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Futuro d.C.: como vamos viver depois do coronavírus?

A pergunta vale mais que um milhão de dólares, e a única resposta possível é “não sabemos”. Mas podemos antecipar cenários e desenhar caminhos. É isso que queremos fazer com os olhos postos no futuro.

Se dantes as dúvidas sobre o futuro já dominavam as reflexões dos maiores pensadores mundiais, agora, neste momento exato, incerteza é tudo o que temos. Ninguém sabe como vamos viver d.C. – depois do coronavírus –, em que é que vamos trabalhar ou de que forma, que outras ondas de microrganismos nos poderão abalar, como nos vamos deslocar, se poderemos voltar a abraçar os amigos ou, sequer, sabemos onde vamos morar. As questões são muitas, mas para nenhuma há resposta concreta. E se é verdade que a incerteza pode levar-nos a um imenso abismo, também é verdade que nos oferece uma oportunidade de contribuirmos para a construção de algo melhor, mais justo e equilibrado. A decisão está não só nas mãos dos governantes do mundo inteiro, que neste momento desenham e põem em marcha planos de recuperação da economia devastada, mas também nas nossas, enquanto sociedade. E é para contribuir para este imenso e urgente debate que o Observador lança este novo projeto num formato inovador: Observador. Olhos no Futuro. Para cada tema que nos inquieta e sobre o qual queremos pensar em conjunto — desde a economia à saúde, passando pela tecnologia, ambiente, turismo, arquitetura ou justiça, entre muitos outros –, encontrará alojadas aqui as reflexões de alguns dos mais importantes especialistas portugueses nas respetivas áreas. Primeiro em formato de talk e, depois, em artigos de desenvolvimento e entrevistas. “Como será o mundo pós-pandemia?” é a pergunta que lançamos, porque se o futuro é desconhecido, nós fazemos as apresentações.

Economia — muitos cenários, uma certeza

A pandemia de Covid-19 levou-nos à mais grave depressão vivida em quase um século, causando enormes danos na saúde das pessoas, nos seus empregos e modos de vida. Aquela que é a perceção de todos nós vem confirmada no mais recente relatório de previsões económicas mundiais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) – Economic Outlook, onde se conclui que os esforços feitos pelos governos de vários países para conter a rápida disseminação da pandemia, assegurar a resposta dos serviços de saúde e proteger vidas foram necessários, mas o encerramento da atividade em diversos setores acabou por causar problemas económicos generalizados.

Segundo a OCDE, se uma segunda vaga de Covid-19 ocorrer antes do final deste ano, levando-nos outra vez a uma situação de isolamento e paragem, é provável que a produção económica mundial caia 7,6% e recue 2,8% em 2021

Para ajudar a antecipar o futuro, e partindo do princípio de que uma vacina não estará disponível brevemente, aquele organismo tentou perceber o que poderá vir a acontecer. Para tal, partiu de dois cenários distintos, mas em nenhum caso as perspetivas são animadoras. Segundo a OCDE, se uma segunda vaga de Covid-19 ocorrer antes do final deste ano, levando-nos outra vez a uma situação de isolamento e paragem, é provável que a produção económica mundial caia 7,6% e recue 2,8% em 2021.  No pico, o desemprego nos países que integram a OCDE mais do que duplicará em relação à situação que tínhamos pré-pandemia, esperando-se pouca recuperação de empregos no próximo ano. Quanto ao PIB, estima-se que em 2020 este caia 11,5% na zona euro, 8,5% nos EUA e 7,3% no Japão. Por outro lado, se se conseguir evitar uma nova onda, é provável que a atividade económica global recue 6% em 2020 e o desemprego suba 9,2%, face a 5,4% em 2019. Já o PIB deverá baixar 9% na zona euro, 7,3% nos EUA e 6% no Japão.

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O que esperar para a economia portuguesa?

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Se a situação se descontrolar e uma segunda onda de contágios for inevitável ainda este ano, a OCDE acredita que a economia portuguesa possa cair 11,3% em 2020 e que o desemprego aumente para 13%, o que obrigaria a uma retoma lenta e à necessidade de medidas de apoio adicionais. Ainda assim, mesmo assumindo que a pandemia possa ser contida, aquele organismo estima que o PIB nacional baixe 9,4% este ano e 6,3% em 2021.

