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O vento que sopra em Vyšné Nemecké é gelado e corta a pele. Esta pequena aldeia da Eslováquia, perto da cidade ucraniana de Ujgorod, tornou-se nas últimas duas semanas um entreposto temporário de vidas interrompidas pela guerra. É ali que param para respirar pela primeira vez os muitos ucranianos — a grande maioria mulheres e crianças — que fugiram de Kiev, Kharkiv e tantas outras cidades debaixo de bombas. Para trás, deixam viagens de dias em comboios apinhados e em carros parados em filas intermináveis.
Para trás ficaram também os pais, maridos e filhos adultos, devido à lei marcial. A maioria destes refugiados encaminha-se agora para outros países da União Europeia, onde têm amigos ou família, e aguardam pela boleia que chegará em poucas horas. Matam o tempo nas tendas montadas por várias organizações de apoio aos refugiados que acorreram a esta aldeia para levar sopa, chá quente, apoio médico, serviços de tradução. Quase todos ainda estão em choque.
As poucas malas que trazem foram feitas à pressa e são o que lhes resta da vida que deixaram para trás e a que não sabem se irão regressar em breve. O Observador perguntou a cinco refugiados ucranianos qual o objeto mais importante que trouxeram consigo. A pergunta, aparentemente simples, destapou histórias de horror: uma aldeia onde já não há medicamentos; uma fuga repentina depois de uma bomba cair na casa ao lado; uma panificadora onde soldados russos cremam agora os corpos dos camaradas mortos.
Mas a pergunta também permitiu encontrar exemplos de humanidade, como a de um tio que conduz há dias de Espanha para vir buscar a família, a de uma refugiada que espera encontrar futuro em Portugal ou a de uma família que conseguiu fugir graças à ação de alguns soldados russos. Estas são as histórias de Donithara, Anna, Vladislav, Natalia e Kateryna: refugiados ucranianos, sim, mas antes disso pessoas.
Donathara e as fotografias “muito queridas” de toda a sua vida
“Esta é a casa onde nasci.” Donathara mostra uma fotografia a preto e branco de um edifício de pedra, com um telhado escuro em bico. Fica algures no Cáucaso Norte (Rússia), na aldeia onde nasceu há 75 anos. É uma das fotografias que trouxe consigo, arrumadas dentro de uma mica, que está escondida numa pasta enfiada por debaixo das poucas roupas que conseguiu meter na mala.
“Esta sou eu e o meu marido”, diz, mostrando outra foto a preto e branco de um casal jovem — ele de pólo e calças engomadas, ela de vestido e ramo de flores na mão. Depois três jovens sorridentes numa imagem que parece ter sido captada algures na década de 1970: “Esta sou com os meus amigos — mas não estávamos a beber, estávamos só divertidos!”. “Esta é a minha mãe. A minha mãe”, conta Donathara, o rosto abrindo-se num largo sorriso.
São o bem mais precioso que trouxe da aldeia onde vive, ou vivia, sozinha, no norte da Ucrânia, perto da fronteira com a Bielorrússia. Tencionava ficar ali. Mas quando deixou de haver os medicamentos de que precisa na farmácia local, fez a mala, reuniu as suas “muito queridas fotografias” e apanhou um táxi. Dali seguiu até à cidade mais próxima, onde apanhou um comboio “muito, muito lento” para Kiev. Na capital, subiu a bordo de outra nova carruagem. “A viagem foi como é qualquer viagem para uma pessoa velha e doente”, diz, resignada. “Havia gente por todo o lado”. Ao todo, seguiam 19 pessoas sentadas naquela pequena carruagem e outras tantas apinhadas no corredor. Donathara fez todo o caminho sozinha.
Donathara mudou-se para a Ucrânia em 1989, dois anos antes da dissolução da União Soviética, quando se reformou da fábrica de produtos químicos onde trabalhou durante 26 anos. Essa fábrica era na antiga república soviética do Uzbequistão. É de lá que guarda as melhores memórias da sua vida, como se comprova pelas fotografias: a única vez que nevou quando lá viveu; um almoço de shashliks (espetadas grelhadas) com os vizinhos; as excursões em Samarkand, terra de minaretes “lindos, tão lindos”.
Irá levar essas memórias consigo, em forma de fotografia, para a Alemanha. A sua filha mais nova, que vive nesse país, virá buscá-la a este campo de refugiados improvisado em Vyšné Nemecké.
