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Acabou nesta quinta-feira, oficialmente, a era dos juros negativos na zona euro. Pela primeira vez em 11 anos, o BCE subiu as taxas de juro e fê-lo com maior intensidade do que tinha indicado previamente – deixando, também, a porta escancarada a novos aumentos de juros nas próximas reuniões (a próxima será em setembro). Que impactos é que este aperto da política monetária terá para as famílias e para as empresas? E será que irá, mesmo, ajudar a fazer descer a inflação?

Por outro lado, como reconheceu a própria Christine Lagarde, esta subida mais rápida dos juros – em 50 pontos-base, e não apenas 25 – foi uma moeda de troca para se poder dizer que o BCE decidiu – de forma unânime – criar um “novo instrumento” para travar a especulação negativa sobre os juros da dívida de países como Itália (e, por arrasto, Portugal e Espanha). Será esse novo instrumento capaz de evitar uma nova crise da dívida?

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BCE confirmou subida dos juros (e em dose redobrada). Isso vai mesmo ser eficaz na luta contra a inflação?

O BCE, à semelhança de outros bancos centrais mundiais, sempre disse que a inflação teve origem nos preços da energia e nos problemas nas cadeias de abastecimento globais – ou seja, “choques externos” sobre os quais o nível de taxa de juro tem, em teoria, pouca ou nenhuma influência. Entretanto, Christine Lagarde já veio reconhecer que nos últimos meses a inflação se alastrou a outros setores da economia, mas será que subir as taxas de juro será eficaz no combate à inflação, nestas circunstâncias?

Todos sabemos que a subida da taxa de juro não vai ser suficiente para baixar a inflação no curto prazo“, afirmam os analistas do banco holandês ING, em nota de reação às decisões do BCE. Os analistas explicam que, naturalmente, o nível de taxa de juro na zona euro importa pouco para os problemas originais (preços da energia e dificuldades nas cadeias de abastecimento) “mas os juros mais elevados não devem, sequer, afetar a procura na economia interna“.

Ou seja, os analistas do ING acham que não é por causa deste aumento das taxas de juro do BCE que as famílias e as empresas vão pedir menos crédito – “muito mais relevante, no que diz respeito à reação das empresas e famílias, será se a zona euro cai mesmo numa recessão”. E, aí, Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros, ficou ainda menos otimista: subir os juros agora “é abrir uma caixa de Pandora” e pode tornar um dado adquirido que iremos ter uma recessão económica:

Curiosamente, parece-me que não corremos demasiados riscos de a inflação continuar muito elevada em 2023, a não ser que os salários subam muito e a energia fique ainda mais cara. Isto porque é bem provável um cenário de recessão que implique moderação nos preços. Ou seja, esta subida dos juros pode muito bem ‘selar’ o início da recessão”, diz Filipe Garcia.

Então porquê a decisão de subir as taxas de juro de forma ainda mais intensa do que se previa? Os analistas do ING dizem que “esta subida, bem como as próximas que venham a acontecer, tem como objetivo ajustar as expectativas de inflação [no médio prazo] e melhorar a credibilidade do BCE como um banco central que luta contra a inflação, que saiu um pouco beliscada” por alguma hesitação que marcou os últimos meses.

A nova ferramenta – o TPI – vai ser suficientemente para evitar uma nova crise da dívida?

Confirmou-se que Lagarde aceitou uma subida mais rápida das taxas de referência – de 50 e não 25 pontos – a troco de poder anunciar que, com “unanimidade”, o Conselho do BCE criou um novo programa de intervenção nos mercados de dívida batizado como Instrumento de Proteção da Transmissão (TPI, na sigla original). Mas a reação dos mercados financeiros mostrou que os investidores reagiram com algum ceticismo àquilo que foi anunciado acerca deste programa –  não só alguma ausência de detalhes mas, sobretudo, dúvidas sobre se terá condições para socorrer Itália, que é o país para onde todas as atenções estão viradas.

“Ao dizer que o volume de compras não tem limites pré-determinados, o BCE coloca a fasquia alta quanto ao seu potencial envolvimento nesta nova ferramenta”, afirma Filipe Garcia, acrescentando que “é, de alguma forma, uma outra forma de dizer ‘whatever it takes‘ [faremos tudo o que for necessário] e, por isso, poderá vir a ser uma ferramenta robusta… ou ser apenas uma vaga promessa”.

