Reportagem em Kiev
Da última vez que o Festival da Eurovisão teve lugar na Ucrânia, Maria Tomak tinha estado em protesto na praça Maidan apenas cinco meses antes, aquando da chamada Revolução Laranja, em 2004. Na altura, Maria, uma jovem estudante de 17 anos cheia de reivindicações e de esperança, ainda tinha de pedir autorização aos pais para ir até à praça da Independência gritar palavras de ordem. Agora que a Eurovisão está de regresso a Kiev, não consegue deixar de reparar na coincidência de esta voltar a acontecer no rescaldo de outra revolução, a da Euromaidan, em 2014. Mas, desta vez, as cicatrizes que ficaram são muito mais profundas — tanto que o mais certo é acabarem por contaminar o próprio festival.
“Eu não faço parte daquele grupo da sociedade que ficou muito inspirado e depois muito desiludido. Isso aconteceu-me em 2004. Agora já não.” Sentada à mesa de um café em Kiev, Maria confessa assim o seu ceticismo, tão pouco característico dos jovens da sua geração. Já a decoração do local que escolheu para se encontrar com o Observador, um café com bancos corridos de madeira, candeeiros de inspiração industrial e bicicletas penduradas na parede, não destoaria de um café de jovens hipsters em Nova Iorque ou Berlim. “As pessoas sabiam que ia ser complicado, mas… Seria de esperar que, depois de se ter derramado todo este sangue, eles não conseguissem continuar com este nível de corrupção. E, no entanto, há quem continue a roubar dinheiro muito facilmente”, resume acidamente esta ativista. Aos 30 anos, Maria já trabalhou em várias ONG como a Euromaidan SOS ou a Iniciativa para os Media pelos Direitos Humanos, de onde teve direito a vista privilegiada para o funcionamento dos poderes nacionais.
O envolvimento de Maria no ativismo surgiu, por coincidência, pouco antes da revolução de 2014, quando trocou o jornalismo por um trabalho no Centro para as Liberdades Civis. “Foi o destino”, sentencia Maria, sorrindo, ao recordar esse tempo em que ainda não podia prever que dali a uns meses o seu futuro e o do seu país seriam alterados para sempre. Três anos depois, a Ucrânia tem ainda uma guerra ativa no leste do país, em Donbass, perdeu a Crimeia para a Rússia e enfrenta uma grave crise económica. Maria, por seu lado, conheceu de perto a situação dos presos políticos na Crimeia, esteve no terreno no “buraco negro que é Donbass” e trabalha todos os dias, fins de semana incluídos, monitorizando julgamentos e fazendo lóbi junto de alguns governantes.
A ativista recorda-se bem do primeiro dia dos protestos: “Estava na ópera com uma amiga a assistir a um concerto relacionado com o aniversário do Holodomor [a grande fome provocada na Ucrânia em 1932-1933] quando ela leu o post no Facebook do Mustafa Nayyem.” Nele, o jornalista de origem afegã apelava aos ucranianos para que ocupassem a praça Maidan em reação à decisão do Presidente Viktor Yanukovich de travar a assinatura do acordo de associação com a União Europeia — o que foi entendido por muitos como um afastamento da rota pró-europeia da Ucrânia em troca de uma reaproximação à Rússia de Vladimir Putin. “Fomos direitinhas para a Maidan”, recorda Maria. Chovia torrencialmente e as duas partilhavam um único chapéu de chuva, mas tal pouco importava. Estavam decididas.
Agora já não era preciso pedir autorização aos pais para ir à praça da Independência. Maria, que tinha 27 anos à altura, tornou-se presença assídua na Maidan nos meses seguintes, apesar das temperaturas negativas que se faziam sentir. E os seus pais, Svetlana e Anatoly, já não estavam tão assustados como em 2004 — desta vez estavam até esperançosos. Nascidos nos anos 60, estes donos de um pequeno stand de automóveis sentiam-se fartos dos subornos constantes que tinham de pagar, fartos da corrupção endémica que sobreviveu ao socialismo.
“Eles são um caso muito típico desta geração perdida. Cresceram na União Soviética e depois ela colapsou e eles perderam qualquer sentido na sua vida. Agora têm-no”, explica Maria, que atualmente vê nos pais rasgos de patriotismo inéditos, visíveis nas doações que fazem ao exército ucraniano, por exemplo. “A minha mãe, que fez convictamente parte da juventude comunista, chorou quando [o Presidente eleito depois da revolução] Petro Poroshenko tomou posse…. Não é que ela gostasse particularmente dele, mas era porque a sua tomada de posse simbolizava que a Ucrânia tinha conseguido eleger o seu próprio Presidente.” Para a jovem, os pais Svetlana e Anatoly, “típicos ucranianos na casa dos 50”, são um exemplo claro de como a situação política na Ucrânia afetou toda sociedade: “A revolução mudou-os. A Maidan fez dos meus pais cidadãos”.
