(5,8 mil milhões foi o valor de estreia em bolsa da Farfetch. Após o início da negociação, porém, a ação deu um “salto” e esteve a valer mais de oito mil milhões de dólares)
A Farfetch, dona do maior portal mundial de vestuário de luxo, entrou esta sexta-feira na bolsa de Nova Iorque a valer 5,8 mil milhões de dólares, o equivalente a quase cinco mil milhões de euros. O valor impressiona, sobretudo por se tratar de uma empresa criada há 10 anos, que não cria nem armazena nada — só quer ser a “ponte” entre quem vende e quem compra, recebendo comissões generosas pelo meio. A empresa dá prejuízo (e dará pelo menos até 2020), não paga dividendos e, por muito que invista em desenvolvimento tecnológico, nunca vai poder ter uma patente que lhe dê a exclusividade na agregação de marcas de moda. Porque é que tantos investidores querem, então, um pedaço da empresa fundada pelo português José Neves?
Lançar uma empresa em bolsa envolve, habitualmente, uma coreografia cujo objetivo é fazer a empresa em questão parecer que é a melhor coisa que foi inventada desde o pão ralado. Quem está responsável por gerir essa coreografia é o conjunto de bancos gestores (onde se incluíam, no caso da Farfetch, o Goldman Sachs, o JPMorgan e o UBS) — são estes que tentam encontrar o “ponto de rebuçado” entre o preço pedido pelas ações e a procura que existe.
Um preço demasiado alto, que sobrestime o valor da empresa e a procura existente, arrisca tornar a operação um flop (como foi o Facebook, quando foi para a bolsa em 2012). Já um preço demasiado baixo, que subestime a procura, torna a operação menos rentável para os investidores originais (os que vendem parte das suas posições na Oferta Pública Inicial), em benefício de quem vai depois negociar na bolsa — o que também não é um cenário ideal. Daí que encontrar esse “ponto de rebuçado” seja uma missão delicada (embora bem remunerada).
No caso da Farfetch, contudo, os gestores da operação tiveram uma boa dose de ambição — o que foi, desde logo, um indicador de procura elevada. Se inicialmente se previa vender os títulos a um preço entre 15 e 17 dólares, esse intervalo passou para entre 17 e 19 dólares no início desta semana. No final, porém, os títulos acabaram por ser vendidos a 20 dólares cada um, para um encaixe de quase 900 milhões de dólares pela percentagem do capital que foi vendido — a avaliação total, essa, foi dos tais 5,8 mil milhões de dólares.
Farfetch vendida em bolsa mais “cara” – o triplo – do que a Amazon
Há vários rácios que ajudam a perceber quão “cara” ou quão “barata” está a ação de uma empresa.
Quando uma empresa paga dividendos, é importante calcular qual a percentagem em dividendo que se recebo caso se comprar uma ação — pagar 10 euros e receber um dividendo anual de um euro (por cada ação) significa que recebemos uma “taxa de rendibilidade” generosa de 10%. Mas a Farfetch não paga dividendos nem tem quaisquer planos para o fazer nos próximos anos, pelo que quem está a comprar ações está a acreditar que consegue rentabilizar o investimento puramente através da valorização do preço das ações. A Farfetch admite que um dia poderá pagar dividendos, mas garante que nunca se irá endividar para o fazer.
Outro rácio muito utilizado é o que compara o preço da ação (em rigor, o valor total da empresa no mercado) com os lucros. Mas a Farfetch nunca deu lucro — o prejuízo duplicou para 68 milhões nos primeiros seis meses do ano — e a operação não deverá sair do “vermelho” antes de, pelo menos, 2020. Um relatório da Bloomberg Intelligence antecipa que a Farfetch não irá dar lucro senão daqui a dois anos. Os gastos com investigação e desenvolvimento (R&D) triplicaram no primeiro semestre, na comparação homóloga, e o número de trabalhadores aumentou em 65% no mesmo período.
Qual é, então, o rácio que se pode utilizar para perceber se a Farfetch foi para a bolsa a um valor “esticado” ou, meramente, “ambicioso”? A alternativa é olhar para o valor da empresa em relação às vendas. E é aí que se conclui que as ações vendidas pela empresa de José Neves foram colocadas no mercado a um múltiplo que é mais do que o triplo da “gigante” Amazon.
