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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Há 10 anos começaram a desaparecer pessoas na região centro. Caso "idêntico" descoberto em outubro

Vítima conseguiu fugir e alertou a PJ. Pessoas sem abrigo e mendigos eram raptados e levados para Espanha. A rede foi desmantelada, mas o caso surpreendeu as autoridades: era igual a outro de 2009.

Os inspetores da Diretoria do Centro da Polícia Judiciária (PJ) podiam jurar que aquilo era um déjà vu. Chegara-lhes a informação de que um português tinha batido à porta de uma instituição ali na zona de Coimbra a dizer que tinha fugido de Espanha. Lá teria sido explorado em campos agrícolas, durante quase dois anos. Estávamos em 2015 e o homem tinha, finalmente, conseguido escapar. “Fugiu e denunciou o caso, sempre com muito medo, porque podiam tentar levá-lo novamente”, explicou fonte da PJ ao Observador.

O caso — que viria a ser denominado de Operação Lusar — era de tráfico de seres humanos para exploração laboral. E aquele era apenas um dos vários homens que tinham sido levados — à força ou pela força da manipulação — para Espanha, a fim de serem explorados. O fugitivo deu às autoridades “informação preciosa” que lhes permitiu chegar à rede criminosa e deter os seus membros, mas a investigação foi demorada: essas detenções só aconteceram três anos depois, em outubro do ano passado.

Aquela primeira informação foi, ainda assim, essencial para relacionar o caso com o desaparecimento sem rasto de tantos outros homens, dos quais a PJ tinha conhecimento desde 2013. Arrumadores de carros, sem-abrigo e toxicodependentes, que eram abordados para irem trabalhar para Cáceres. Se recusassem, eram obrigados a entrar num carro e já só paravam em Espanha, levados por uma rede composta por, pelo menos, cinco pessoas.

O cenário não era só preocupante: durante a investigação, os inspetores pareciam estar a reviver um outro caso que tinham investigado seis anos antes. Era tirado a papel químico, só que, em 2009, nenhuma das vítimas tinha conseguido fugir.

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A Operação Lusar foi concluída no final do ano passado pela Diretoria do Centro da Polícia Judiciária (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Todos homens e com um perfil em comum. Eram levados em carrinhas e desapareciam

O tráfico de pessoas no Código Penal

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1 – Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:

a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;

é punido com pena de prisão de três a dez anos.

Excerto do artigo 160º do Código Penal

Era um crime recente, para todos. Só após 2007 é que o tráfico de seres humanos passou integrar o Código Penal. Até então, o tráfico de pessoas era punível apenas quando a sua finalidade era a exploração sexual. Ainda assim, aparecia como um crime contra a autodeterminação sexual. “Em 2007, dá-se a grande alteração do paradigma”, considera fonte da Diretoria do Centro da PJ, que, anos mais tarde, investigaria um caso de tráfico de pessoas — pela primeira vez, é punível independentemente da sua finalidade.

Entre 2009 e 2010, “começaram a desaparecer pessoas” dos distritos de Viseu, Coimbra, Castelo Branco e Guarda. Os desaparecimentos chegavam ao conhecimento da PJ através dos Centros de Saúde ou Juntas de Freguesia — “normalmente, aldeias perdidas nas serras” — onde habitualmente eram vistas, mas raramente por algum familiar. “Há muitos desaparecimentos de pessoas com problemas mentais que se perdem e mais tarde aparece o cadáver. Ou jovens que desaparecem uns dias porque tiveram algum problema com os pais, por exemplo. Estes desaparecimentos, porém, eram estranhos e tinham traços em comum”, explica a fonte policial que contou toda a história ao Observador.

Que traços? “Eram todos homens e, normalmente, toxicodependentes ou ex-toxicodependentes, alcoólicos ou ex-alcoólicos, pessoas com algum problema mental ou sem grande suporte familiar ou social ou mesmo a viver na rua”, diz ainda a fonte, explicando a escolha dos alvos: “Pessoas que eram facilmente seduzidas”.

Ao detetar alguns elementos transversais a todos os casos, a PJ começou a investigar estes “desaparecimentos misteriosos”.

