Os chefes de governo reunidos no Conselho Europeu tinham, há duas semanas, encomendado aos ministros das Finanças do Eurogrupo um pacote económico de reação à pandemia. E aí está o plano: esta quinta-feira, depois de uma embaraçosa suspensão dos trabalhos por dois dias, os ministros das Finanças chegaram a acordo para se lançar um pacote “sem precedentes”, com contornos que seriam “impensáveis há algumas semanas”, garantiu Mário Centeno. O valor total impressiona – 540 mil milhões de euros – mas a abordagem tripartida (fundo de resgate europeu, empréstimos do BEI e “almofada” para o emprego) é a que já se esperava há vários dias. A maior novidade, que ajudará a compreender porquê a demora, é que se deixou a porta aberta à criação de “instrumentos financeiros inovadores” para relançar a economia – mas aí, porém, os ministros de Eurogrupo devolvem a bola aos chefes de Estado e de Governo.
Como ponta-de-lança, a medida para os Estados: até 240 mil milhões de euros no fundo europeu de resgates (o Mecanismo Europeu de Estabilidade, ou MEE) a que os países podem recorrer, num valor até 2% do respetivo PIB, para cobrir custos relacionados com a pandemia. Esta é a parangona, mas eis as letrinhas pequenas: os países podem ir buscar esse dinheiro sem que isso implique contrapartidas especiais caso seja para pagar custos “direta ou indiretamente” relacionados com o impacto da pandemia na saúde (custos com a cura ou com a prevenção”, explicou Centeno) – mas se for com qualquer outro intuito será necessário haver condicionalidade, como fez questão de sublinhar o ministro das Finanças dos Países Baixos, no Twitter, minutos após a notícia do acordo.
Seja como for, o facto de se poder aceder aos fundos do MEE sem que isso obrigue a austeridade ou outras condicionalidades é algo inédito e, provavelmente, aquilo a que Mário Centeno se referia quando disse que há algumas semanas uma ideia deste género seria “impensável”. Ainda assim, há uma condicionalidade por outra perspetiva: trata-se de dinheiro destinado a financiar custos com saúde – algo que Mário Centeno garantiu que não tem uma definição “assim tão estreita”, por serem custos “direta ou indiretamente” relacionados com o impacto do vírus nos sistemas de saúde.
O que Centeno não quis comentar é se, no final de contas, a dívida que o MEE vier a emitir para entregar aos países acabará por ser comprada pelo Banco Central Europeu (BCE) ao abrigo, por exemplo, do programa de intervenção nos mercados que foi lançado (e nunca usado) por Mario Draghi em 2012, conhecido pela sigla OMT. Seja através deste programa ou não, o consenso entre os analistas é que os custos que os países mais penalizados pela pandemia venham a ter acabarão por desaguar no balanço do banco central, de uma forma ou de outra. Mas caberá ao BCE pronunciar-se sobre essa matéria, adiantou Centeno.
No meio-campo, tendo em mente a situação das empresas, o Eurogrupo congratulou-se pela intenção do Banco Europeu de Investimento de criar um fundo de garantias com 25 mil milhões de euros que podem ser alavancados ao ponto de fazer chegar até 200 mil milhões de euros em programas de financiamento, sobretudo para pequenas e médias empresas europeias que se viram afetadas por esta crise.
“Convidamos o Banco Europeu de Investimento a operacionalizar a sua proposta assim que possível e a preparar-se para agilizar este programa sem atrasos, ao mesmo tempo que é assegurada a complementaridade com outras iniciativas da União Europeia” e futuros programas de investimento. Esta é uma faceta do acordo do Eurogrupo que não se refere apenas aos países da zona euro mas a toda a comunidade europeia, para que se assegurem condições concorrenciais justas em todo o mercado único europeu (que inclui outros países que não estão na zona euro).
