetada em Portugal para resistir a sismos foi a chamada “gaiola pombalina”, desenhada após o sismo de 1755. Mas o primeiro regulamento do século XX surgiu em 1958 e foi reforçado com um novo regulamento mais criterioso, em 1983. Isto significa que o principal risco está nos edifícios anteriores à década de 1950 — o que corresponde a muita da construção na capital, cerca de 21% de acordo com dados do INE.
Já para não falar que também os edifícios pombalinos tiveram alterações até 1958 que, como reconhece a própria Câmara de Lisboa, “foram feitas sem qualquer cuidado em preservar a resistência sísmica das construções Pombalinas originais, tendo resultado no enfraquecimento e redução da resistência sísmica deste edifícios”.
Apesar disso, o bastonário da Ordem dos Engenheiros considera que, regra geral, a construção feita desde os anos 50 é “bem feita”, por incluir sempre “a obrigatoriedade de cálculos que incluam resistências anti-sísmicas”. “Toda a construção que é feita desde então, se o técnico que faz o cálculo não prevaricar, tem isso em conta e, portanto, não provocaria os efeitos que vemos com o [sismo] de Marrocos”, acrescenta Fernando de Almeida Santos.
A “prevaricação” de que o bastonário fala é a possibilidade de o responsável pelo projeto não ser rigoroso no termo de responsabilidade que assina, onde se assegura que o edifício cumpre as regras anti-sísmicas — incluindo em casos de remodelação. Mas Fernando de Almeida Santos diz querer acreditar “que, de uma maneira geral, as pessoas qualificadas fazem bem o seu trabalho”. “Em todas as remodelações onde são introduzidos cálculos, o risco sísmico está incorporado”, garante. “Naturalmente que, se acontecer algum sinistro, temos o registo de cada intervenção num edificado e podemos analisar em detalhe se houve mais ou menos rigor técnico. E os conselhos jurisdicionais entram em ação.”
O engenheiro João Guterres, contudo, diz que no dia a dia encontra muitos casos em que houve claramente “prevaricação”. “Um tipo depara-se com situações alarmantes”, diz, sobretudo no que diz respeito a remodelações de edifícios antigos. “Tem sido feito muito disparate. Tem-se remodelado muito apartamento suprimindo paredes, sem haver reforço no prédio em geral”, diz o doutorado em Reabilitação Urbana. “Cometeram-se muitos erros no património já edificado”.
É por isso que, acrescenta o sismólogo João Duarte Fonseca, é preciso relembrar a necessidade de fiscalização. “Quando há um projeto de construção, tem obviamente de cumprir as regras. O problema é que não há fiscalização a posteriori, como há, por exemplo, na parte elétrica ou do gás. Não existe nada do género da parte da construção”, afirma o professor do Instituto Superior Técnico. “É preciso garantir que a pessoa não tirou uma parede-mestra ou uma viga importante. Na cadeia entre arquiteto, empreiteiro, empresa subcontratada, etc., muitas vezes a informação original do projeto perde-se.”
O especialista lembra também que cada um de nós também pode ter um papel em verificar isso: “Quando compramos uma casa, devemos perguntar: a casa está preparada? E devemos fazer um seguro anti-sísmico. É caro, mas no preço final, em caso do sismo… É quase irrelevante.”
Lisboa, o coração do problema onde é preciso prevenir
Para além da fiscalização, outra componente importante destacada pelos especialistas é o levantamento da informação: compreender quantos edifícios estão sem cumprir as regras anti-sísmicas neste momento, onde estão, o que pode ser feito.
Mas essa é uma questão que tem sido gerida pelas autarquias, a nível individual. A Câmara Municipal de Lisboa tem estado a aplicar o ReSist, um programa de resiliência sísmica do parque edificado, desde 2022. Atualmente, uma equipa de especialistas liderada pela geóloga Cláudia Pinto está a criar um indicador de vulnerabilidade sísmica que se espera poder vir a indicar o grau de resistência de todos os edifícios da cidade, que deveria ter ficado concluído em junho deste ano, segundo o jornal Expresso.
