O grupo de ativistas português Climáximo, conhecido pelas manifestações radicais em defesa do clima que ultrapassam frequentemente a barreira da legalidade, usou esta quinta-feira a tragédia humanitária que se vive há mais de três anos no norte de Moçambique para difundir e apoiar uma campanha mediática de ataque à Galp, acusando a empresa energética portuguesa de ter um papel no conflito armado que se vive na província moçambicana de Cabo Delgado.
Na manhã desta quinta-feira, a Galp foi alvo de uma campanha de desinformação por duas vias. Nas primeiras horas do dia, surgiram em vários pontos da cidade de Lisboa cartazes com a imagem gráfica da Galp e com as mensagens “O nosso futuro é CO2LONIALISMO” (com críticas à exploração de gás em Cabo Delgado) e “Mais lucro, menos pessoas” (com críticas aos despedimentos associados ao fecho da refinaria de Matosinhos). Depois, foi colocado em circulação um comunicado de imprensa falso dando conta da saída da empresa do consórcio de exploração de gás natural no norte de Moçambique. Por ter tido origem num endereço legítimo, a informação foi mesmo difundida por vários meios de comunicação social e obrigou a empresa a emitir um desmentido.
Ainda durante a manhã, o grupo ativista Climáximo enviou ao Observador um comunicado de imprensa mostrando-se solidário com a campanha. “Publicidade falsa em Lisboa, que denuncia papel da Galp no conflito em Cabo Delgado e fecho da Refinaria de Matosinhos, recebida com solidariedade pelos coletivos ativistas Justiça Ambiental e Climáximo”, lê-se no comunicado, subscrito também pelo grupo ambientalista moçambicano Justiça Ambiental. Numa formulação pouco clara, o coletivo ambientalista mostrou-se “solidário” com a campanha, que disse ser internacional, mas não assumiu a responsabilidade sobre a colocação dos cartazes em Portugal.
Questionada sobre pelo Observador, a porta-voz do movimento, Mariana Rodrigues, disse não conhecer a identidade dos responsáveis pela difusão dos cartazes falsos. “Nós fomos contactados por ativistas internacionais da iniciativa ‘Clean Gas Is A Dirty Lie’, que estiveram em cerca de dez países por toda a Europa. Disseram-nos que a campanha estava a acontecer e aproveitámos para fazer o comunicado”, disse Mariana Rodrigues, repetindo algumas das alegações vagas desse comunicado, como a de que “a Galp é colonialista”, a de que as empresas “expropriaram famílias” em Moçambique ou a de que “o projeto do gás está a atacar a liberdade de imprensa”.
Perante a insistência do Observador relativamente à autoria e à distribuição dos cartazes falsos sobre a Galp, a porta-voz do Climáximo referiu apenas que essa informação é “do âmbito da ‘Clean Gas Is A Dirty Lie’” e disse não conhecer as identidades das pessoas por detrás do projeto. “Essas informações não são partilhadas connosco”, disse Mariana Rodrigues. Porém, um outro responsável do Climáximo deu ao Observador uma explicação contraditória. “Não podemos divulgar porque eles pediram-nos anonimato”, disse Diogo Silva, assessor de imprensa do coletivo, admitindo nem conhecer “a intenção total de quem fez a ação ao não se ter identificado”, mas reforçando que os membros do Climáximo estão “totalmente solidários”.
O que é certo é que o Climáximo tem — e assume — ligações aos responsáveis pela difusão dos cartazes falsos. Na verdade, o coletivo publicou nas redes sociais um vídeo que mostra detalhadamente como jovens ativistas forçaram os expositores e afixaram os cartazes falsos em vários pontos da capital portuguesa, embora não sejam totalmente visíveis os rostos dos envolvidos. Questionados sobre a divulgação deste material, os responsáveis do grupo dizem que se limitaram a partilhar o que receberam dos anónimos elementos do tal grupo “Clean Gas Is A Dirty Lie”. “Passaram-nos a informação e nós republicámos”, garantiu Diogo Silva. “Somos simplesmente informados e estamos solidários com a informação que estamos a partilhar”, detalhou Mariana Rodrigues.