Uma recessão económica global prolongada é mesmo a consequência mais provável desta pandemia, na opinião de 69% dos gestores de risco inquiridos pelo Fórum Económico Mundial (FEM) para um relatório sobre os principais riscos da pandemia — COVID-19 Risks Outlook: A Preliminary Mapping and its Implications. Cerca de 57% temem também a falência de empresas e 56% receiam a impossibilidade de recuperação de indústrias ou setores nalguns países. Embora consciente da gravidade da situação, o FEM acredita que é possível evitar a concretização dos piores cenários, mas para tal é importante que, neste momento em que se desenham planos de recuperação económica, os governos e as sociedades trabalhem em conjunto, aproveitando a ocasião para um crescimento sustentado.

Embora consciente da gravidade da situação, o FEM acredita que é possível evitar a concretização dos piores cenários, mas para tal é importante que, neste momento em que se desenham planos de recuperação económica, os governos e as sociedades trabalhem em conjunto, aproveitando a ocasião para um crescimento sustentado

Igual opinião tem vindo a ser defendida por muitos outros especialistas, que sublinham a necessidade de se olhar para a crise como uma oportunidade. É o caso de Simon Mair, investigador em economia ecológica no Centre for the Understanding of Sustainable Prosperity, na Universidade de Surrey, Inglaterra, que num artigo sobre o tema revela a esperança de que se “use esta crise para reconstruir, produzir algo melhor e mais humano”, ainda que admita que se possa “descambar para algo pior”. Contribuindo para o debate geral, defende que “precisamos de um tipo muito diferente de economia para construir futuros socialmente justos e ecologicamente sólidos”, critica as bases em que tem assentado a economia — e que levou à situação que se vive — e propõe que se criem formas de “reduzir a dependência das pessoas de um salário para que possam viver”.

Sociedade — desemprego, fome e incertezas urbanas

Uma das consequências imediatas da recessão económica é o desemprego, que, de acordo com os dados mais recentes do Eurostat, subiu para 6,6% em abril na União Europeia (6,4% em março), constituindo a maior subida em muitos anos e elevando o número de pessoas sem emprego para 241 mil. Nos Estados Unidos da América, a situação é ainda mais dramática, com a taxa de desemprego a atingir os 14,7% em abril, o valor mais elevado do pós-guerra e que corresponde à perda de 20,5 milhões de empregos no setor privado em consequência da Covid-19.

Desemprego em Portugal

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Portugal acompanha a tendência mundial da subida do desemprego, tendo o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) revelado que, no final do mês de maio, se registavam 408,934 desempregados em Portugal, o que representa um aumento de 34% face ao mesmo período do ano passado. Em relação a abril deste ano, registou-se um aumento de 16,611 desempregados, correspondente a um crescimento de 4,2%.

De acordo com o relatório do FEM, o desemprego — sobretudo entre os mais jovens — é a segunda maior preocupação a nível mundial para cerca de 44% dos gestores de risco inquiridos. E para isto irá contribuir também o fim de inúmeros postos de trabalhos e a automatização de outros tantos, com a pandemia a acelerar aquela que era já uma tendência esperada para os próximos anos. Como consequência, a pobreza tenderá aumentar no mundo, levando investigadores da United Nations University a estimar que cerca de 500 milhões de pessoas estão em risco de pobreza, sendo que nalgumas regiões do globo, os efeitos adversos da pandemia podem resultar em níveis de pobreza semelhantes aos registados há 30 anos.

Cerca de 500 milhões de pessoas estão em risco de pobreza, sendo que nalgumas regiões do globo, os efeitos adversos da pandemia podem resultar em níveis de pobreza semelhantes aos registados há 30 anos

Os especialistas temem que sejam os mais pobres e vulneráveis a sentir os principais impactos negativos da crise, desde logo porque são os mais desprotegidos e aqueles que não têm a hipótese de trabalhar remotamente. Aliás, a escolha para a maioria é entre ir trabalhar e sujeitar-se ao contágio ou ficar em casa e perder o emprego, agravando-se o fosso entre ricos e pobres.

A contribuir para piorar a situação estão as restrições à circulação de pessoas e bens, que inclusivamente agravam as crises humanitárias, com interrupção das cadeias de distribuição de alimentos. A este propósito, o diretor executivo do Programa Alimentar Mundial, David Beasley, chamou recentemente a atenção para o facto de se estar a viver uma catástrofe humanitária global, com cerca de 821 milhões de pessoas a viver em zonas de conflito a passar fome. Agora, a pandemia veio colocar mais 135 milhões de pessoas numa situação semelhante de fome e desnutrição.