À altura, a coordenadora do projeto já estimava ao mesmo jornal que 60% das construções em Lisboa não tenham capacidade de resistir a um sismo forte. E estarão a ser estudadas propostas para ajudar os proprietários a fazer as intervenções necessárias para adaptar esses edifícios.
Os especialistas contactados pelo Observador consideram que este levantamento é “essencial”. “O problema agora é que ninguém sabe muito bem se estamos ou não preparados, por isso, o primeiro passo tem de ser o rastreio”, aponta João Duarte Fonseca. Também Fernando de Almeida Santos, da Ordem dos Engenheiros, considera que o índice trará um contributo “imenso” para a prevenção. “Foi uma decisão política, que depois tem uma intervenção técnica, com propostas técnicas para se fazer a reabilitação. A decisão de como as fazer depois é novamente política, mas aí o decisor já tem a informação e tem a responsabilidade de intervir”, diz o bastonário. “Tudo o que deve ser feito e aplicado em prol dessa segurança sísmica é um contributo para a segurança de pessoas e bens.”
O sismólogo João Duarte Fonseca diz ter a sensação de que a demora nestes processos por parte do poder político não ocorre “por maldade”, “mas porque a informação não flui”: “Como já não há um sismo há 20 anos, ninguém se lembra, deixa de ser prioritário… Os seres humanos são assim.” E é claro que, para resolver o problema, será preciso investir, num país de “recursos limitados”. “Mas precisamente por ser difícil é que temos de começar já e ir fazendo pouco a pouco”, diz.
Já no que diz respeito à resposta imediata para socorrer vítimas, o governo assegura que está tudo a postos. Em fevereiro, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, recordou que o plano nacional de emergência da proteção civil é testado de dois em dois anos e que há planos específicos para casos de sismo — um para Lisboa e outro para o Algarve.
O Plano Especial de Emergência de Proteção Civil para o Risco Sísmico na Área Metropolitana de Lisboa e Concelhos Limítrofes é de acesso público e prevê que seja montado um centro de operações em Carnaxide, que sejam requisitados barcos e comboios para evacuações e que até o Aeroporto Humberto Delgado possa ser usado para concentrar feridos ou depositar cadáveres.
Qual é o plano especial da Proteção Civil para um grande sismo em Lisboa?
Isto porque o risco de uma situação catastrófica existe. O centro de Lisboa é uma das zonas que inspira mais receio em caso de sismo. “É uma questão extremamente séria”, alerta o engenheiro João Guterres. “Sobretudo no centro histórico, mas também em todos os bairros onde as estruturas são antigas.” É que o problema não está limitado a bairros do centro histórico, como Alfama ou Madragoa: “As zonas das Avenidas Novas são problemáticas no caso de um sismo grande, porque já há muita massa em altura. Muitos prédios ali têm lajes em betão, mas não têm uma estrutura de betão armado suficientemente forte que permita combater o efeito do sismo”, aponta.
Uma avaliação corroborada pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que, na avaliação de risco sísmico da cidade, em 2010, concluiu que as Avenidas Novas, Arroios, Anjos, Penha de França e São João de Deus seriam as zonas da cidade onde provavelmente se registariam mais mortes em caso de sismo forte.
É por isso que, diz o bastonário da Ordem dos Advogados, o caminho tem de ser o da prevenção. “A engenharia deve ser eminentemente preventiva. Se fizermos um raciocínio matemático simples, quanto maior for a prevenção, em teoria menos dano teremos. Aliás, nota-se, vemos a diferença entre os sismos no Japão e os da Turquia”, afirma, destacando a qualidade das construções nipónicas, que permitem que sismos de forte intensidade provoquem poucas vítimas.
Garantir construção segura deve ser a principal prioridade para evitar que um cenário como o de Marrocos aconteça em Portugal, afirma João Duarte Fonseca. “Nenhum país está completamente preparado para um grande sismo. Mas fazermos alguma coisa pode ser a diferença entre ter poucos mortos ou ter um número desmesurado de vítimas.” Porque confiar na sorte, como a que tivemos em 1969, pode não chegar.