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Portugal é muitas vezes referido como o país com “as fronteiras mais antigas da Europa” — tem-nas definidas desde 1297, com o Tratado de Alcanizes. Por isso, seria fácil à partida para uma plataforma como o Google Maps, o serviço de mapas da gigante tecnológica norte-americana Alphabet (dona da Google), definir os limites fronteiriços portugueses. Mas, enquanto em zonas como Gibraltar, o promontório britânico encaixado no sul de Espanha que os espanhóis querem recuperar, ou a Crimeia, disputada entre a Rússia e a Ucrânia, a empresa opta por ilustrar alguns limites a tracejado para evitar discórdias, com Olivença a decisão foi outra: o Google Maps pôs fim a uma pretensão que Portugal tem há mais de 200 anos e marca a cidade raiana junto a Badajoz definitivamente como território de Espanha.
Questionada pelo Observador, porta-voz da Google afirma que o objetivo do Google Maps “é representar a realidade de cada situação da forma mais precisa e objetiva” que é possível. Não dando uma resposta quanto ao motivo que levou a tecnológica a definir claramente este limite como se a área fosse espanhola — e não pondo uma linha a tracejado nesta zona, como acontece noutras áreas –, a mesma fonte adianta que a Google utiliza “a base de dados de terceiros (incluindo agências do governo e provedores de dados) e recursos cartográficos para mapear a representação mais precisa da situação”.
Defendendo-se sobre a opção que foi tomada relativamente à fronteira de Olivença, a Google diz ainda que existe “a possibilidade para os governos locais submeterem os seus dados diretamente no Google Maps através da ferramenta Geo Data Upload”. Além disso, a Google refere: “Estamos comprometidos em oferecer ao utilizador o mapa mais rico e atualizado possível. “O nosso trabalho nunca está finalizado e estamos constantemente a rever a nossa abordagem, consultando com parceiros, autoridades locais e o feedback do utilizador, de forma a garantir que os nossos mapas estão a acompanhar as mudanças no mundo”, menciona também.
Mesmo assim, e alertada sobre esta situação, a Google continua a manter a fronteira portuguesa como aquela que foi definida sob coação a Portugal em 1801 por Espanha e França, e não a que o país defende. Alertado e questionado sobre esta situação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros não respondeu ao Observador sobre o tema, nem sobre se vai tomar alguma atitude.
Google não diz que fontes é que utiliza. Direção-Geral do Território não delimita fronteira portuguesa em Olivença. MNE não responde
Mesmo após insistência, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), que trata das relações com Espanha, não diz quando foi a última vez que o Governo português reivindicou este território ao governo espanhol. O MNE não deu também qualquer resposta sobre alguma vez ter alertado a Google quanto a esta falha, nem se pronunciou também sobre se a forma como aparece este troço da fronteira deveria ou não ser alterada ou se considera este território português ou espanhol.
Paulo Otero, constitucionalista e professor na Universidade de Direito de Lisboa, diz ao Observador que vê este silêncio como algo “grave”. “Passa a ser grave se o Governo sabe e não age — implicitamente é um comportamento concordante com a conduta do Google Maps”, refere. O jurista diz que Espanha pode ver nesta omissão do governo português “um trunfo”, e continua: “Sobretudo, se o governo português alertado para isto nada faz junto da administração da Google”.
“Espanha pode ver nesta omissão do governo português um trunfo, sobretudo, se o governo português alertado para isto nada faz junto da administração da Google. Isto é implicitamente um trunfo que se está a dar ao espanhóis”, diz Paulo Otero.
Surge assim a questão sobre qual é a fonte que a Google utilizou para definir esta fronteira. No portal online do Ministério dos Negócios Estrangeiros (https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/), pesquisando-se sobre a questão de Olivença, encontra-se apenas uma referência — um artigo sobre o Congresso de Viena no qual se refere que desde 1815 se espera que seja feita a restituição deste território a Portugal.
O Observador entrou em contacto com a Direção-Geral do Território (DGT), pedindo acesso a um mapa oficial do país. Prontamente, um funcionário da DGT reencaminhou para a Carta Administrativa Oficial de Portugal, referindo que este documento está publicado online e pode ser visto através de um visualizador da respetiva direção. Aí, como em cartas militares portuguesas, a fronteira também não é delineada devido ao conflito existente. Porém, no caso do visualizador da DGT, dependendo do nível de ampliação feito, surge uma delimitação na zona de Olivença quando se faz uma aproximação ao local.