Na linha defensiva, finalmente, um quarteto que é uma sigla de quatro letras – SURE – que calha bem ao remeter, na palavra anglo-saxónica, para a maior segurança que os trabalhadores europeus precisam nesta fase. Tal como já tinha sido amplamente noticiado, a intenção aqui é criar uma plataforma que “irá complementar as redes de segurança nacionais” na área do emprego, uma plataforma de financiamento de medidas de apoio ao emprego que será “temporária” e relacionada com um “espírito de solidariedade e à luz da natureza excecional da crise da Covid-19”.
Em concreto, esta plataforma vai “conceder aos estados-membros assistência financeira durante este tempo de crise, na forma de empréstimos concedidos em custos favoráveis por parte da União Europeia aos seus estados-membros, num valor até 100 mil milhões, partindo o mais possível do orçamento comunitário”. A plataforma SURE “vai apoiar os esforços para proteger os trabalhadores e os postos de trabalho, ao mesmo tempo que se respeitam as competências nacionais na área dos apoios sociais”, em cada país. Segue o “processo legislativo” que irá determinar exatamente como é que estes apoios vão chegar à economia real.
Esta é a equipa que entrará em campo, nas próximas semanas, para ajudar a relançar a economia. A grande novidade do acordo obtido esta quinta-feira, porém, poderá estar no “banco de suplentes”. E falamos, aqui, de uma iniciativa de Espanha e de França para a criação de um “Fundo de Recuperação” a pensar no relançamento no pós-crise sanitária. Este será, explica o comunicado do Eurogrupo, um instrumento que irá “preparar e apoiar a retoma, aportando financiamento através do Orçamento da UE a programas desenhados para reiniciar a economia, em linha com as prioridades europeias e garantindo a solidariedade da UE para com os mais Estados-membros mais afetados.
“Esse fundo seria temporário, dirigido e de uma grandeza apropriada aos custos extraordinários da atual crise, para ajudar a distribui-los ao longo do tempo através de financiamento adequado”, pode ler-se no comunicado. Mas há mais. O Eurogrupo remete para os líderes europeus – os chefes de Estado e de Governo – “as discussões sobre os aspetos legais e práticos relativos a este fundo, incluindo a sua relação com o orçamento da UE, as suas fontes de financiamento e instrumentos financeiros inovadores“.
É esta última expressão que a Holanda não queria e que a Itália achava pouco. Roma queria uma referência explícita aos coronabonds, títulos de dívida europeus (que não onerassem as contas públicas dos países específicos), e os Países Baixos achavam que já isto era demais. Mas esta expressão acabou por surgir no comunicado, indicando que em segundas núpcias – que podem ser já numa eventual reunião do Conselho Europeu já na próxima semana – a ideia de se discutir “instrumentos financeiros inovadores” ficou, pelo menos, no “banco de suplentes”, embora houvesse países que não a queriam ver, sequer, na “lista de convocados”.
Solução para a crise na equipa inicial ou terá de saltar do banco?
Centeno já trazia na algibeira a resposta que deu a um dos jornalistas que participaram na conferência de imprensa: “desde que assumi a presidência do Eurogrupo quis assegurar que não limitaria as discussões nem anteciparia nunca as conclusões”. “Temos de ser pacientes“, afirmou o ministro das Finanças português que é, também, presidente do Eurogrupo.
No fundo, para já, uma “bazuca” europeia de garantias de empréstimos baratos, pouca indicação de despesa a fundo de perdido e, ainda, um passo intermédio na discussão sobre eurobonds que pode vir a significar tudo ou que pode vir a significar nada. Seja como for, este é o pacote técnico que o Eurogrupo irá entregar aos chefes de governo. E será suficiente? “Bem, precisamos agora de combater o vírus, começar a reagir e reabrir as nossas economias à medida que for possível – e é preciso ter cuidado a fazer isso – e depois podemos começar a recuperar as economias e, aí, todos os recursos que forem necessários irão chegar à economia, para responder a esta crise”, garantiu Mário Centeno.
Como reconhecido adepto de futebol, Centeno sabe que muitas vezes a solução acaba por vir do banco, mas diz-se confiante de que é possível vencer a crise – ou, pelo menos, amortecer o seu primeiro impacto – apenas com a equipa inicial.