O diretor executivo do Programa Alimentar Mundial, David Beasley, chamou recentemente a atenção para o facto de se estar a viver uma catástrofe humanitária global, com cerca de 821 milhões de pessoas a viver em zonas de conflito a passar fome. Agora, a pandemia veio colocar mais 135 milhões de pessoas numa situação semelhante de fome e desnutrição

Além destas questões urgentes, muitas outras merecem debate porque influenciam a forma como vivemos em sociedade. É o caso do desenho das cidades do futuro, a localização dos grandes centros urbanos e até a arquitetura das casas e dos escritórios, à medida que as pessoas vão adotando novas formas de trabalhar, afastando-se das zonas densamente povoadas em busca de espaço e distanciamento físico.

Saúde — corpo, mente e sistemas de saúde postos à prova

Antes de ser outra coisa qualquer, a pandemia do novo coronavírus foi (ainda é) uma crise de saúde pública, que chamou a si a atenção dos sistemas de saúde do mundo inteiro. Dar resposta aos infetados foi a prioridade e proteger as populações de contágio também, o que implicou uma reformulação das respostas de saúde em tempo recorde. O objetivo era evitar uma catástrofe, mas os números continuam a subir e, no momento em que escrevemos, mais de 9,2 milhões de casos foram confirmados e mais de 479 mil vidas se perderam no mundo.

Em Portugal, as estatísticas não são animadoras e o receio de uma segunda vaga é bem real. Isto apesar de tudo ter sido feito para responder à crise. Além do isolamento decretado, as atenções dos cuidados de saúde foram dirigidas ao tratamento da Covid-19 mal esta chegou ao nosso país, com cancelamento de consultas e cirurgias não urgentes, e os cidadãos a serem instruídos para contactar a linha SNS24 antes de se deslocaram a qualquer unidade de saúde. Como consequência, muitos foram os especialistas que vieram a público alertar para o facto de estes procedimentos — embora necessários para conter o vírus — poderem acabar por ter impacto na saúde das populações, nomeadamente em quem sofre de doenças oncológicas, cardiovasculares ou diabetes, entre outras. A Organização Mundial da Saúde (OMS) acabou por concluir isto mesmo, num relatório que incidiu sobre 155 países e no qual se percebe que mais da metade (53%) dos serviços de tratamento da hipertensão arterial foi parcial ou totalmente interrompida em consequência da pandemia, assim como 49% dos serviços de tratamento da diabetes e complicações relacionadas, 42% dos serviços oncológicos e 31% das emergências cardiovasculares.

Mais da metade (53%) dos serviços de tratamento da hipertensão arterial foi parcial ou totalmente interrompida em consequência da pandemia, assim como 49% dos serviços de tratamento da diabetes e complicações relacionadas, 42% dos serviços oncológicos e 31% das emergências cardiovasculares

A complicar ainda mais, à medida que o conhecimento sobre a infeção por SARS-CoV-2 aumenta, vão ficando a descoberto outras questões com impacto na saúde das populações e consequente pressão nos sistemas de saúde. Por exemplo, sabe-se que este coronavírus não afeta apenas os pulmões, mas também o coração e os rins, além de que começa a haver evidência de que possa abrir as portas à diabetes, ao danificar as células produtoras de insulina.

Por outro lado, a saúde mental tem sido uma preocupação constante desde o início do isolamento, desde logo devido ao impacto psicológico do mesmo — solidão, medo de contágio, teletrabalho, filhos com aulas em casa e família toda junta no mesmo espaço —, a que se juntam agora a ansiedade relacionada com o desemprego e a incerteza sobre o futuro. O resultado poderá ser dramático para a saúde mental das populações, na opinião de muitos dos que se debruçam sobre este tema.

Portugueses aumentam o consumo de antidepressivos

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Corroborando os principais receios manifestados por psicólogos e psiquiatras, sabe-se que, em março, a venda de antidepressivos e tranquilizantes em Portugal aumentou 28% em comparação com o mês anterior, segundo dados da consultora IQVIA. No total, foram vendidas mais de 2,2 milhões de embalagens destes medicamentos, o que representa um acréscimo de 27% em comparação com março do ano passado.

A forma como os sistemas de saúde deram resposta à crise foi também amplamente posta à prova, com muitos países a viverem situações de rutura, como Espanha ou Itália. Resta saber o que poderá acontecer se outra vaga — de Covid-19 ou de outro vírus ou bactéria — assolar o mundo, sendo que todas as previsões indicam que tal acontecerá; só não se sabe quando. Acresce ainda a importância de as populações estarem protegidas por sistemas sociais que lhes garantam o acesso aos cuidados de saúde de que necessitam, o que também configura um novo desafio a dar resposta em breve, remetendo o debate para outra questão antiga: como garantir a sustentabilidade dos sistemas de saúde num contexto de desafios crescentes?

