Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados há dias pareciam mostrar um rombo no emprego das Forças Armadas, no espaço de apenas um ano: entre o segundo trimestre de 2022 e o mesmo período deste ano, o número de profissionais das Forças Armadas estimado pelo instituto caiu 36,5%, numa derrapagem de 25,2 mil para 16 mil efetivos. Já no final de 2022, a queda homóloga tinha sido significativa: 21,5%. Confrontado com as perdas, o Ministério da Defesa estranhou e avançou com os dados administrativos de que dispõe: reconhecendo uma diminuição entre 2021 e 2022, diz que não foi tão significativa, mas, antes, de 5,1%.
A diferença entre os dados de uma e outra entidade tem uma explicação essencialmente metodológica — que é particularmente significativa num universo pequeno como o dos militares. Por isso, o INE aconselha cautela à retirada de conclusões das estimativas que fez para este grupo profissional. “A leitura de valores de pequena expressão quantitativa”, com margens de erro elevadas, de que é exemplo o grupo profissional das Forças Armadas, “deve ser realizada com cautela por parte dos utilizadores desta informação”, explica o INE, em resposta ao Observador.
Questionado pelo Observador sobre a queda considerável de 36,5% do emprego entre os segundos trimestres de 2022 e de 2023, o Ministério da Defesa disse ter dados muito diferentes dos do INE, embora só tenha revelado números anuais, e relativos a 2022. No final desse ano, o número global de militares nas Forças Armadas foi de 26.957 (se excluirmos os militares na reserva e os que estão em formação, o número baixa para 22.023). Segundo o Ministério, são menos 1.452 militares face ao ano anterior, o que significa uma redução de 5,1%.
Emprego sobe no segundo trimestre à boleia das profissões menos qualificadas
Os números são, portanto, bem diferentes dos estimados pelo INE para o final de 2022 (face ao final de 2021): menos 21,5%, ou seja, uma redução de 5,9 mil profissionais, para um total de 21,5 mil. O Ministério da Defesa diz mesmo que os dados da autoridade nacional de estatística “não refletem a realidade de efetivos registada pela Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional”, a entidade do Ministério responsável pela matéria, que tem dados administrativos, e defende que os valores de uma e de outra instituição não devem ser comparados.
Um universo pequeno com grandes “margens de erro”
A resposta à pergunta deste artigo é metodológica e esta justificação é particularmente relevante no grupo profissional das Forças Armadas, que é a categoria (de entre as categorias da “classificação portuguesa das profissões”) que tem menos efetivos. E quanto menor o efetivo, maior será a margem de erro, logo, menor a fiabilidade dos dados (e, assim, das conclusões que se podem tirar). Essa fragilidade, no caso das Forças Armadas, é reconhecida pelo INE.
Os dados do INE sobre o emprego por grupo profissional baseiam-se nos Inquéritos ao Emprego feitos a nível europeu e seguem uma metodologia comum nas várias geografias. Sendo um inquérito, baseia-se em respostas de participantes (residentes em Portugal) escolhidos aleatoriamente, numa periodicidade trimestral. Estes participantes constituem apenas uma amostra do universo potencial de inquiridos que, neste caso, se aproximaria dos cinco milhões de indivíduos.
Essa é uma ideia-chave: quando entidades como o INE se propõem fazer um determinado inquérito com esta regularidade seria difícil questionar todas as pessoas de um universo — para isso existem os Censos, que só são realizados a cada dez anos. Sendo uma amostra, cada valor estimado pelo INE nas estatísticas do emprego corresponde, na verdade, ao valor central dentro de um intervalo de confiança (onde está o verdadeiro valor do parâmetro), com uma determinada probabilidade (normalmente de 95%). Por isso, esclarece o INE, essa estimativa “não pode ser encarada como um valor exato”.
No Inquérito ao Emprego — que fornece medidas de emprego, desemprego, população inativa e taxa de desemprego oficial com base em conceitos delimitados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) — os resultados são, portanto, estimativas, com um erro de amostragem associado, e são considerados oficiais, o que permite comparações europeias (já que os institutos de estatística dos restantes países seguem a mesma metodologia que o INE).