A Farfetch ganha dinheiro, principalmente, com comissões de venda e através de acordos de partilha de receita (que podem chegar a um terço do valor). E comissões de um terço em que produtos? Alguns exemplos: umas luvas de lã rosa por 130 euros ou uma camisola de criança da Gucci por 295 euros.
Nos seis meses até final de junho, a Farfetch teve uma faturação de 268 milhões, o que indica uma aceleração face ao valor de receitas do ano passado: na totalidade de 2017, as vendas foram de 385 milhões de dólares – este é o último valor anual que existe para se poder fazer o rácio sem recorrer a estimativas.
Ora, as primeiras ações da Farfetch a serem vendidas em bolsa, esta sexta-feira, pressupõe um avaliação de 5,8 mil milhões — o que representa um múltiplo de 15 vezes face às receitas. Qual é o múltiplo equivalente para a Amazon (uma empresa que vale um bilião em bolsa)? Menos de cinco vezes.
O que é que isto quer dizer? Um múltiplo muito elevado pode ser um fator dissuasor para investir numa ação, porque se podem criar dúvidas sobre a capacidade da empresa de aumentar as receitas a um nível que justifique o preço por ação. Quem está a investir nas ações da Farfetch faz isso com a expectativa de haver uma compressão desse múltiplo através do aumento do denominador, isto é, as receitas.
Se, por hipótese, a empresa continuar a valer 5,8 mil milhões em bolsa mas as receitas duplicarem em 2018 (como aconteceu entre 2016 e 2017), aí o múltiplo já cairá para a região das 7,5 vezes, o que já não parecerá tão “esticado” como o rácio atual. Esta é, portanto, uma avaliação que espelha muitas expectativas do lado dos investidores (e muita pressão do lado da gestão) para justificar o valor dos títulos em bolsa.
A importância de não ter armazéns
A Farfetch é a primeira grande estreia em bolsa de uma empresa tecnológica europeia desde que a Adyen, uma empresa holandesa de pagamentos, dispersou o capital na bolsa de Amesterdão no verão. O encaixe agora obtido — os 900 milhões de dólares — será usado, segundo a empresa, para financiar o crescimento da empresa, seja orgânico ou através de possíveis aquisições. A última dessas aquisições foi uma empresa de marketing digital chamada CuriosityChina, mostrando que a Farfetch reconhece a importância do mercado chinês para acelerar as vendas.
O negócio da empresa fundada por José Neves baseia-se, sobretudo, num “Marketplace” que permite a milhares de marcas, incluindo lojas independentes, usar uma plataforma digital agregadora para vender os produtos. A Farfetch ajuda, também, a gerir as funções de backoffice de forma mais eficiente, o que é outra fonte de rendimento.
“Somos uma empresa tecnológica, no nosso âmago, e criámos uma plataforma para o setor da moda de luxo — com três componentes principais: aplicações, serviços e dados”, indicou a empresa no comunicado que lançou a estreia em bolsa. É para reforçar essa ideia de que é uma empresa tecnológica — e para aceder ao maior número de investidores nessa área — que a Farfetch decidiu dispersar o capital em Nova Iorque e não em Londres, onde fica a sede da empresa.
O mercado já tomou nota. “É importante pensar na Farfetch como uma empresa tecnológica e não como uma retalhista”, comentou Katie Smith, da EDITED, uma empresa de análise de dados no retalho, citada pela Forbes. “Eles não são donos de qualquer stock, não precisam de armazéns, são apenas um agregador”, nota a especialista, acrescentando que “essa é um grande elemento diferenciador no mercado, que lhes permite ter um vasto leque de escolha sem assumir os riscos e os custos associados a isso”.
Quanto vale uma amizade? E um par de olhos?
A Amazon, por muito grande e inovadora que seja, nunca conseguiu (ou nunca apostou muito) em afirmar-se como uma plataforma de venda de vestuário de luxo — como se afirmou, em contraste, na venda de tantas outras coisas.