“Uma Eurovisão híbrida”
É no meio deste clima de nacionalismo carregado que Kiev volta a ser palco de um festival da Eurovisão. Oficialmente, a organização do evento sublinha o seu caráter apolítico, descrevendo nas suas regras que “letras, discursos ou gestos de natureza política ou semelhante não serão permitidos durante o concurso”. O mesmo reforçam os produtores e organizadores ucranianos, sublinhando que “regras são regras” e que serão cumpridas.
Mas até o maior zelo por vezes não chega, como revela o produtor sueco Christer Björkman num encontro com jornalistas internacionais em Kiev, onde o Observador esteve presente. “Tentamos ter muito cuidado, evitando quaisquer símbolos para lá das bandeiras. O problema é que às vezes não sabemos interpretar determinados símbolos nacionais…”, confessa. “E depois temos países que não gostam de determinadas cores, por exemplo, por que as associam a coisas negativas. É terreno minado, sem dúvida.”
Ainda antes de o festival acontecer, já a política tinha entrado de rompante nesta edição. Primeiro, a organização ucraniana teve de recusar a data inicialmente avançada para a final, 18 de maio, por coincidir com o dia em que se assinala na Ucrânia a deportação em massa dos tártaros da Crimeia, ordenada por Josef Estaline. É precisamente a essa deportação que se refere a música vencedora da edição do ano passado, “1944”, cantada por Jamala.
“Quando estranhos vêm
Entram na tua casa
Matam-nos a todos
E dizem
Não somos culpados”
Assim cantou Jamala, referindo-se aos russos de 1944. Ou seria antes aos russos de 2014? “Estou desiludido porque este ano o vencedor foi uma marcha fúnebre sobre genocídio e que é também uma estalada na cara da Rússia. Este concurso não deveria ser uma plataforma política”, declarou à altura o apresentador histórico do festival no Reino Unido, John Kennedy O’Connor. A União Europeia de Radiodifusão (EBU, no original), organizadora do festival, optou por desvalorizar tais críticas, dizendo que a letra da canção é “histórica” e não “política”.
Chegados a 2017, com um festival prestes a decorrer em Kiev, a retaliação russa não se fez esperar. A escolha de Yulia Samoylova como candidata pela Federação Russa teria tudo para dar nas vistas, a começar pelo facto de a cantora se deslocar numa cadeira de rodas, fruto de um problema de saúde surgido na infância. Mas o detalhe verdadeiramente importante é o seu apoio à anexação da Crimeia pela Rússia (oficializada por um referendo pouco consensual a nível internacional), local onde já deu alguns concertos.
A Ucrânia reagiu com rapidez e proibiu a entrada de Samoylova no país, alegando que esta não cumpriu as regras de entrada na península, ao voar diretamente da Rússia para lá, em vez de entrar pela fronteira ucraniana, como exige a lei local. O caso torna-se bicudo: a Rússia sente-se indignada e recusa a alternativa proposta pela EBU de Samoylova cantar a partir de Moscovo, retirando-se da competição; quanto a Kiev, diz ser vítima de uma campanha orquestrada pelos russos para parecer insensível aos direitos das pessoas com deficiência.
“Esta situação é o exemplo perfeito da relação entre a Ucrânia e a Rússia neste momento”, declara a vice-ministra da Informação ucraniana Emine Jeppar ao mesmo grupo de jornalistas do qual o Observador faz parte. “Cortámos este cordão umbilical que tínhamos com a Rússia em 2014. Agora há uma ocupação e uma guerra e não podemos enterrar a cabeça na areia, mas é óbvio que, como parceiros da EBU que somos, vamos respeitar as suas regras.” O que não significa, é claro, que as autoridades ucranianas não aproveitem todas as oportunidades possíveis para falar sobre a situação na Crimeia, bem como da guerra em Donetsk e Lugansk.
Oficialmente, a guerra em Donbass é levada a cabo por milícias pró-independência ucranianas, que contam apenas com algum apoio de voluntários russos. Mas para o Governo ucraniano (e para algumas organizações como a OSCE e o Conselho da Europa) a intervenção do Kremlin é direta, dando origem à famosa expressão “guerra híbrida”, pelo grau de envolvimento pouco claro da Rússia. De uma forma ou de outra, certo é que Moscovo representa os rebeldes na mesa das negociações, ajudando assim a explicar a tensão que se vive entre os dois países. “Os jornalistas estão cá e não podemos impedir as pessoas de fazerem perguntas…”, resume a vice-ministra. “Para uma guerra híbrida, uma Eurovisão híbrida.”