Ainda assim, o Climáximo não hesita em apontar o dedo à Galp pelo que está a acontecer em Moçambique há mais de três anos.
Desde outubro de 2017, a província moçambicana de Cabo Delgado tem sido devastada por um mortífero conflito entre insurgentes associados a uma célula africana do Estado Islâmico e as forças armadas de Moçambique. A guerra já deixou mais de meio milhão de pessoas sem casa e tem sido marcada por alguns massacres particularmente bárbaros, incluindo a decapitação de 52 jovens na aldeia de Xitaxi em abril do ano passado. Mais recentemente, os terroristas tomaram o controlo da importante vila costeira de Palma, obrigando à fuga de milhares de pessoas para a capital Pemba. Acredita-se que muitos habitantes da vila ainda continuem escondidos dentro do mato. Nesta altura, os terroristas já controlam uma parte significativa da província de Cabo Delgado, onde abundam os recursos naturais — especialmente o gás.
“É preciso que a Galp saia imediatamente de Cabo Delgado”, exige a porta-voz do Climáximo, Mariana Rodrigues. O Observador questionou a responsável sobre se esta campanha não representa um aproveitamento despropositado de uma tragédia humanitária, mas Mariana Rodrigues focou-se essencialmente na questão ambiental e acusou a Galp de contribuir para o problema do terrorismo na região. “O que está a acontecer em Cabo Delgado é super sério, temos noção disso, e é preciso perceber o que está a acontecer e qual é a ligação que a exploração dos gás fóssil no local tem com isto. As empresas expropriam famílias e aumentam o nível de emissões num país que está a sofrer em primeira mão com as alterações climáticas”, disse a porta-voz do Climáximo, insistindo que a exploração de gás em Cabo Delgado “permitiu que o terrorismo pudesse proliferar”.
“Esse é o motivo de base do que está a acontecer. A Galp sabe que isto é verdade, sabe que isto está a acontecer e escolhe permanecer no local”, continua a porta-voz, mas sem explicar que fundamentos ou detalhes a levam a lançar estas acusações. Pelo contrário, remete esses argumentos para os ativistas moçambicanos do movimento Justiça Ambiental. No comunicado que enviaram na manhã de quinta-feira, os ambientalistas dizem mesmo que a exploração de gás em Moçambique reflete a intenção portuguesa em explorar petróleo e gás “nos mesmos países que Portugal colonizou no passado” e exige uma “transição justa descolonial” para a Galp.
Também questionados sobre se apoiam o recurso a meios ilegais para estas campanhas, os responsáveis do Climáximo contornaram por várias vezes a questão. Entre risos, o assessor de imprensa do grupo ambientalista preferiu mesmo sublinhar, com leveza, a escolha do “dia das mentiras” para “obrigar a Galp a dizer a verdade”. No vídeo divulgado pelo Climáximo é possível ver alguns jovens, vestidos com coletes refletores amarelos, a abrir à força vários expositores de cartazes na cidade de Lisboa e a colarem, por cima dos cartazes publicitários originais, os pósteres falsos — que recorrem à imagem institucional da Galp sem terem obtido autorização para o efeito. Na verdade, a prática de crimes faz parte do modus operandi deste grupo ambientalista, que tem inclusivamente um manual interno que ensina aos seus membros as táticas para resistir às “forças repressivas” (como chamam à polícia) e que inclui até um capítulo dedicado à “possibilidade de detenção”.
Em resposta ao Observador, a empresa JCDecaux, responsável por grande parte dos expositores de cartazes em que foram colocados os pósteres falsos, disse que “o caso em apreço configura um ato de vandalismo e má fé, sublinhando que jamais teve conhecimento e/ou envolvimento prévios”. “No seio de uma operação de manutenção, foram detetados alguns equipamentos que, após terem sido forçados, foram alvo da colocação indevida dos cartazes do referido movimento“, acrescenta a empresa.