Anna tinha as malas feitas há quatro dias — mas o mais importante não veio dentro delas
Anna e os dois filhos tinham as malas feitas há quatro dias. “Estávamos a tentar manter-nos calmos, mas tínhamos as malas preparadas caso fosse preciso ir para o abrigo, para casa de familiares noutra cidade ou até para o estrangeiro. Não era o que queria, mas…” Mas Anna aqui está. Saiu de Kharkiv de carro e trouxe consigo os dois filhos, a mãe e uma vizinha de 16 anos. 32 horas depois, atravessaram a fronteira.
A decisão foi tomada depois de o seu bairro ter sido atacado com rockets lançados por um Smerch dos tempos soviéticos e de uma bomba ter caído precisamente na casa ao lado. Não houve muito tempo para pensar. “Assustador” é a palavra que repete várias vezes, não consegue descrever aqueles dias de outra maneira.
Como a mala estava feita há algum tempo, tem as roupas e produtos de higiene necessários. Mas para Anna pouco valem. O mais importante são os filhos, é claro, mas por vir de carro esta ucraniana conseguiu também trazer Sky, o seu ainda pequeno husky de pêlo branco e cinzento. Na chegada à Eslováquia, rapidamente foi abordada por um voluntário que lhe perguntou se precisava de apoio veterinário para colocar o chip necessário em animais domésticos na União Europeia. “Os voluntários são maravilhosos. Deram-nos comida, chá quente, tudo o que precisamos.”
O próximo destino é um hotel na Hungria, onde a família espera poder descansar da viagem durante alguns dias. O destino final mais provável é Portugal: a sua empresa de web hosting tem um escritório no Porto e Anna espera que possa ir trabalhar para lá.
Vladislav trouxe o telemóvel para recordar o rosto dos primos de Kharkiv
Vladislav tem apenas 12 anos, mas o seu inglês já é bom o suficiente para comunicar com estrangeiros que não compreendem o russo que fala desde que nasceu. Passou dias no abrigo subterrâneo do prédio, na região de Sumska (perto de Sumy) com os pais e os avós. Partiram para Poltava e ali tentaram apanhar um comboio, sem sucesso. Estava demasiado cheio. Viram cinco comboios passar até conseguirem subir a bordo. “Demorámos 18 horas até chegar a Ternopil. É difícil respirar ali dentro. Há demasiadas pessoas“, descreve.
Para trás ficaram o pai e o avô, impedidos de partir por estarem em idade de combater. Até esta terça-feira, continuavam na cidade, na casa onde vivem perto da fábrica de cerveja local, apesar de toda a cidade estar debaixo de fogo. A mãe de Vladislav, Marina, puxa do telemóvel para mostrar fotografias da destruição: não resta pedra sobre pedra. Um dos últimos bombardeamentos a Kharkiv, ali perto, fez com que o pai e o avô partissem para um local perto de Chernihiv, ainda mais assustados. Mas Chernihiv também está sob ataque.
“Queria trazer comigo o meu gato, mas não pude”, diz Vladislav. Não considera nenhum dos outros bens materiais que tem na mala relevantes neste momento: “O mais importante para mim era trazer a minha família toda.” O pai e o avô, sim, mas também os primos adolescentes, que vivem em Kharkiv, de onde ainda não conseguiram sair. É por isso que Vladislav considera que só tem neste momento um objeto importante consigo. É o seu telemóvel, onde pode ver as fotografias dos primos. “Este é o Oleh. Tem 16 anos e quer ser bailarino.”
O tio de Vladislav vive em Espanha e está a caminho para vir buscar a mãe, a irmã e o sobrinho. “Temos de esperar mais duas ou três horas até ele chegar.”
Natalia chegou de mãos vazias, mas pouco importa: “Consigo andar, consigo trabalhar, o resto reconstrói-se”
Natalia destaca-se dos restantes refugiados em Vyšné Nemecké por ser uma das poucas que tem o marido consigo. “Ele foi dispensado do serviço militar por ter pouca visão, sem óculos não vê praticamente nada”, conta. Com os dois filhos, de 14 e três anos, são uma família completa que ali está, ao contrário da maioria. Talvez por isso, Natalia revela um pouco mais de ânimo do que a maioria dos ucranianos que chegaram de Ujgorod.
“Somos de Kiev e queríamos ficar, mas quando percebemos que a cidade estava quase a ser cercada, decidimos sair. As crianças não devem ficar num sítio assim.” Foram muitas horas de viagem, a que se seguiram 18 horas numa fila apenas para atravessar a fronteira.