Foi nesta lacuna que a Farfetch viu uma oportunidade. Já hoje, a Farfetch tem 2,3 milhões de clientes espalhados por 190 países (uma avaliação de 5,8 mil milhões por 2,3 milhões de clientes faz com que cada par de olhos valha, atualmente, para os investidores da Farfetch, 2.500 dólares — claro que a expectativa é de um aumento do número de clientes).
A Farfetch disponibiliza produtos de quase mil comerciantes — dos maiores ao mais pequenos. “Somos o elo de ligação entre uma base de consumidores global e uma indústria da moda de luxo que é altamente fragmentada — e assumimos o papel de principal parceiro de inovação para esta indústria”, afirmou a empresa. No portal da Farfetch estão presentes cerca de 3.200 marcas, incluindo insígnias como a Chanel, a Gucci, a Fendi e a Valentino (mas, também, estão presentes pequenas boutiques de luxo). Não há nenhum outro portal online no mundo que reúna tantas marcas de moda.
“Para os comerciantes de moda de luxo, facilitamos a ligação com o maior conjunto de consumidores destes produtos em todo o mundo. Congregar um grande número de comerciantes de luxo requer um processo longo e cuidadoso de construção de relações, o que depois atua como uma barreira à entrada [de concorrentes]. Fomentámos, com todo o cuidado, essas relações ao longo de uma década”, afirma a Farfetch, dizendo, no fundo, que são uma empresa tecnológica mas que tem, como um dos principais ativos (e mais dificilmente replicáveis) os acordos que celebrou com as marcas.
Ainda assim — e porque as empresas são obrigadas a identificar os maiores riscos para a sua operação — a Farfetch alertou no comunicado que “é possível que continuemos a registar prejuízos (antes de impostos) e não podemos garantir que vamos atingir a rentabilidade e poderemos incorrer em prejuízos significativos em momentos futuros”. O mercado da moda de luxo é difícil de prever — e não é barata a adaptação a eventuais mudanças, nem é garantido que essa adaptação possa ser feita com sucesso.
Marcas (de luxo) locais servem clientes cada vez mais globais
“O nosso modelo de Marketplace permite-nos oferecer a seleção mais alargada e variada de moda de luxo que existe”. O desafio da Farfetch está em tornar-se a one-stop-shop para reunir os produtos das principais marcas — e a questão geográfica é crucial: entre as 20 maiores marcas de vestuário de luxo, a nível mundial, 19 têm sede na Europa — apesar de servirem uma base de clientes global, e aí o e-commerce será um grande trunfo para as marcas e para os seus parceiros.
Ir às estreias em bolsa está a valer a pena
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O “timing” da Farfetch não podia ser melhor. Empresas como a Apple e a Amazon superaram recentemente o valor de um bilião de dólares em bolsa. E as últimas estreias em bolsa tem sido muito lucrativo participar nestas operações. Segundo o Financial Times, que cita dados da consultora Dealogic, quem participou em Ofertas Públicas Iniciais neste ano nos EUA já está a ganhar quase 30%, em média.
E as marcas estão a reconhecer isso, mesmo: que faz sentido pagar para estar numa plataforma agregadora em vez de ter apenas o seu próprio site. A Chanel, por exemplo, foi uma das empresas donas de marcas de luxo que investiram na Farfetch enquanto ainda era uma empresa privada. Outros investidores foram o gigante chinês do e-commerce JD.com e o Temasek, o fundo de investimento estatal de Singapura.
Historicamente, os principais mercados para a moda de luxo eram a Europa, os EUA e o Japão, mas tem cada vez maior importância a procura vinda de economias emergentes como a China e o Médio Oriente, bem como algumas partes da América Latina e da Europa de Leste.
Estas são as regiões com maior crescimento, mas quanto é que se pode esperar que este mercado cresça, como um todo? A tendência é muito promissora, porque as novas gerações de consumidores deste tipo de produtos preferem comprar online. A fazer fé em estudos recentes (como um recente, da Bain & Company), os chamados millennials e a Geração Z deverão representar 45% do mercado de moda de luxo em 2025. Em termos nominais, esse mercado vai valer 446 mil milhões em 2025 — qual será o pedaço que a Farfetch vai conseguir puxar para si (e para os seus novos investidores)?