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Salvador Fezas Vital é o último administrador do Banco Privado Português (BPP) que ainda não cumpriu pena de prisão — o que deverá acontecer nos próximos dias após a decisão da última quinta-feira do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) relativa ao trânsito em julgado do chamado Caso do Embaixador — está em causa uma pena de dois anos e seis meses pelo crime de burla qualificada, por ter prejudicado um cliente do banco. Mas Fezas Vitas tem pendente uma segunda pena de prisão efetiva (de nove anos e seis meses) relativa ao desvio de cerca de 28 milhões de euros do BPP que ainda não transitou em julgado no Tribunal Constitucional (TC) devido a manobras dilatórias da sua defesa. E a sua defesa começou a invocar vários problemas de saúde para tentar evitar a sua detenção.
A juíza Tânia Loureiro, titular desse processo na primeira instância, já solicitou ao Constitucional que invoque o artigo 670.º do Código de Processo Civil (que pretende combater essas manobras dilatórias e já foi utilizado pelo STJ para ordenar de “imediato” a execução da pena no Caso do Embaixador). Fonte oficial do TC confirmou que essa decisão ainda não foi tomada.
Um dos três crimes pelos quais Salvador Fezas Vital foi condenado nesse processo — por se ter apropriado de cerca de 7,7 milhões de euros — corre sério risco de prescrição , algo que se deverá concretizar em dezembro. A defesa do ex-administrador do BPP, a cargo da advogada Sofia Caldeira, ao mesmo tempo que garante que o seu cliente se apresentará para cumprir qualquer pena de prisão efetiva, invoca esses vários problemas de saúde para evitar que Fezas Vital seja detido.
A juíza Tânia Loureiro, magistrada que viu João Rendeiro fugir em setembro de 2021 quando ia reforçar-lhe as medidas de coação (Rendeiro foi detido e morreu quando já estava preso numa prisão da África do Sul a 13 de maio de 2022), não valorou tais argumentos de saúde. No passado dia 30 de outubro alterou mesmo as medidas de coação de Fezas Vital — que passou a ter de se apresentar quatro vezes por semana na esquadra da PSP de Oeiras, a mais próxima da sua residência, para tentar evitar assim qualquer tipo de fuga.
O Caso dos Prémios e o perigo de prescrição do crime de fraude fiscal
O chamado Caso dos Prémios, processo pelo qual João Rendeiro fugiu de Portugal, consiste no desvio de cerca de 28 milhões de euros dos cofres dos BPP. Segundo a condenação da primeira instância confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo STJ, está em causa uma auto-atribuição de prémios de performance.
A administração liderada por João Rendeiro e composta por Salvador Fezas Vital, Paulo Guichard e Fernando Lima aprovaram em reunião formal a atribuição a si próprios dos seguintes prémios relativos ao período 2005 a 2008:
- João Rendeiro — 13,613 milhões de euros
- Salvador Fezas Vital — 7,770 milhões de euros
- Paulo Guichard — 7,703 milhões de euros
- Fernando Lima — 2,193 milhões de euros
Estes autos tiveram uma condenação em primeira instância a 14 de maio de 2021, na qual João Rendeiro foi condenado a uma pena de prisão efetiva de 10 anos, enquanto que Salvador Fezas Vital e Paulo Guichard tiveram exatamente a mesma pena: nove anos e seis meses pelos crimes de abuso de confiança qualificado, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Fernando Lima foi condenado a seis anos de prisão efetiva pelos mesmos crimes.
A Relação de Lisboa confirmou a decisão na íntegra num acórdão com a data de 23 de fevereiro de 2022 e o mesmo aconteceu com o STJ numa decisão conhecida a 19 de dezembro de 2023. Paulo Gichard e Fernando Lima já estão a cumprir as penas de prisão a que foram condenados.
Fezas Vital, contudo, não desistiu e recorreu para o Tribunal Constitucional (TC). O conselheiro Afonso Patrão rejeitou a 3 de junho de 2024 apreciar o recurso por falta de fundamento e, após reclamação da defesa, a conferência da 3.ª Secção do TC rejeitou também a mesma a 25 de setembro último.