Em resposta por escrito ao Observador sobre esse mapa, a DGT afirma que “a informação visível a cada momento depende do nível de ampliação e do Tema e Cartografia selecionados” e esclarece que, quando surge uma delimitação, se deve aos “limites administrativos”. Como explica ao Observador Francisco Pereira Coutinho, professor de Direito Internacional na Nova School of Law, não é errado por vezes aparecer uma delimitação como a dos mapas da DGT. Isto porque, explica o jurista, para todos os efeitos Olivença tem administração espanhola, apesar de, juridicamente, ser território português.
A DGT não revelou se alguma vez foi contactada pela Google relativamente aos limites fronteiriços portugueses, referindo apenas que a informação do visualizador “é de acesso livre e pode ser usada por qualquer cidadão ou entidade pública ou privada, nacional ou internacional, sem restrições e sem conhecimento prévio da DGT”. Além disso, escuda-se dizendo que “o uso desta informação é da exclusiva responsabilidade do utilizador”.
Kosovo, Gibraltar ou Crimeia. Noutros países, o Google Maps toma decisões diferentes
Não é preciso ir muito longe no Google Maps para perceber que a empresa opta por definir com um tracejado outras fronteiras de zonas disputadas. Como já referimos, também na Península Ibérica, em Gibraltar, a fronteira de Espanha tem um tracejado porque disputa este território com o Reino Unido. Desde 1713 que o território é reconhecido como sendo britânico devido ao Tratado de Utreque. Apesar das sucessivas tentativas do governo espanhol em voltar a ter o domínio desta península — um debate que foi relançando com o Brexit — a governo da região continua a ser inglês. Mesmo assim, a Google reconhece o conflito.
Em todo o mundo há casos em que a Google optou por não criar atritos relativamente a fronteiras e escolhe o tracejado para delimitar as suas fronteiras. Por exemplo, no Kosovo — que declarou a sua independência em 2008 e foi reconhecido como tal por Portugal e vários países nesse mesmo ano, mas que a República da Sérvia continua a reivindicar como sendo parte do seu território — grande parte da fronteira surge a tracejado. A nordeste, na Crimeia — território ucraniano que foi ocupado e anexado ilegitimamente pela Rússia em 2014 –, a Google decidiu também ter uma fronteira a tracejado.
O reconhecimento de conflitos fronteiriços entre países não páram por aqui no Google Maps. Na Abkhazia e na Ossétia do Sul, regiões da Geórgia que, segundo a Rússia e outros países — mas não a Geórgia –, são estados independentes, acontece o mesmo. Este conflito fronteiriço é de tal forma gravoso que, por exemplo, o governo português desaconselha a visita a estes locais a quem for à Geórgia na página oficial do MNE. Mas, mais uma vez aí, também os limites estão a tracejado na plataforma da Google.
Um pouco mais longe, na fronteira entre a Índia, o Paquistão e a China, são de tal forma complexas as fronteiras que o mapa quase parece um bordado em ponto-cruz devido às disputas de limites fronteiriços.
Este último exemplo na Ásia é dos casos mais flagrantes que mostra o “secretismo” que a Google utiliza em relação aos limites dos territórios, como contava em 2020 o The Washigton Post. Segundo o jornal norte-americano, há vários casos em que, dependendo do local onde está o utilizador, as fronteiras surgem definidas de maneira diferente, devido às reinvidicações que cada país faz à tecnológica.
Como comprovou o Observador, basta utilizar uma VPN (ferramenta que permite mascarar a localização do local onde se está a aceder à internet) para as fronteiras mudarem. Se virmos os limites fronteiriços da Índia como se estivéssemos nesse país, as mesmas surgem claramente delineadas. Desativando esta ferramenta — ou seja, se se utilizar o Google Maps a partir de Portugal — surgem fronteiras tracejadas.
Tais decisões afetam áreas marítimas. Dependendo do ponto de onde se acede, o Mar do Japão, que banha o Japão, Coreia do Norte, Rússia e Coreia do Sul, pode mudar de nome para “Mar do Leste”, como a Coreia do Sul defende que se deva chamar. No caso de quem vê a partir de Portugal esta área no Google Maps surgem os dois nomes, apesar de a expressão “também conhecido Mar do Leste” surgir entre parênteses.