“Eram todos homens e, normalmente, toxicodependentes ou ex-toxicodependentes, alcoólicos ou ex-alcoólicos, pessoas com algum problema mental ou sem grande suporte familiar ou social ou mesmo a viver na rua”
Fonte da PJ

O facto de muitas destas pessoas não terem um suporte familiar foi a primeira dificuldade com que a PJ se deparou. “No fundo, muitos não tinham ninguém que desse por falta deles ou que nos pudesse esclarecer as circunstâncias do desaparecimento”. O relato de algumas testemunhas deu as primeiras pistas para resolver o mistério. Várias pessoas questionadas pela PJ relatavam o mesmo cenário: “Ele foi abordado por uns indivíduos que andavam com uma carrinha“. Esta descrição foi fundamental: “Isso permitiu-nos perceber claramente, depois de várias diligências, que as pessoas que desapareciam das várias aldeias eram todas encaminhadas para Espanha”.

Permitiu também aos inspetores chegar ao grupo que os levava para lá. As vítimas eram escolhidas com critério: “Pessoas facilmente manipuláveis e sem capacidade para se autodeterminar”. Depois, na abordagem, prometiam um bom emprego, um salário acima dos 500 euros e um horário normal. “Algumas iam voluntariamente, embora ao engano”. Não era difícil porque a maioria das vítimas não tinha uma família que os prendesse cá e muitos deles viviam na rua: a proposta que lhes era prometida, por má que fosse, era sempre melhor do que as condições de vida que tinham.

Aqueles que não iam de boa vontade, acabavam por ser introduzidos à força nessas carrinhas. Além das pessoas que iam ao engano, houve também outras que foram claramente vítimas de sequestro”. Em muitas situações, as pessoas só se apercebiam quando já estavam do lado de lá.

Os desaparecimentos misteriosos chegaram a conhecimento da PJ entre 2009 e 2010 (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Tomé estava num café, por volta das 20h00, quando o irmão lhe disse para ir “falar com umas pessoas que estavam à sua espera” na rua, lê-se no acórdão do Tribunal Judicial de Nelas, que viria a condenar a rede e ao qual o Observador teve acesso. Lá fora, Tomé encontrou uma carrinha com duas pessoas no seu interior, que lhe pediram para entrar. E entrou. Fecharam a porta, arrancaram e só pararam a muitos quilómetros do local onde o tinham sequestrado. Na nova localização, pediram-lhe que “telefonasse para casa e dissesse que estava bem”. Ameaçado, assim o fez.

Já João foi abordado por um traficante que, na verdade, era seu conhecido há cerca de quatro anos. Pediu-lhe para entrar no seu carro, “dizendo-lhe que iam mais à frente dar de comer a umas galinhas“, lê-se no acórdão. Com a desculpa de que teriam afinal de ir à cidade da Guarda porque tinha lá um carro avariado, acabaria também bem mais longe. Estavam em Espanha. Eles e mais de uma dezena de homens.

Uma família que queria dinheiro fácil transformada numa rede de tráfico

A rede era constituída por 12 elementos — todos familiares, à exceção de um. Eram de nacionalidade portuguesa, mas tinham casas em Espanha. Era lá que, pelo menos, seis deles viviam sazonalmente. Mudavam-se no período das podas e da apanha da fruta e, com eles, levavam também os portugueses que tinham conseguido raptar — mais um entrave para que o grupo fosse detetado pelas autoridades. Os traficantes retiravam ainda os documentos às vítimas “sob o falso pretexto de que visavam a regularização da situação laboral“. Uma estratégia que dificultava ainda mais qualquer hipótese de fuga.

Um impedimento que não travou a investigação em Portugal. “Pedimos a colaboração da Guardia Civil e do Eurojust para haver um contacto mais estreito entre as autoridades portuguesas e espanholas”, disse fonte da PJ ao Observador. No ano seguinte, em 2011, a rede estava praticamente descoberta e “marcou-se uma operação com buscas do lado espanhol e do lado português, com detenções de suspeitos e resgate de vítimas, que foram acolhidas em instituições”.

Descoberta a forma como a rede actuava, restou apenas perceber algumas das suas características. O esquema estava montado, pelo menos, desde 2007. Foi nesse ano que quatro membros da família decidiram arranjar uma “forma de obter dinheiro de modo fácil e sem trabalhar“, segundo se lê no acórdão. “Arranjar trabalhadores de nacionalidade portuguesa para trabalhar na agricultura em Espanha”, continua o documento. “É uma atividade muito rentável, a do tráfico”, acrescenta fonte da PJ.