Numa primeira reação dos analistas cuja pesquisa ajuda a influenciar as decisões dos investidores nos mercados de capitais, estes parecem querer “dar o mérito onde ele é devido” mas dizem acreditar que este é apenas um primeiro passo, embora audaz, numa saga que terá mais episódios.
“Aquilo que já devia ter sido conseguido na terça-feira acabou por se transformar numa maratona” que só terminou ao final da noite desta quinta-feira, mas a realidade é que o Eurogrupo acabou por conseguir um acordo nos termos que já tinham sido sinalizados nas últimas semanas, assinala Carsten Brzeski, economista-chefe do banco ING, em nota de análise. Na análise que faz deste acordo, o economista admite que o clima na zona euro, mesmo após este acordo, vai continuar a ser marcado por um desnível entre aqueles que acham que, mesmo assim, está a haver pouca partilha de custos entre os países e aqueles que, em contraste, acham que até já se foi longe demais a esse respeito.
Ainda assim, diz Carsten Brzeski, “para dar o mérito onde ele é devido, as decisões que o Eurogrupo tomou esta noite somam-se à enorme quantidade de estímulos que já foram postos em campo para combater o coronavírus e as suas consequências económicas“. “As respostas orçamentais que estão a ser dadas estão a surgir mais rapidamente e de forma mais robusta do que vimos acontecer no passado”, reconhece.
Mas, sublinha o economista, este plano não faz desaparecer as questões que existem sobre a sustentabilidade da dívida de alguns países, desde logo aqueles que estão a ser mais fustigados pela crise sanitária mas, de um modo geral, todos os países europeus que estão sob pressão: mais custos com saúde e prestações sociais e, por outro lado, economias em recessão, mesmo que temporária. “No final, a questão da sustentabilidade da dívida só irá ser resolvida com alguma mutualização de dívida, com perdões de dívida ou com monetarização de dívida”, isto é, transferir para o banco central parte da dívida pública.
Ainda que, por exemplo, “um recurso sem condicionalidade ao MEE seja, de facto, algo impensável há apenas alguns meses, seriam necessárias mais medidas anteriormente impensáveis para fazer com que os riscos específicos de cada país desaparecessem“.
Uma visão semelhante tem Florien Hense, economista do Berenberg Bank em Londres. Para este economista, há duas razões para considerar que o acordo obtido esta quinta-feira não é tão forte quanto poderia ter sido, enquanto sinal de apoio europeu“. Em primeiro, sendo um acordo já em linha com o esperado, “este acordo não desatou o nó sobre a emissão conjunta de dívida pública para financiar um fundo de recuperação económica, chutando essa bola para ‘o andar de cima’ para que os chefes de governo decidam”.
Em segundo lugar, “o conflito público e aberto que houve nas últimas semanas em torno deste acordo ameaça ofuscar a sua substância, tornando mais difícil a tarefa dos líderes políticos que quiserem pegar neste acordo e apresentá-lo junto dos seus cidadãos como um exemplo de solidariedade impressionante”.
Assim, em conclusão, Florian Hense não sabe se esta foi uma “oportunidade perdida”. “Num cenário otimista, a memória sobre como é que este acordo foi conseguido poderá desvanecer-se na memória dos cidadãos europeus, que irão reter mais na sua memória a ajuda que os países acabaram mesmo por conceder uns aos outros”, afirma. Porém, “num cenário mais pessimista, a perceção de uma solidariedade lenta – ou insuficiente – poderá, assim, alimentar o euroceticismo e minar os alicerces do projeto europeu”.
O acordo obtido esta quinta-feira é “um grande passo em frente, mas poderá não ser suficiente para anular estes riscos”, diz o economista, acrescentando que “os líderes europeus e os seus ministros das Finanças têm de chegar a um acordo para criar um fundo de recuperação conjunto com grande dimensão e de alcance significativo. E têm de fazê-lo rapidamente“.