O problema, diz o economista, é que “mais uma vez não há detalhes sobre o TPI: montantes, maturidades, limites, comunicação, esterilização [drenagem da liquidez injetada], etc”. “O problema maior do TPI é decidir quando é que a diferença dos custos de financiamento justificam ativar o programa”, explica Filipe Garcia, argumentando que, “sem uma política clara, fica sujeito à visão política do momento, o que poderá ser visto pelos países dito frugais como uma promessa de mutualização da dívida”.

O que também não traz grande sossego é que se percebeu que existem condições para o acesso ao TPI e essas condições incluem “critérios indicativos que convergem todos para a noção de disciplina fiscal e equilíbrio macroeconómico“, nota Franck Dixmier, diretor global de Investimentos em Obrigações da Allianz Global Investors (AllianzGI). “Sem dúvida que isso é uma promessa aos [chamados] falcões do BCE [os governadores mais avessos a estímulos monetários], mas que enfraquece o alcance final desta bazuca”, afirma o especialista, antevendo que “a volatilidade deve continuar nos spreads“, ou seja, nos prémios de risco exigidos pelos investidores para comprarem dívida dos países mais endividados.

Além disso, com Itália em plena crise política e eleições que devem acontecer só em setembro, há muitas dúvidas sobre se o novo governo que irá sair dessas eleições irá dar suficientes garantias de política económica e orçamental vista como “adequada” pelas autoridades europeias.

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Com o BCE a subir as taxas de juro, pode sentir-se um impacto nos preços das casas?

A pandemia não levou a uma correção negativa nos preços das casas – muito pelo contrário. Mas tem-se especulado que, agora sim, com a subida das taxas de juro, o imobiliário poderá, finalmente, ressentir-se. A conclusão dos especialistas ouvidos pelo Observador em junho não pareceram acreditar muito nesse risco, mas até que ponto é que esta subida das taxas de juro – mais rápida do que o previsto – pode levar a um cenário mais negativo?

“Aflitinhos” com a subida dos juros. É desta que os preços das casas vão cair?

O impacto “poderá nunca se sentir, se a inflação continuar a subir via aumento dos preços da energia”, diz Mário Martins, analista da ActivTrades, em reação partilhada com o Observador. “O preço das casas pode até subir“, admite o analista.

Por outro lado, Filipe Garcia, da IMF, começa por lembrar que, “em rigor, as taxas de juro que pesam sobre o crédito à habitação já começaram a subir no início do ano, embora permaneçam historicamente baixas”. É certo que, “até agora, não se tem sentido impacto negativo nos preços do imobiliário, pelo contrário – no entanto, juros mais altos poderão implicar uma moderação dos preços“. Porém, na opinião deste economista, mais do que o impacto (direto) da subida dos juros, “o maior impacto poderá vir da recessão económica que se avizinha”.

O acesso ao crédito à habitação vai ficar mais difícil?

O BCE parece estar disponível para aumentar as taxas de juro de forma mais rápida do que se previa, mas a trajetória geral (de subida dos juros, mais ou menos rapidamente) já tem vindo a ser bem sinalizada pelos bancos centrais. Isso fez com que os bancos já tenham vindo a incorporar essas expectativas – daí que os principais indexantes de crédito a taxa variável (as Euribor) já tenham saltado para níveis acima de zero, nos últimos meses.

Mário Martins, analista da ActivTrades, lembra que “o Banco de Portugal nas medidas macroprudenciais que tomou [por exemplo, em 2018] considera como limites relevantes para avaliação da capacidade de endividamento o LVT e o DSTI [ou seja, o montante do financiamento face ao valor do imóvel e, basicamente, a taxa de esforço] – e o cálculo do DSTI [a taxa de esforço face ao rendimento] é feito simulando uma subida de 2% nas taxas de juro”. Assim, assumindo que “os consumidores e os bancos seguiram as orientações do Banco de Portugal, em princípio nada mudará”, pelo menos “por enquanto“.

Já Filipe Garcia lembra que “os dados mais recentes mostram que os critérios de concessão de crédito se têm tornado mais exigentes em toda a zona euro, incluindo no imobiliário. No entanto, em Portugal, parece continuar a haver apetite dos bancos por estas operações, pelo que não espero muitas alterações este ano”. O economista salienta, porém: “Claro que se as prestações a pagar forem mais altas (e estão a ser e vão ser) isso afastará alguns potenciais mutuários de contratarem novas operações”.