"Decidiram (...) como forma de obter dinheiro de modo fácil e sem trabalhar, angariar trabalhadores de nacionalidade portuguesa para trabalhar na agricultura em Espanha"
Acórdão do Tribunal Judicial de Nelas

Assumiam-se como intermediários junto de empresários espanhóis à procura de mão de obra para trabalhar nos campos agrícolas de que eram donos. Deslocavam-se para zonas onde havia uma determinada campanha agrícola e apresentavam-se. “Tem aqui um grande campo de apanha de pimento. Você precisa aqui de 20 ou 30 pessoas durante um mês. Eu trago-lhe essas pessoas”, exemplificou fonte da PJ ao Observador.

Depois apareciam com mão de obra e o empresário “apenas queria fosse feito o trabalho”. A alimentação e a dormida era da responsabilidade do intermediário. “Eles precisam de mão de obra. Aparece-lhes ali alguém que lhes facilita a procura, com pessoas prontas para trabalhar, e os empresários aceitam. No final do mês, pagam ao intermediário na convicção de que ele vai pagar aos trabalhadores e estão descansados”.

Os elementos do grupo foram condenados, em 2013, a penas de prisão efetiva (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Um elemento do grupo foi condenado a 16 anos de prisão efetiva

A realidade era, porém, totalmente diferente — por vezes desconhecida pelos proprietários, por vezes ignorada. A rede “apenas se preocupava em dar alguma alimentação, sem ser de grande qualidade, a suficiente para sobreviverem” aos trabalhadores. Dava-lhes também “alguma roupa para andarem minimamente vestidos” e punha-os a dormir num “barracão”.

Além disso, os membros da rede recebiam dos proprietários todo o dinheiro para pagamento dos salários aos trabalhadores. “O intermediário, no final da campanha, ia receber o salário daquela gente toda”, mas “não entregavam [os salários] aos trabalhadores, ou entregavam apenas uma pequena parte“, lê-se no acórdão que detalha ainda que, por vezes, o dinheiro era transferido para uma “conta bancária do trabalhador, que um dos arguidos abria e movimentava, levantando todas as quantias que aí iam sendo depositadas”.

"A retribuição era paga pela entidade patronal espanhola aos arguidos, que a não entregavam aos trabalhadores, ou entregavam apenas uma pequena parte, antes ficavam com ela e a gastavam em proveito próprio"
Acórdão do Tribunal Judicial de Nelas

Os elementos do grupo foram condenados, em 2013, a penas de prisão efetiva, mas apresentaram recurso e ficaram em liberdade. “Andaram por aí, alguns já estavam novamente a iniciar a atividade”, conta fonte da PJ. Em 2016, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão da primeira instância — um deles foi condenado a 16 anos de prisão efetiva, outro a sete e outro a um ano — e emitiu mandados de detenção. “Foram detidos. Uns estavam cá, outros em Espanha. E estão a cumprir as suas penas”.

Caso descoberto em outubro imita o mesmo esquema

A PJ espera que este fim seja o mesmo para as cinco pessoas detidas em outubro do ano passado, num caso que consideram “idêntico”. “Começava com a abordagem em Coimbra a arrumadores de carros, sem-abrigo, toxicodependentes e outros perfis semelhantes. Perguntavam-lhes se queriam ir trabalhar para Espanha. Quando percebiam que não queriam ir a bem, obrigavam-os a entrar dentro de um carro. De Coimbra diretamente para a zona de Cáceres”, explica fonte da PJ, garantindo que, embora esta rede também seja constituída por uma família, não está relacionada com o caso detetado há dez anos.

[Veja o vídeo da Operação Lusar, levada a cabo no dia 16 de outubro pela Guardia Civil e pela PJ]

A investigação começou depois de terem ficado a saber do relato do português, que bateu à porta de uma instituição da zona de Coimbra, fugido de Espanha, para onde tinha sido levado à força.

“Pedimos novamente colaboração à Guardia Civil e a intermediação da Eurojust. Fomos percebendo a dinâmica do grupo, como é que eles se movimentavam em Espanha e marcámos uma operação”, acrescentou ainda. Três anos depois da denúncia, avançaram para o terreno, a 16 de outubro do ano passado. Nesse dia, foram realizadas buscas em Portugal e Espanha. Na operação foram detidas cinco pessoas de nacionalidade portuguesa: um em Portugal e quatro em Espanha.

Ao traficante detido em Portugal foi aplicada a medida de coação de prisão domiciliária com pulseira eletrónica. Os quatro detidos em território espanhol, com idades entre os 24 e os 58 anos, foram extraditados para Portugal e ficaram em prisão preventiva. Aguardam o julgamento, enquanto os inspetores da PJ esperam ver este caso com um fim semelhante do de há dez anos.

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