“Híbrida” também pode ser a palavra usada para descrever a participação ucraniana deste ano. É certo que a canção “Time”, dos O.Torvald, não aborda tão explicitamente episódios históricos da relação entre os dois países como a de Jamala, mas a imagética escolhida parece não ignorar que há uma guerra a decorrer no leste do país: em palco, cinco homens com roupas rasgadas tocam os seus instrumentos, em cima de pequenos montes de sucata, terminando a sua atuação num palco em chamas. Pelo meio, o vocalista Yevhen Halych canta:
“Baixe-se
O volume do vosso choro
Vamos arranjar tempo para encontrar
Um local sem violência”
Halych, um tenente na reserva que se define como “um tipo simples” que gosta de tocar música rock, já pediu encarecidamente aos ucranianos que não façam do seu grupo “heróis nacionais” e reforça que a letra da sua canção — a primeira que escreveu em inglês e não em ucraniano — se refere apenas ao tempo e em como devemos aproveitá-lo. No entanto, não deixa de fazer algumas considerações políticas: assume-se como “um patriota”, sublinha a necessidade de se respeitar o ucraniano como língua nacional do país (muito embora tenha crescido a falar russo em casa) e em março não teve pejo em considerar a participante russa um “soldado” numa “guerra da informação”. Quanto à atuação que aí vem, Halych garantiu em entrevista à revista ucraniana Znaj que “não será política” e que se concentrará mais nas “questões sociais”.
Certo é que não é a primeira vez que a EBU se vê a braços com questões geopolíticas no seu Festival, nem sequer é a primeira vez que estas questões envolvem a Rússia de Putin — basta relembrar o episódio de 2009, quando a Geórgia optou por se retirar do concurso depois de a sua música “We Don’t Wanna Put In” (se não percebeu o trocadilho, experimente ler em voz alta) ter sido chumbada pelo seu caráter político, na sequência da invasão da Geórgia pelo Kremlin em 2008.
Para além disso, a frase que se ouve pelos cafés de que “eles votam todos nos vizinhos” pode bem ser verdade: uma análise feita pelo jornal “Telegraph”, que teve em conta os vários estudos que já se fizeram sobre o tema, revela algumas tendências que perduram no tempo. É o caso dos votos do Chipre na Grécia e vice-versa, o apoio entre os vários países dos Balcãs, a entreajuda dos escandinavos ou até a forma como os antigos países soviéticos poucas vezes dão o seu voto aos ocidentais. Também Portugal quase não conseguia livrar-se das questões políticas na Eurovisão: para além das fracas pontuações recebidas (quiçá por falta de aliados geoestratégicos), teve a sua participação de 2011 à beira de ser chumbada pelo caráter possivelmente político da letra, livrando-se por uma unha negra da proibição de participar — a canção era nada mais nada menos do que “A Luta é Alegria”, dos Homens da Luta. Este ano, Portugal está representado por Salvador Sobral, com uma canção totalmente apolítica, “Amar pelos Dois”.
https://www.youtube.com/watch?v=t3EMUJCn3iI
Este ano, Portugal está representado por Salvador Sobral, com uma canção totalmente apolítica, “Amar pelos Dois”.
Kiev como cidade moderna e… “europeia”
As trincheiras de Donbass, no entanto, estão bem longe de Kiev. Na capital, ultimam-se os preparativos numa arena com capacidade para oito mil pessoas, o Centro de Exposição Internacional, que receberá gente em duas meias-finais e numa final, a 9, 11 e 13 de maio. A organização esforça-se para projetar a imagem de um país moderno e seguro e de uma capital igual às europeias, onde não há Starbucks mas também se bebe café em copos de plástico com tampa.
Muitos dos jovens de Kiev assentam que nem uma luva nessa imagem. Aguerridamente pró-europeus, muito mais qualificados do que os seus pais, distinguem-se em áreas como as tecnologias de informação e adotam com naturalidade termos como start-up ou co-working. É assim também na iZone, pertencente ao grupo Izolyatsia, uma auto-intitulada “comunidade criativa”. Fundada em Donetsk, numa antiga fábrica onde o grupo pretendia dinamizar atividades culturais, acabaria por deslocar-se para a capital depois de ser expulsa por forças separatistas. Encontrou refúgio na capital, num edifício perto de um estaleiro, escondida pelas grades de aço das instalações industriais.
