O Tratado de Versalhes ficou para a História como uma espécie de manual negro da diplomacia. Vistas à distância, todas as suas cláusulas e o seu espírito parecem anunciar a vingança que o Nazismo traria: a Alemanha humilhada, empobrecida e afogada em dívidas haveria de reagir; não havia, sequer, maneira de cumprir o Tratado. As condições eram de tal maneira pesadas, a Indústria Alemã sofria tais perdas, que seguir o Tratado significaria destruir a Alemanha.
De trás para a frente, a História parece-nos lógica; no entanto, logo em 1919, pouco depois do fim da conferência, saiu um pequeno livro que há de figurar para sempre na galeria das previsões mais certeiras de todos os tempos.
O grau premonitório de As Consequências Económicas da Paz é tal, que a interpretação da História, das relações do Homem com as matérias-primas e até das ambições diferentes das sociedades nos parece uma ciência de regra e esquadro. A argúcia de John Manyard Keynes é tão evidente, a sua interpretação dos papéis de Clemenceau e de Wilson tão cristalina, a lógica de cada raciocínio tão clara, que a notável coincidência entre as previsões de Keynes e os acontecimentos históricos nem seria necessária para fazer deste o grande livro de interpretação de Versalhes.
E, na verdade, as consequências só tornaram imorredoura uma tese que, no seu tempo, já era quase universal. Se a Sociedade das Nações é, desde o princípio, vista como uma organização prenhe de boas intenções algo confusas, vazia e impotente em toda a sua retórica grandíloqua e hipócrita, ou se até os povos vitoriosos olharam para as cláusulas do Tratado com a má consciência que permitiu, nos anos seguintes, que Hitler atropelasse os acordos sem consequências de monta, muito disso se deve à análise de Keynes.
Em 1919, Keynes não tinha ainda escrito as suas grandes obras dos anos trinta, como o Tratado sobre o Dinheiro ou a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, mas já era um académico suficientemente reputado para ser nomeado pelo governo Inglês como consultor nas reuniões que viriam a firmar o Tratado de Versalhes e a formar a Sociedade das Nações. Keynes, aliás, tinha quatro anos antes publicado um Estudo sobre A Economia da Guerra na Alemanha que o capacitava melhor do que ninguém para perceber as grandes forças e fraquezas da Indústria Alemã, e em que medida as restrições impostas pelos vencedores teriam impacto na economia dos vencidos.
Acontece que o livro de Keynes, escrito na ótica do observador privilegiado, não é apenas um relatório técnico com previsões económicas mais ou menos certeiras. O que é interessante nas Consequências Económicas da Paz é a forma como a minúcia técnica evolui para uma obra sobre a Justiça das sanções, com uma balzaquiana galeria de personagens e ambições em conflito, com uma muito clara demonstração do peso das mexidas macroeconómicas nas vidas das pessoas comuns e uma visão estratégica muito interessante sobre a importância de rios, bancos e caminhos-de-ferro nas relações de poder entre as várias nações.
A partir do Tratado de Versalhes, Keynes traça um retrato do capitalismo e das relações de interesse na Europa que vão muito para lá do Tratado. Para Keynes, o objetivo do Tratado passaria por restaurar o equilíbrio numa Europa que precisaria desse equilíbrio para sobreviver e para, dentro do possível, manter o sistema económico e governativo que a segurara nas décadas anteriores. Acontece, porém, que a Europa seria, nisto, inimiga de si própria. Para o equilíbrio de poder era necessária a mesma reserva que levava Clemenceau a olhar para a Alemanha como uma ameaça constante, que só poderia ser contida por uma “paz Cartaginesa”. Para a manutenção do sistema capitalista, seria necessária manter os padrões de acumulação que a Guerra tinha tornado impossíveis. E, mesmo que a visão dos grandes Homens da conferência fosse lúcida, Lloyd George, Clemenceau e Wilson tinham, ao mesmo tempo, de provar a generosidade para com o mundo e salvaguardar os interesses dos seus países. O jogo de intenções contraditórias, de mundos em conflito e de subtilezas diplomáticas é verdadeiramente apaixonante; Keynes, além de o identificar com olho de romancista, também o prova com o seu óculo científico.