A advogada Sofia Caldeira está agora a fazer uma última tentativa. Arguiu uma nulidade da decisão da conferência da 3.ª Secção, mas deixou passar o prazo para apresentar as respetivas guias de pagamento da multa por ter apresentado o requerimento após o final do prazo. Foi notificada dessa falta pela secretaria do Tribunal Constitucional e apresentou mais tarde os respetivos comprovativos de pagamento. Dessa forma, a conseguiu ‘queimar’ mais uns dias na tramitação processual, além de impedir o trânsito em julgado da decisão sumária de junho.
Quase 15 anos depois da queda do BPP, dois ex-administradores estão à beira de serem presos
Fezas Vital está assim a arguir uma nulidade da decisão que indeferiu uma reclamação sobre um acórdão sumário que recusou apreciar um recurso interposto pela sua defesa. Interpôs assim um recurso e dois incidentes processuais apresentados sobre a mesma matéria.
Ao que o Observador apurou, o crime de fraude fiscal relativo aos prémios distribuídos entre 2005 e 2008 deverá prescrever no próximo mês de dezembro. A verificar-se essa prescrição, isso abriria caminho para um novo cúmulo jurídico da pena de nove anos e seis meses aplicada em maio de 2021 pela primeira instância e, mais importante do que tudo, abriria caminho a uma nova estrada de recursos para os tribunais superiores. Daí esta estratégia da defesa de usar tais manobras dilatórias.
Tribunal Constitucional diz que processos com risco de prescrição parcial são “urgentes”
Questionada pelo Observador, fonte oficial do Constitucional confirma a arguição da nulidade por parte da defesa, assim como o facto do respetivo “requerimento” ter “dado entrada no primeiro dia útil após o termo do prazo regular”. O que fez com que a secretaria do TC tivesse enviado a “guia para pagamento da multa”. Tal pagamento “foi entretanto efetuado, tendo o respetivo comprovativo dado entrada em 29-10-2024.”
Enquanto ainda decorrem as notificações para que as outras partes se pronunciem no prazo de 10 dias (a contar de 31 de outubro), o Observador questionou o Constitucional sobre se o conselheiro relator Afonso Patrão ou a 3.ª Secção do TC já tinham decidido invocar o art. 670.º do Código de Processo Civil contra as manobras dilatórias — como fez o STJ no caso do Processo do Embaixador.
A aplicação do artigo 670.º do Código de Processo Civil implica, como aconteceu na última quinta-feira no Caso do Embaixador por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que os incidentes dilatórios sejam alvo de certidão para um traslado (processo à parte), descendo de imediato os autos principais para a primeira instância com nota de trânsito em julgado para execução da pena. Dessa forma, também se evitaria qualquer problema prescricional com o crime de fraude fiscal.
“Até à presente data não foi determinado que se procedesse nos termos do disposto no artigo 670.º do Código de Processo Civil”, respondeu fonte oficial do TC.
A mesma fonte fez questão de salientar contudo que “os processos em risco de prescrição”, como é o Caso dos Prémios do BPP, “têm tramitação urgente.”
Juíza impôs apresentações periódicas quatro dias por semana
O Observador colocou estas questões ao TC porque sabe que a juíza Tânia Loureiro, titular dos autos do Processo dos Prémios na primeira instância, enviou um ofício para o Constitucional sobre esta matéria nos últimos dias.
Tendo em conta que já passaram “mais de três anos” sobre o acórdão condenatório “em primeira instância, confirmado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça”, a juíza Tânia Loureiro decidiu por despacho de 24 de outubro solicitar diretamente ao conselheiro relator titular dos autos no Constitucional [Afonso Patrão] “informação urgente quanto à aplicabilidade” aos incidentes processuais do “disposto no artigo 670.º do Código de Processo Civil” relativo às manobras dilatórias, lê-se no despacho a que o Observador teve acesso.
Enquanto aguarda uma resposta formal do TC, a juíza Tânia Loureiro decidiu agravar as medidas de coação de Salvador Fezas Vital no passado dia 30 de outubro, tendo decidido obrigar o arguido a apresentar-se quatro vezes por semana (todas as segundas-feiras, quartas, sextas e domingos) na esquadra da PSP de Oeiras, a mais próxima da sua residência.
A medida visa atenuar o perigo de fuga do arguido — além do termo de identidade e residência, Fezas Vital já estava proibido de ausentar-se do país e ficou sem o seu passaporte logo em 2021.