Todos estes exemplos mostram três coisas. Primeiro, que não é de todo incomum haver disputas fronteiriças entre países. Segundo, que não é por isso que deixa de haver relações diplomáticas fortes entre nações — no caso da Ucrânia e da Rússia a tensão existente pode estar a precipitar uma guerra, mas no caso de Espanha e do Reino Unido o diferendo a tracejado no Google Maps não parou as “fortes relações bilaterais”, como recentemente as apelidou em comunicado o governo britânico. Terceiro, quer por decisão da Google ou aviso dos Estados, há fronteiras que não são delimitadas pela empresa e ficam a tracejado para evitar conflitos.
Os juristas ouvidos pelo Observador defendem que, “no mínimo”, como expôs Francisco Pereira Coutinho, essa linha deveria estar a tracejado. “A resposta da Google manifesta ignorância sobre a questão jurídico-política de Olivença”, acusa o académico, dizendo também que “o título jurídico é muito mais débil em Gibraltar do que sob Olivença”. Além disso, o especialista em Direito Internacional refere que “se o Estado utiliza e reconhece credibilidade ao Google Maps, então o MNE não poderia tratar estes mapas como uma empresa qualquer e teria a obrigação de pedir a alteração”.
“Se está a tracejado em Gibraltar é porque foram [Google] chamados à atenção sobre a reivindicação espanhola do título jurídico britânico sobre Gibraltar”, refere Francisco Pereira Coutinho presumindo que “em relação a Olivença não houve a mesma pressão”. Na senda das declarações sobre o conflito espanhol, o jurista afirma: “Tendo em conta a importância da Google [plataforma dominante no mercado de mapas digitais, com mais de 80% da quota], diria que seria importante que o MNE se mexesse e esclarecesse a Google que tem de colocar um tracejado nesta fronteira”. E critica a empresa: “A Google está errada. Não há nenhum tratado internacional. Esta fronteira não está delimitada. Tem que haver um tracejado.”
Olivença portuguesa? De jure, “sim”. De facto, “não”
“A questão de Olivença é, acima de tudo, uma questão de Direito Internacional que tem mais de 200 anos e o Estado português nunca se conformou com a questão de Olivença na sequência da Guerra das Laranjas e tem a pretensão que Olivença pertença a Portugal”, refere Francisco Pereira Coutinho. O jurista, que foi consultor do MNE e, com o especialista em relações Mateus Kowalski, escreveu o livro “As fronteiras luso-espanholas: das questões de soberania aos fatores de união“, editado pelo Instituto Diplomático, vai mais longe e afirma: “Em termos de direito internacional a posição portuguesa é muito forte”.
Como explica também Paulo Otero, esta questão tem suscitado alguns problemas ao longo dos últimos dois séculos. “Durante o regime do General Franco, quando existiam portugueses fugidos em Portugal, na sequência de perseguições de natureza política, o regime franquista algumas vezes colocava-os em Olivença para, desta forma, tentar o governo português a pedir a respetiva extradição”, diz o constitucionalista. “Se pedisse, significa que implicitamente reconhecia que Olivença não era território português — ninguém pede a extradição de um português num território português”, adianta.
Apesar disto, continua a existir um ponto crucial quanto à questão de Olivença: “Materialmente, quem exerce os poderes de facto é Espanha”, diz Otero. Francisco Pereira Coutinho explica o mesmo. “De jure” (latim para “juricamente”), Olivença é portuguesa. Porém, “de facto” (latim para o “o que acontece realmente”), é espanhola.
Tal acontece porque, efetivamente, ou de facto, quem tem administrado esse território nos últimos dois séculos é Espanha, que defende que o mesmo é seu. Basta consultar a página oficial do município de Olivença para ver esta pretensão: “O Tratado de Badajoz de 1801 [que foi assinado sob coação] subsiste intacto como base legal da soberania espanhola sobre Olivença”. Noutros documentos oficiais, o governo espanhol defende o mesmo.
Como refere Francisco Pereira Coutinho no livro já referido, de setembro de 1814 a junho de 1815 decorreu em Viena “um dos maiores encontros diplomáticos da história, consagrando os princípios da diplomacia multilateral na Europa”, que teve como objetivo restaurar as fronteiras europeias após as invasões napoleónicas. Dessa reunião saiu “um texto assinado por todas as potências europeias em 9 de junho de 1815, o Ato Final do Congresso de Viena”.