Explica ele que o mundo do pré-guerra assentava na manutenção de vários fatores que a Europa se habituara a ver como permanentes mas que, na verdade, poderia ser impossíveis de recriar. A vida Europeia dependia de um complicado e artificial sistema de organização em que vários países tinham as suas indústrias especializadas, mas em que uma circulação estável e padronizada dos bens – aliada à subsistência alimentar trazida do novo mundo – permitia uma economia de auto-subsistência. Esta economia era, também, assente na grande acumulação de capital, que permitia a exploração dos recursos do Novo Mundo, e que se mantinha numa curiosa aliança com a moral Vitoriana. Isto é, essencial para a economia do pré-guerra era que o capital se mantivesse disponível e que a ostentação não fosse escandalosa, sob perigo de revolta das classes trabalhadoras. O consumo não só arruinaria o crédito e a vantagem Europeia face aos outros continentes – a capacidade financeira – como traria a público a desigualdade que o puritanismo de certa maneira escondia. Como diz Keynes, “a virtude do bolo estava em nunca ser comido”.
Ora, com a guerra a comer recursos e a mostrar, com isso, que as fortunas financeiras de nada valiam se não se conseguiam transformar nos inexistentes ou cada vez mais caros bens, a ideia de poupança sofreu um abalo grande. Ao mesmo tempo, o crescimento, até populacional, dos Estados Unidos tornava a vantagem da Europa cada vez mais pequena. Antes da Guerra, a grande capacidade de produção do Novo Mundo tinha de ser escoada para o continente com mais população e maior poder de compra – a Europa; com o crescimento dos Estados Unidos o novo mundo ganha alternativas — já não é a Europa a impor preços porque tem concorrência. Por último, a transformação da Europa num grande cenário de guerra fez das relações comerciais, mais ou menos livres e necessárias à subsistência de cada país, matéria de relações de poder.
Clemenceau, com o Tratado, quer reforçar o poder da França, não lhe interessa reforçar a dependência em relação à Alemanha, que só traria perigo ao seu país num cenário de Guerra. Assim, o tecido económico Europeu – especializado – era posto em causa pelo próprio Tratado. Keynes diz que “A Europa está tão ligada que se a França destruir a Alemanha destrói-se a si mesma”; e, de facto, um mundo voltado para a especialização implica largas quantidades de produtos importados e uma exportação constante das indústrias de ponta do país; o reforço das fronteiras, para Keynes, não protegia os países: atacava-os, na sua vida económica e industrial.
A França, como compensação pelas suas Indústrias, exigia não só uma larga parta da produção de carvão da Alemanha, mas também algumas das suas fontes essenciais, como a grande Indústria concentrada na Alsácia; ora, a perda da Alsácia não só tornava praticamente impossível à Alemanha extrair o carvão necessário para o seu próprio uso, como prejudicava países como a Suécia, largamente dependentes dos excedentes Alemães. A perda do controlo do Reno e dos caminhos-de-ferro tornava a exportação alemã muito mais difícil. Não é apenas questão de se aplicarem sanções a uma economia fixa, com condições de produção constantes; as próprias sanções prejudicam a produção, mas continuam a taxá-la como se esta vivesse o seu esplendor.
Temos, assim, um Tratado que procura a paz através de um aumento dos fatores que mais vezes geram a guerra: num tempo em que a desigualdade será mais sentida sem o freio da moral vitoriana, em que o reforço das fronteiras económicas aumentará as dificuldades de escoamento de produtos, levando assim ao desemprego, e mostrará também as deficiências das várias indústrias nacionais, pondo a nu a escassez, agravada pelo encarecimento dos bens essenciais, num tempo em que tudo isto se dá com uma memória ainda fresca da guerra, será natural o fracasso do Tratado.