Defesa invoca questões de saúde e diz que arguido “irá apresentar-se” para cumprir pena
Quando foi notificada para apresentar-se no Juízo Central Criminal de Lisboa para a audiência de reavaliação das medidas de coação, a advogada Sofia Caldeira decidiu apresentar um extenso requerimento a expor a colaboração que Fezas Vital sempre teve com a administração da Justiça desde o início do caso BPP. Requerimento esse que, refira-se, não impediu a juíza Tânia Loureiro de agravar as medidas de coação.
Contudo, a parte mais importante do requerimento diz respeito às inúmeras questões de saúde que a defesa invoca perante a juíza Tânia Loureiro — e que deverá repetir quando chegar o momento da execução das duas penas de prisão efetivas pendentes.
Sofia Caldeira começa por garantir que “formando-se caso julgado sobre qualquer pena, o arguido irá apresentar-se para o cumprimento da mesma”, lê-se no requerimento a que o Observador teve acesso.
Contudo, a advogada faz questão de salientar logo de seguida que o “arguido tem já 67 anos e o seu estado de saúde tem vindo a degradar-se de forma galopante ao longo dos últimos anos”. E elenca um vasto conjunto de questões de saúde.
- O arguido sofre de perturbação depressiva grave desde há pelo menos nove anos;
- Perdeu cerca de 14 quilos;
- Retirou sinais da face que se vieram a revelar cancerígenos;
- Logo, está fortemente medicado ao longo do dia.
A advogada defende igualmente, com base em relatórios neurológicos subscritos por um médico particular, que Fezas Vital apresenta “alterações acentuadas da atenção na compreensão audio-verbal” que provocam “memória episódica” e problemas na “aprendizagem com perda de informação a curto prazo ou a longo termo” e da “iniciativa verbal semântica”. O arguido tem ainda “alterações acentuadas da memória visual diferida”.
Em parte alguma do requerimento é citado qualquer diagnóstico de uma doença neurológica, simplesmente a descrição acima referida reforça a “sintomotalogia depressiva”, na ótica do médico psiquiatra que acompanha o arguido.
Apesar de nada ter a ver com o Processo dos Prémios, mas sim com o Processo do Embaixador, a advogada Sofia Caldeira salienta ainda que “o arguido celebrou com o ofendido” Júlio Mascarenhas [o cliente do banco lesado] “acordo para indemnizar o mesmo.” Tudo para dizer que a “atitude do arguido mostra-se dificilmente conciliável com a de alguém que pretendesse eximir-se ao cumprimento da pena (neste ou naquele processo)”.
Na ótica da sua defesa, esse acordo firmado com o embaixador Mascarenhas constitui um “facto notório que a indemnização ao lesado constituirá, em qualquer caso, uma circunstância favorável a ponderar em sede de execução de pena e de eventual cúmulo jurídico”.
Tendo o STJ ordenado a baixa dos autos para imediata execução de pena de dois anos e seis meses, fica claro que a defesa de Fezas Vital vai usar estes argumentos para tentar evitar a prisão do ex-gestor do BPP.
Seja como for, há uma forte possibilidade das duas penas de prisão efetivas transitarem em julgado com um intervalo reduzido. Se tal acontecer, terá de ser apurado um novo cúmulo jurídico que junte ambas. Mas provavelmente tal cúmulo só deverá ser apurado com Fezas Vital detido num estabelecimento prisional.
O BPP foi intervencionado em dezembro de 2008. Era um pequeno banco de gestão de fortunas e foi o primeiro banco português ‘a cair’ na sequência da crise do Lehman Brothers nos Estados Unidos. Quase 16 anos depois, os dois últimos processos estão prestes a ficar concluídos.
Quanto o STJ decidiu em dezembro de 2023 o recurso de Fezas Vital e de Paulo Guichard no Caso dos Prémios sobre a pena a que tinham condenados em primeira instância pelos crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificada e branqueamento de capitais, o conselheiro relator Ernesto Vaz Pereira fez questão de escrever que os quatro arguidos (João Rendeiro, Fezas Vital, Paulo Guichard e Fernando Lima) agiram:
- “com dolo direto, daí que intenso”;
- “em regime de “co-autoria, programada e antecipadamente”;
- “em “conjugação de vontades e de esforços”;
- e “em propósito de incomensurável ganância sem limite ou rédea”;
- Tanto mais grave quanto” faziam “parte da estrutura decisória de um banco que, dada a sua pequena dimensão, permitia um total controle de todos os movimentos e operações”, lê-se no acórdão.