O plano agora é o de passar uma noite num hotel e depois seguir para a Áustria, onde uns amigos já se disponibilizaram para os acolher. O mais importante para esta ucraniana, porém, é garantir que o marido poderá continuar a trabalhar. A empresa de controlo do tráfego aéreo do aeroporto de Kiev, onde trabalha, pediu um empréstimo para continuar a pagar salários e está a ver formas de conseguir que os funcionários possam trabalhar de forma remota para o Estado, no que for preciso. “Tem de ser, ele tem de continuar a trabalhar, não temos muito dinheiro connosco.”
As malas da família estão quase vazias, à exceção de algumas roupas e medicamentos para o caso de os filhos ficarem doentes. “Podemos não ter nada para que voltar, a nossa casa pode ser atacada”. Todos os bens materiais se foram e Natalia traz uma mão cheia de nada, mas não se sente derrotada: “O mais importante são os meus filhos e as minhas memórias e os meus filhos estão comigo”, resume. “Consigo andar, consigo trabalhar. O resto reconstrói-se quando tudo isto tiver terminado.”
Kateryna só teve tempo de agarrar no passaporte, que espera um dia usar para regressar
Kateryna também é de Kiev, mas nas últimas semanas tomou uma decisão de que se arrepende. Achando que a família ficaria mais protegida longe da cidade, mudou-se para uma casa numa aldeia perto de Makariv, juntamente com alguns amigos. Ao todo, eram 15 pessoas. “Se tivéssemos ficado teria sido menos mau, mas não podíamos adivinhar…”
Foram oito dias de terror. Primeiro, ficaram sem eletricidade e sem água. Depois, vieram os ataques aéreos. “Havia sempre ataques, bombas a toda a hora.” A casa não tinha abrigo subterrâneo, razão pela qual a família tentou proteger as crianças colocando-as várias vezes na piscina da vivenda, que estava vazia. Alguns dias depois, os tanques russos começaram a aproximar-se.
Sair de casa e comprar comida tornou-se praticamente impossível. Toda a aldeia sobreviveu graças às batatas e outros vegetais cultivados por alguns dos residentes, que foram sendo partilhados pelas várias casas e que Kateryna e o marido cozinhavam num grelhador que estava no quintal. “Até que um dia percebemos que os soldados russos estavam quase a chegar à aldeia e foi aí que decidimos partir, tomámos a decisão em cinco minutos”, conta. Já a tinham ponderado antes, mas os relatos que lhes chegavam é que aqueles que o tentaram fazer foram atacados a tiro pelo exército russo.
Kateryna e o marido partiram com os filhos, a mãe, a irmã e os sobrinhos, muitos deles escondidos no porta-bagagens. Outros vizinhos fizeram o mesmo, seguindo todos numa coluna de carros que temia que chovessem balas a qualquer altura. A certa altura, chegaram a uma auto-estrada que estava cortada por soldados russos. Um dos seus vizinhos tomou a decisão de sair do carro e ir abordá-los. “Eles aceitaram deixar-nos passar. Graças a Deus.” Nos dias seguintes, enquanto iam até Lviv, chegou-lhes a notícia de que outros que partiram depois deles foram abatidos. Os soldados russos entraram entretanto na aldeia e estão agora a bater às portas a pedir comida aos habitantes.
Kateryna soube também de outra notícia arrepiante: a de que as tropas russas ocuparam uma panificadora local, onde estão agora a cremar os corpos dos compatriotas mortos em combate. Abana a cabeça, desesperada: “Os russos não querem que fique nenhum corpo para trás. E quando a mãe de um soldado pergunta onde está o seu filho, o governo diz-lhes ‘não sei'”.
A ucraniana não esquece o gesto dos soldados que deixaram a sua família passar, não sabe bem porquê. Um gesto que contrasta com o dos colegas russos da sucursal que a sua empresa alemã de equipamentos de cozinha tem em Moscovo: “Nenhum deles me escreveu sequer uma mensagem a perguntar se estava bem”, diz. “Recebi mensagens de colegas da Alemanha, do Azerbaijão, da Geórgia. Deles, só silêncio. Neste momento odeio-os, já não são meus amigos.”
Kateryna irá agora para a Polónia, onde a sua empresa já tem alojamento para si e para a sua família, bem como para as mulheres dos colegas ucranianos que ficaram no país para lutar. Está grata. “Quero muito voltar ao meu trabalho”, confessa. Quer voltar à sua vida, “era uma vida boa”. “Sei que há ucranianos que acham que a vida até pode ser melhor aqui. Eu sei, já estive na Alemanha, já fui à Suíça… Mas a Ucrânia é o meu país, quero voltar ao meu país.” Foi por isso que, nos 5 minutos que teve para sair de casa, Kateryna não colocou na mochila nem sequer uma peça de roupa. Optou antes por um único objeto: o seu passaporte ucraniano.