Ao Observador, a autoridade estatística explica que a categoria das Forças Armadas inclui “oficiais, sargentos e praças, dos três ramos das Forças Armadas, no ativo ou na reserva em efetividade de serviço, com funções predominantemente militares ou servindo em unidades militares e aqui exercem, em exclusivo ou principalmente, as suas tarefas e funções”. Quando publica os destaques do emprego por profissão, inclui nas tabelas a margem de erro que está associada ao valor em questão. A margem de erro permite medir a eficácia de um questionário e quanto menor for, maior a confiança dos resultados. No caso do INE, é publicado sob a forma de coeficiente de variação, a partir do qual pode ser obtido o intervalo de confiança.
Nas Forças Armadas, estes coeficientes são “relativamente elevados”, diz o instituto — era de 15,2% no segundo trimestre de 2022 e de 13,7% no mesmo trimestre de 2023 (e de 12,4% no final de 2022), enquanto, nas restantes profissões, não toca nos dois dígitos. Isto acontece quando os universos em causa são mais pequenos. No segundo trimestre de 2023, os dados mais recentes, o INE estimava um universo de 16 mil efetivos nas Forças Armadas, o que representa 0,3% do total do emprego.
É por isso que o INE aconselha “cautela”. “Neste contexto, a leitura de valores de pequena expressão quantitativa (em geral, com coeficientes de variação mais elevados e, consequentemente, com intervalos de confiança mais amplos), de que é exemplo o grupo profissional das Forças Armadas, deve ser realizada com cautela por parte dos utilizadores desta informação“, explica, ao Observador.
Além disso, os intervalos de confiança de um e outro trimestre “intersetam-se” — no segundo trimestre deste ano, a população empregada nas Forças Armadas pode situar-se entre 11,7 mil e 20,3 mil indivíduos, com 95% de probabilidade, e em 2022 pode ter ficado entre 17,7 mil e 32,7 mil —, o que leva o INE a concluir: “a variação entre os dois trimestres pode não ser estatisticamente significativa”. Por outras palavras: pode não haver condições para se retirar daqui grandes conclusões.
Ministério reconhece que atratividade do estrangeiro rouba emprego a Portugal
Embora não iguais, os dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), que se baseia em dados administrativos dos vários serviços públicos, estão mais perto dos valores do Ministério da Defesa do que dos valores do INE: no final de 2022, as Forças Armadas tinham menos 2.057 trabalhadores (menos 6,7%) do que um ano antes. A DGAEP sublinhava, então, um “contributo negativo” da área da defesa nacional para o emprego público, que era “em parte explicado pela existência de rescisões e de não renovações de contratos nas Forças Armadas, sobretudo praças e sargentos“.
Esta evidência de perda foi repetida nas estatísticas mais recentes, do segundo trimestre de 2023 (menos 1.899 postos de trabalho, o equivalente a uma queda de 6,3%). Os dados enviados pelos três ramos (Exército, Força Aérea e Marinha), ao Expresso, também mostram quebras, neste caso de 7,2% entre os militares em serviço efetivo.
Helena Carreiras admite valorização financeira e profissional para atrair e manter militares
Ao Observador, a tutela reconhece a perda de militares — que calcula que tenha sido de 1.452 pessoas no final de 2022 face ao ano anterior — e justifica com a competitividade da oferta de emprego no estrangeiro. Em contraponto, indica que, durante a pandemia, as regras extraordinárias fizeram prolongar os contratos de trabalho.
“O número de militares no final de 2022 reflete o final dos dois anos de pandemia, no qual vigoraram regras extraordinárias que permitiram prorrogar os prazos dos contratos, bem como, por outro lado, a reabertura do mercado de trabalho global (crescentemente competitivo) com impacto nos níveis de atratividade e retenção, sobretudo em tempo de baixos níveis de desemprego”, explica fonte oficial. A Associação Nacional de Sargentos, por exemplo, tem apontado os baixos salários para a falta de atratividade da profissão e reivindicado aumentos salariais ao Governo.