“As ocorrências em questão foram detetadas apenas em Lisboa, tendo os cartazes sido prontamente removidos. Reforçaram-se, desde logo, as operações de verificação em várias cidades do país. Até ao momento, nenhum outro caso foi observado. Face às caraterísticas do ato em causa, a JCDecaux, num cabal alinhamento com a Galp, acionou de imediato os meios jurídico-legais à disposição”, diz ainda a empresa que faz a manutenção dos expositores dos cartazes publicitários.
Comunicado falso da Galp com frases retiradas a ativista moçambicano
Também esta quinta-feira, o comunicado de imprensa falso colocado a circular em nome da Galp lançou a confusão sobre a participação da empresa na exploração de gás em Cabo Delgado. O suposto comunicado, que foi enviado do endereço habitualmente usado pelo departamento de comunicação da empresa e era assinado por um dos seus responsáveis de comunicação, dizia que a Galp iria vender a sua participação nos projetos de exploração de gás em Pemba “devido ao clima de instabilidade, violência terrorista e corrupção em Moçambique”.
“A gota de água na tomada de decisão foi a transferência ilegal para compra de armas no valor de 2.000 milhões de dólares [1.704 milhões de euros] por parte da Credit Suisse e do VTB Bank para o Governo de Moçambique”, referia ainda o comunicado falso, onde se lia que o executivo moçambicano era “intrinsecamente propenso a transações corruptas”.
O comunicado falso acrescentava ainda que a empresa, “como investidor responsável, assegura sempre que as suas atividades financeiras transparentes servem de exemplo para uma África livre de corrupção”, pelo que “não tolera os desaparecimentos, detenções e torturas de jornalistas que relatam sobre a indústria do gás em Cabo Delgado”. Ao mesmo tempo, a Galp estaria à espera de “resposta das autoridades locais, respeitando a soberania do Estado moçambicano, sobre estes relatos e o número de desalojados no Afungi LNG Park em Cabo Delgado que, soubemos recentemente, ascendeu às 550 famílias, em vez das apenas três pessoas que nos tinham sido reportadas inicialmente”.
A Galp apressou-se a desmentir o comunicado. “A Galp desmente categoricamente as notícias publicadas na manhã desta quinta-feira sobre a sua alegada saída de projeto de gás natural em Moçambique. Estas notícias têm por base um comunicado falso a que a Galp é alheia”, disse a empresa.
Quem foram, afinal, os autores do comunicado falso emitido em nome da Galp? O Climáximo garante que não sabe, mas o documento incluía três referências em comum com a informação divulgada pouco depois pelo grupo ambientalista: a menção dos 2 mil milhões de dólares em empréstimos com garantias do estado moçambicano, alegadamente só possíveis devido aos projetos de gás (uma controvérsia já sujeita a auditorias em 2017, pelo que dificilmente poderia ser considerada como a gota de água de qualquer problema atual); o específico número de 550 famílias alegadamente desalojadas para a instalação das explorações, e a questão dos desaparecimentos de jornalistas críticos da exploração de gás em Cabo Delgado. Apesar da linguagem praticamente decalcada entre os dois documentos (há frases exatamente iguais), os responsáveis do Climáximo ouvidos pelo Observador insistiram que não estiveram envolvidos na produção do comunicado falso.
“Não temos nada a ver com isso”, riu-se o assessor de imprensa do Climáximo. “Mas, seja quem for que tenha feito, estamos totalmente solidários. Não faço ideia de se são as mesmas pessoas. Mas é preciso falarmos do que está a acontecer em Cabo Delgado”, acrescentou. Também a porta-voz do movimento, Mariana Rodrigues, disse não ter conhecimento do comunicado falso.