Esta história é contada por Aleksandra Kravchenko, membro do coletivo que faz de cicerone pelo edifício de vários andares. Subindo os degraus cinzentos, as únicas cores que saltam à vista no prédio industrial vêm das obras de fotografia expostas nas paredes e do vistoso casaco castanho, a imitar a pele de um animal, trazido pela anfitriã. Se a ativista Maria Tomak primava pelo estilo discreto, já Aleksandra não parece ter medo de dar nas vistas — as duas raparigas são como faces de uma mesma moeda, a da juventude de uma cidade em transformação.
Para além das exposições, a Izolyatsia também proporciona residências artísticas e organiza várias festas, como as Drink and Draw onde é possível desenhar enquanto se bebe. Mas a menina dos olhos da iZone é claramente o espaço de co-working, onde não faltam secretárias espaçosas em madeira reciclada, puffs e sofás confortáveis, uma cafeteira sempre cheia e uma televisão sintonizada baixinho na Euronews. “Está tudo a mudar e não é só em Kiev”, assegura Aleksandra, sublinhando que espaços como este são cada vez mais populares e que há cada vez mais jovens empresários no país.
“A situação aqui é totalmente imprevisível, não é possível fazer grandes planos, mas isso também nos traz muitas oportunidades. Há nichos que não estão ocupados e há muita procura por produtos relacionados com o estilo de vida”, diz, num inglês impecável com vocabulário à Silicon Valley. Quantos a problemas, acaba por admitir que existem e que se relacionam sobretudo com a crise económica e com a dificuldade em arranjar financiamento. “Desde o colapso da União Soviética, nunca ninguém fez nada para ajudar a classe média na Ucrânia”, sentencia. “Mas com ou sem Maidan… A situação está a mudar. Não quero dizer que mudou tudo como por magia depois disso, mas que houve mudanças, houve.”
O soft power como estratégia
É esta imagem que as autoridades ucranianas querem desesperadamente projetar para o resto da Europa e vêem na Eurovisão o trampolim perfeito para fazê-lo, a par de um reforço da identidade nacional ucraniana. Não é por acaso que o símbolo escolhido para representar esta edição do festival é um namysto, um colar de contas vermelho, típico do folclore nacional. Também não será por acaso que o cenário no Centro de Exposição Internacional tem o rio Dnipro, que corta o país entre leste e oeste, a coroar o palco. E também não deverá ter sido por sorte que Jamala, a vencedora do ano passado que cantou sobre a Crimeia, vai subir ao palco em dois dos três dias do festival.
“As regras da EBU são muito claras: não pode haver ideias políticas”, relembra, desta vez, Victorya Sidorenko, responsável pela comunicação do festival no país. “Vamos concentrar-nos nos factos e menos na interpretação dos factos”, reforça Pavlo Hrytsak, produtor executivo. A transmissão de qualquer mensagem terá por isso de ser feita a “um nível de soft power”, acaba por admitir Sidorenko ao Observador. “Penso que muitos ucranianos irão sentir este festival como um símbolo, ter o programa mais visto na Europa a acontecer na Ucrânia… Outros encará-lo-ão apenas como um escape”, resume Hrytsak na mesma conversa.
Muitos ucranianos, no entanto, poderão nem sequer ligar a televisão para assistir ao festival. “As pessoas estão contentes pelo facto de a Eurovisão ser na Ucrânia, mas não pensam muito sobre isso. Na situação atual, pensam mais em sobreviver. Ou então pensam na guerra. Certamente que não se sente o espírito da Eurovisão em Donbass…”, declara Maria Tomak, a ativista de Kiev. O dia a dia pesa sobre os ombros de todos e é difícil escapar às dificuldades de viver num país em crise: “Pessoalmente, sinto-me esgotada. Mas tenho um sentido de responsabilidade e sinto que não tenho escolha: se não for eu a ajudar as famílias dos presos políticos, quem é que o fará?”.
A ativista não tem, por isso, grande ânimo para assistir a um espetáculo musical, recheado de brilhos, coreografias e sofisticados efeitos visuais. Maria, tão diferente de Aleksandra e de outros jovens da sua geração, não gosta particularmente de música pop e não é fã do festival. No entanto, não deixa de lembrar que houve um ano em que a Eurovisão lhe apelou ao coração: “É claro que apoiei a Jamala no ano passado. Afinal de contas, a canção dela era essencialmente um gesto político”, admite.
Este ano, a música dos O.Torvald é talvez mais diplomática, mas o tom negro da atuação condiz mais com o ambiente pesado de um país em guerra. E a letra da canção, algo tão relevante quando se fala de leituras políticas, presta-se a várias interpretações:
“É tempo de encontrar a verdade
Tempo contra as mentiras
O tempo dar-nos-á um sinal
Posso fazer uma promessa
É o nosso momento para brilhar”
Para alguns bons entendedores, estas meias palavras bastam.
*O Observador viajou a convite do Ukranian Crisis Media Center.