Espero mais dificuldades no acesso ao crédito pelo lado dos juros mais altos do que por decisão dos bancos“, resume o economista.

E para quem já tem crédito à habitação, custos vão subir mais rapidamente?

Apesar de ter havido notícias que apontavam nesse sentido (e que acabaram por ser certeiras), os mercados financeiros não estavam totalmente à espera que o BCE aumentasse as taxas de juro em 50 pontos-base – apesar de tudo, vários analistas anteviam que o banco central preferisse manter-se fiel ao guião que tinha transmitido anteriormente e subir apenas 25 pontos-base, mesmo que deixando claro que os juros iriam continuar a subir nas próximas reuniões.

Esta pequena surpresa vem acentuar a perceção de que vai haver uma subida relativamente mais rápida dos indexantes de crédito, embora ninguém esteja à espera que essa subida seja para níveis comparáveis aos de 2007, por exemplo. Ainda assim, para as famílias que estavam há vários anos habituadas a taxas de juro negativas, o impacto será “francamente negativo”, diz Mário Martins, da ActivTrades.

“Quase todos os contratos de hipoteca em Portugal estão indexados à Euribor [a 3, 6 ou 12 meses] com um spread adicional”, pelo que esta subida de 50 pontos-base da taxa de referência será repercutida de forma igual na Euribor”, diz o analista, admitindo “subidas efetivas das hipotecas superiores a um ponto percentual”, o que significará mais de 1.000 euros por ano numa hipoteca de 200.000 euros”.

Taxa de juro de referência sobe e a minha despesa mensal também?

E o crédito ao consumo vai tornar-se mais apertado?

“Aqui, sim, poderá haver uma diferença em novos créditos atribuídos”, afirma Mário Martins, da ActivTrades, em referência à facilidade com que se poderá aceder a crédito ao consumo. “A subida das taxas de juro visa, precisamente, diminuir o consumo a crédito“, diz o especialista – ou seja, é exatamente esse um dos efeitos que o BCE quer provocar quando aumenta o custo do endividamento.

Os economistas consideram provável que irá apertar, nos próximos tempos, o acesso ao crédito ao consumo – não apenas por um efeito de preço/custo mas, também, por via de alguma atitude mais conservadora que os bancos venham a assumir. “As instituições de crédito irão, provavelmente, ser mais cautelosas na concessão de crédito devido ao aumento de risco decorrente das prestações mais altas e, sobretudo, dos riscos de recessão”, resume Filipe Garcia.

Num relatório recente, o Banco de Portugal indicou que “a procura de empréstimos aumentou quer seja para compra de casa, para consumo ou outros fins“. Segundo a instituição liderada por Mário Centeno, “as perspetivas para o mercado da habitação e o nível geral das taxas de juro contribuíram ligeiramente para aumentar a procura de crédito à habitação e a despesa de consumo financiada através de empréstimos garantidos por ativos imobiliários contribuiu ligeiramente para aumentar a procura de crédito ao consumo e outros fins”. Ainda assim, pelo menos nas empresas os bancos já começaram a ser “mais restritivos”, devido à incerteza económica.

Para os bancos, são boas notícias as que o BCE anunciou?

Se Mário Martins considera que estas subidas da taxa de juro são “ótimas notícias” para os bancos – que “têm sido as principais vítimas das taxas zero durante os últimos 11 anos” –, Filipe Garcia tem uma visão um pouco diferente:

São notícias agridoces“, diz o economista da IMF. Por um lado, são notícias “positivas porque, essencialmente, deixam de ter de pagar por depositar junto do BCE e com juros mais altos é normalmente mais fácil aumentar a margem financeira”. “Mas, como esta subida de juros poderá agravar os riscos de recessão, isso será negativo para a banca“, acautela Filipe Garcia.

Para já, pelo menos a agência de rating Moody’s mostrou-se otimista em relação ao impacto destas decisões do BCE, para a banca – sobretudo para as instituições dos países do sul da Europa. “Antecipamos que os bancos em Espanha, Itália e Portugal obtenham maiores recompensas do que os seus pares do norte da Europa“, afirmou a agência de rating numa antecipação na quarta-feira, sublinhando que os bancos do sul têm uma proporção de empréstimos bancários com taxas de juro variável mais elevada e que, por isso, o efeito do aumento das taxas de juro do BCE nas receitas bancárias será maior e mais pronunciado.