No comunicado do Climáximo, as informações sobre a situação em Cabo Delgado são atribuídas, entre aspas, ao ativista moçambicano Daniel Ribeiro, que integra o movimento ativista Justiça Ambiental. Já o comunicado falso feito em nome da Galp inclui pelo menos uma frase integralmente repetida, mas atribuída a Andy Brown, CEO da Comissão Executiva da empresa.
Ao Observador, Daniel Ribeiro confirmou ter sido o autor das frases citadas no comunicado do Climáximo, mas disse nada ter a ver com o comunicado falso da Galp. Aliás, o ativista moçambicano diz também ter recebido imagens do comunicado falso e ter reconhecido algum “copy-paste” das suas declarações, mas não conseguiu identificar a origem. Daniel Ribeiro disse ter participado recentemente em conversas e webinares com vários grupos de ativistas climáticos portugueses — e não apenas com o Climáximo —, e nesses encontros ter divulgado aquela informação, relativamente a pelo menos um caso de um jornalista alegadamente desaparecido depois de publicar notícias sobre o projeto do gás, sobre o número de famílias desalojadas e sobre a corrupção no governo angolano.
“É uma coisa que eu disse”, confirmou Daniel Ribeiro. “Se pesquisar, essa citação aparece várias vezes. Aproveitaram-se do que eu disse. É capaz de ter sido algum grupo que esteve num desses webinares, ou que estiveram numa sessão sobre o assunto.”
Ao Observador, fonte oficial da Galp disse que a empresa está a ser “alvo de uma ação maliciosa” que “usa indevidamente a marca e o bom nome da empresa, e aproveita a trágica situação que se vive em Moçambique para difundir notícias falsas e procurar denegrir a imagem da empresa em cartazes”.
“Juntamente com as entidades lesadas estão a ser adotadas as medidas adequadas para reagir a esta situação”, diz a empresa, antes de insistir naquilo que dissera de manhã: “Além disso, a Galp desmente categoricamente as notícias publicadas sobre a sua alegada saída do projeto de gás natural em Moçambique, que tiveram por base um comunicado falso enviado às redações, ao qual a Galp é alheia.”
Qual o papel do gás no conflito de Cabo Delgado?
As certezas dos elementos do Climáximo com quem o Observador falou serão, segundo os próprios, sustentadas em informações de Daniel Ribeiro, do movimento “Justiça Ambiental”. Mas, numa conversa com o Observador a partir de Moçambique, o ativista moçambicano tem um discurso muito diferente do dos ativistas portugueses contra a Galp.
Daniel Ribeiro sustenta que o conflito atual que se vive no norte do país é indissociável do contexto criado na região nos últimos anos, com a exploração intensiva de gás natural por parte de várias empresas globais, mas não estabelece uma ligação direta entre a Galp — ou qualquer empresa — e a proliferação do terrorismo. Põe, pelo contrário, o ónus na forma como os vários projetos têm sido geridos pelo governo, desprotegendo a população.
“Várias pessoas foram afastadas dos seus locais e não lhes foram dados terrenos. Os pescadores deixaram de ter acesso ao mar. Quando se tira o meio de subsistência às pessoas, isso cria desespero.” Para Daniel Ribeiro, esse foi um fator decisivo para o aprofundamento de uma grande fragilidade social no norte do país. “A maneira como o governo está a lidar com as comunidades e a falta de alimento na área causa uma situação muito perigosa. Os jovens estão sem esperança, zangados, frustrados. E a narrativa extremista pega por aí. O radicalismo islâmico é um perigo, claro, que existe há muito tempo, e só há poucos anos está a ter adesão entre os jovens”, diz o ativista, atribuindo essa difusão do radicalismo entre a povoação ao descontentamento causado pela imposição dos projetos de gás na região.
Embora atribua a responsabilidade pela situação ao governo moçambicano, Daniel Ribeiro diz, ainda assim, que as empresas internacionais que estão a investir na região deviam ter esta realidade social em conta. Por isso, admite que gostou da campanha lançada esta quinta-feira em vários países europeus contra a exploração de gás. “Foi uma surpresa, mas achei cómico e uma ideia muito original.”