No documento, no artigo 105º, refere-se: “As Potências, reconhecendo a justiça das reclamações formuladas por Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e do Brasil, sobre a vila de Olivença e os outros territórios cedidos à Espanha pelo Tratado de Badajoz de 1801, e considerando a restituição destes objetos como uma das medidas adequadas a assegurar entre os dois Reinos da Península aquela boa harmonia, completa e estável, cuja conservação em todas as partes da Europa tem sido o fim constante das suas negociações, obrigam-se formalmente a empregar por vias conciliatórias os seus mais eficazes esforços a fim que se efetue a retrocessão dos ditos territórios em favor de Portugal“.
A devolução deveria ter ocorrido “rapidamente”, diz o mesmo artigo. Porém, nunca aconteceu — foi até uma das razões pelas quais Espanha só em 7 de maio de 1817 assinou esse tratado. Defendem os juristas portugueses que este documento anulou sem qualquer dúvida os tratados assinados durante a guerra, como o Tratado de Badazoz de 1815, que Espanha diz que continua válido. Desde aí, o troço da fronteira com Espanha na zona de Olivença nunca foi oficialmente delimitado, continuando o litígio por ser resolvido.
Um conflito “congelado” e “adormecido” mas que continua a ter “importância”
Não se chegando a acordo sobre o conflito — em 2003, inclusive, como escreveu o jornal espanhol ABC, António Martins da Cruz, então ministro dos Negócios Estrangeiros português, chegou a dizer que era uma questão que estava “congelada” –, o poder de facto de Espanha continua. Nas últimas cimeiras luso-espanholas o tema também não tem sido colocado em cima da mesa. Não obstante, há uma questão que é inultrapassável pelos governos portugueses para poderem abdicar deste território, explicam os juristas ouvidos pelo Observador: a Constituição da República Portuguesa (CRP).
No artigo 5º da CRP está escrito que “Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira”. Além disso, no ponto três, estipula-se que “o Estado não aliena qualquer parte do território português ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce, sem prejuízo da retificação de fronteiras”.
A palavra chave neste artigo, explicam tanto Paulo Otero como Francisco Pereira Coutinho, é “historicamente”. “O advérbio de modo historicamente é para compreender a situação de Olivença”, diz Otero. Também por isso é que “o estado português nunca se conformou” com esta questão acrescenta Pereira Coutinho — porque não poderia, clarifica.
Este ponto leva a que a situação desta fronteira seja vista, por vezes, como uma situação “especial”, refere ainda Pereira Coutinho. Por exemplo, o Estado português dá cidadania portuguesa a quem nasce em Olivença, ficando com dupla nacionalidade (portuguesa e espanhola) — é possível pedi-la desde 2014. Em 2019, aliás, “319 oliventinos, com dupla nacionalidade, votaram [nas eleições legislativas] pela primeira vez via postal”, escreveu a Lusa.
Este mês, num artigo sobre a influência e presença portuguesa no local, o DN avançou que “há cada vez mais oliventinos a pedir a nacionalidade portuguesa”. “São 1300 e muitos potenciais eleitores”, avançou o mesmo órgão de comunicação social, tendo alguns já recebido carta para o voto à distância para as eleições legislativas do próximo dia 30 janeiro.
No entanto, estas soluções mostram que para a União Europeia a questão de Olivença deixou de ser um problema tão grande. “A presença da União Europeia veio esbater a questão das fronteiras e adormeceu esta questão”, afirma Paulo Otero. “A única diferença é que em Olivença não temos placa” ao entrar-se no território de facto espanhol, refere Pereira Coutinho. Mesmo assim, o académico afirma que “não qualifica” a existência da União Europeia como pretexto para se tornar Olivença “numa não questão”.
A UE “torna a questão de Olivença menos significativa”, mas “continua a haver importância”, diz Pereira Coutinho relembrando que o caso de Gibraltar continuou sempre a sê-lo mesmo quando o Reino Unido fazia parte da UE. Paulo Otero segue a mesma linha de pensamento e refere: “A União Europeia já nos fez perder tanta soberania que não podemos por vezes deixar de reivindicar aquilo que resta do pouco de soberania, tanto mais não seja simbólica sobre o território”.