Quando é que se pode esperar que a subida dos juros também chegue aos depósitos bancários?

O BCE aumentou todas as três principais taxas de juro em 50 pontos. Ou seja, a taxa de referência estava em zero e passou para 0,50% e a taxa de depósitos estava no nível negativo de -0,50% e passou para zero (e, ainda, a chamada taxa de desconto, menos relevante aqui, também aumentou em 50 pontos-base).

Isto significa que os bancos vão deixar de ter uma rendibilidade negativa cada vez que parqueiam excessos de liquidez no BCE – algo que aconteceu nos últimos anos, embora mais recentemente se tenham introduzido alguns elementos que atenuam o impacto negativo para os bancos. Sublinhe-se que, mesmo com as taxas de juro dos depósitos no banco central em níveis negativos, os bancos em Portugal sempre estiveram proibidos de repercutir essa taxa negativa nos clientes – ou seja, não puderam cobrar-lhes para receber os seus depósitos, pagando sempre rendibilidades muito baixas mas positivas.

Isso pode mudar, agora que a taxa de juro dos depósitos já saiu de “terreno” negativo? “Sem prejuízo de algumas campanhas comerciais, creio que as taxas de juro dos depósitos bancários apenas poderão subir quando tivermos a taxa de depósitos acima de 0%”, diz Filipe Garcia, economista da IMF. Ou seja, não será para já que deverá começar a ver os bancos a oferecer rendibilidades mais generosas.

Porém, Mário Martins diz que saber se os depósitos passam a render mais ou não “vai depender dos prazos de maturidade”: “quanto mais curto ou mais perto do vencimento estiver uma aplicação mais rápido será” a adaptação que o mercado irá fazer. Sublinhe-se que embora a taxa dos depósitos do BCE tenha passado de -0,50% para 0%, o banco central deu a entender que é provável que as taxas de juro continuem a subir nas próximas reuniões de política monetária – ou seja, o efeito sobre os juros dos depósitos da banca poderá sentir-se mais a partir do outono.

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E aos produtos de aforro, como os do Estado?

Mais imediato poderá ser o impacto sobre os produtos de aforro como aqueles que o Estado disponibiliza – aí não existe o efeito da concorrência, porque se trata do Estado, mas ainda assim o próprio Estado tem em conta as taxas praticadas pelos depósitos da banca comercial. Além disso, alguns produtos irão ter um ajuste automático porque estão indexados às Euribor.

“No caso dos certificados de aforro, as taxas deverão acompanhar os movimentos de mercado”, salienta Filipe Garcia, sendo complementado por Mário Martins quando este diz que os “títulos de dívida serão afetados conforme novas colocações no mercado sejam feitas com taxas mais elevadas de financiamento”. Porém, salienta Filipe Garcia, “para os certificados do Tesouro, começa a ser pertinente uma alteração das condições (em alta) porque até ao final do ano passado, os certificados pagavam melhor do que as obrigações do Tesouro [aos quais apenas investidores qualificados têm acesso] e agora já acontece claramente o contrário”.

É bom para o meu PPR? E para os meus investimentos na bolsa?

Mário Martins, da ActivTrades, afirma que “a componente de depósitos a prazo dos PPR é relativamente reduzida”, pelo que isto “terá um efeito positivo mas normalmente pouco sensível”. Por outro lado, nos “investimentos em bolsa o resultado será dependente do arrefecimento económico causado por esta subida das taxas” e, aí, é mais difícil fazer previsões.

“No curto prazo o mercado já descontou uma recessão e por isso não deverá haver um efeito sensível”, acredita Mário Martins. Porém, a primeira reação das bolsas ao plano apresentado por Christine Lagarde não foi positiva – agravando as quedas que as bolsas acumulam este ano, depois de um 2021 fulgurante (por exemplo, o índice EuroStoxx 50 subiu 21% em 2021 mas este ano acumula uma perda de 17%).

A retirada dos estímulos monetários tende a ser um fator negativo para as bolsas, sobretudo se assumirmos que estes mesmos estímulos foram um fator determinante para as subidas que existiram. Porém, tendo em conta que já houve uma correção nos índices bolsistas há especialistas que acreditam que, sobretudo se houver uma recessão e os bancos centrais não forem tão agressivos quanto temido no aperto da política monetária, há espaço para uma recuperação. Mas isso só acontecerá, porém, se a inflação der sinais de estar mais controlada.

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