Ambiente — risco real de retrocesso

A queda das emissões poluentes em resultado da paralisação imposta pela pandemia começou por colocar um sorriso na cara de todos os que lutam por um planeta mais verde e sustentável, mas a verdade é que as boas notícias neste capítulo poderão ficar por aqui se nada for feito para evitar o pior. Os alertas têm vindo a ser feitos e os especialistas reforçam que, historicamente, após momentos de crise como este, a recuperação económica faz-se sobretudo com base num reforço da produção e através de mais apoios à indústria e menos à luta ambiental. Temem também que todos os esforços de negociação e consenso que têm vindo a ser feitos fiquem agora sem efeito.

Os especialistas reforçam que, historicamente, após momentos de crise como este, a recuperação económica faz-se sobretudo com base num reforço da produção e através de mais apoios à indústria e menos à luta ambiental

Estas preocupações constam do relatório do FEM, no qual fica patente o receio de que alguns países não integrem as metas do Acordo de Paris nos programas de recuperação, precisamente com o objetivo de facilitarem a atividade económica que pretendem revitalizar. Ao mesmo tempo, o adiamento para o próximo ano das conferências sobre o clima e a biodiversidade das Nações Unidas não veio ajudar em nada o propósito de consolidar objetivos e compromissos governamentais.

Ainda assim, há janelas de oportunidade que poderão ser aproveitadas, nomeadamente o facto de se terem testado, com sucesso, novas formas de trabalho remoto, que poderão vir a contribuir para uma redução de deslocações para o emprego. Também o recurso a bicicletas — sobretudo elétricas, para permitir a utilização em distâncias mais longas no caminho para o trabalho — é uma das soluções que poderá vir a crescer, tendo em conta a apreensão das populações em usar transportes públicos devido ao medo de contágio, segundo analistas como Simon Kuper, jornalista do Financial Times.

Tecnologia — a todo o gás, mas com reservas

Como é que o isolamento teria sido sem o recurso à tecnologia? Esta foi a questão que passou pela cabeça de todos quando, de repente, o local de trabalho passou a ser em casa, com os filhos na escola que funcionava no quarto ao lado. Reuniões através de plataformas virtuais, videochamadas a substituir encontros, almoços de família mediados pelo telemóvel e compras online. Tudo isto passou a ser normal durante a quarentena, com a tecnologia a revelar-se determinante para a gestão da crise provocada pelo coronavírus. Porém, também aqui surgem algumas questões a merecer atenção, nomeadamente na área da cibersegurança, à qual ninguém parece ter ficado imune. A própria OMS revelou ter sido alvo de cinco vezes mais ciberataques que no mesmo período do ano passado, pedindo vigilância redobrada. Por outro lado, cerca de 50% dos gestores de risco inquiridos para o relatório do FEM defendem que esta é uma preocupação trazida pela pandemia para as empresas nas quais trabalham.

Num documento produzido em março sobre este tema, a consultora Deloitte aponta perigos nesta dimensão, nomeadamente o aumento dos ataques virtuais maliciosos (phishing e ransomware, entre outros) em pesquisas relacionadas com o tema Covid-19, contribuindo para mais computadores pessoais e telemóveis infetados; maior exposição e vulnerabilidade de organizações, devido ao incremento do teletrabalho e aulas à distância ou maior número de piratas informáticos como resultado do aumento do desemprego e crise generalizada, entre outros.

Se é verdade que o foco na tecnologia poderá ter permitido contrabalançar alguns postos de trabalho perdidos, já que muitos outros foram criados ou consolidados nesta área em franca ascensão, sabe-se também que a dependência da tecnologia tende a acentuar desigualdades sociais. Por exemplo, quem tem dificuldade na adoção de novas tecnologias mais facilmente será excluído do mercado de trabalho ou, até, da manutenção de relações sociais à distância. Há ainda que refletir sobre os efeitos que terá nas gerações mais novas o repentino uso e abuso de tecnologias, agora autorizado e até incentivado pelos pais e professores. Ou será que a única coisa que a pandemia fez foi apresentar-nos mais cedo o futuro?

Estas são apenas algumas das muitas questões que iremos debater no Observador. Olhos no futuro. Aqui, sim, trataremos de fazer as apresentações do que poderá estar para chegar, com o apoio de especialistas que sabem do que falam, munidos da mais recente evidência sobre o tema. Contamos consigo e com as suas dúvidas para, juntos, observarmos o futuro.

Este conteúdo é da autoria de Andreia Vieira

Saiba mais em https://observador.pt/seccao/olhos-no-futuro/

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