O que é mais curioso, no entanto, é que o Tratado não é apenas um fracasso económico. Antes de a economia responder mal às cláusulas apresentadas, já o tratado é visto, em muitos círculos, como um erro político e, até, como uma deslealdade. Embora pareça apenas uma diferença académica, os Alemães não perderam exatamente a guerra em toda a linha – aceitaram os 14 pontos de Wilson necessários para a obtenção da paz.
Estes pontos, no entanto, precisavam, como qualquer pessoa que os leia percebe, de bastante clarificação. É isso, então, que permite o confronto, em plena conferência, entre a “paz cartaginesa” de Clemenceau e os 14 pontos de Wilson.
Clemenceau olha para a Alemanha à maneira de um velho Estadista de uma potência rival. A Alemanha é o grande contra-peso da França no equilíbrio Europeu e, ao longo do século XIX, bateu sucessivamente os gauleses, quer em campanhas militares, quer no desenvolvimento económico e demográfico. Para Clemenceau, a Alemanha é sobretudo uma ameaça, e a conferência uma oportunidade para, pelo menos, restaurar a igualdade entre os países. É de todo o interesse para a França que a produção do carvão e do aço baixe na Alemanha para níveis iguais aos dos franceses. Clemenceau está a negociar a rendição de um inimigo, enquanto Wilson deveria estar a fazer uma coisa completamente diferente.
Keynes explica, com razão, que Wilson saiu da guerra como um herói. A intervenção dos Estados Unidos na guerra, em nome da justiça, foi tão bem-sucedida que criou doutrina entre os negócios estrangeiros americanos. Ainda hoje a “doutrina Wilson”, com a sua interpretação do papel missionário dos Estados Unidos, em nome da Democracia e da Paz, justifica muita da ação externa Americana. Esta doutrina, porém, provou ser muito mais aceite em tempo de guerra do que em tempo de paz. Isto é: a América aceitou intervir para derrotar aquilo que consideravam o inimigo; mas o passo natural para Wilson, o de consertar o inimigo e contribuir com isso para a paz mundial, já não seria necessariamente o passo imediato para os Americanos. Wilson entra na conferência com os seus catorze pontos, algo vagos e pouco preparados. Quando é preciso determinar até que ponto irão as compensações pelos danos causados, a influência da “paz Cartaginesa” é muito maior. A habilidade dos políticos Europeus inflitrou-se nos catorze pontos de Wilson, não só por estarem os Europeus mais preparados para a discussão de pormenor, nem apenas por serem os políticos europeus mais habilidosos, conseguindo satisfazer Wilson com a linguagem hipócrita da Sociedade das Nações mas mantendo os princípios da paz Cartaginesa: o próprio sistema democrático ajudou a destruir a doutrina de Wilson em tempos de paz. Wilson também precisava de ser eleito, e para isso não precisava d Alemanha, mas sim dos Americanos.
A paz de Versalhes, também fruto dos jogos de poder, acaba assim por exigir a má consciência dos vitoriosos. Por um lado, a rendição Alemã não implicava necessariamente aquilo que o Tratado impôs. Já com a retirada dos exércitos, já respeitados no essencial os catorze pontos de Wilson, reúnem-se as potências e aquilo que seria de pormenor transforma-se num encargo pesadíssimo. Além disso, todos estes pesados encargos são embrulhados numa linguagem de cooperação universal e de ajuda mútua que, se não mostram a má consciência das potências vitoriosas, pelo menos confundem as populações. Se o objectivo passa por ajudar a Alemanha, porque é que ela é prejudicada? Se o objectivo é castigá-la, porque é que se fala em cooperação universal?
Quando, anos depois, se dá o acordo de Munique, é preciso lembrar que a permissividade das potências não se deve apenas à cegueira ou à cobardia. Nos tempos em que Churchill bradava quase sozinho, avisando o Parlamento dos desrespeitos alemães a Versalhes, é preciso ver aquilo que, graças a Keynes, quase todos os ingleses viam: a paz de Versalhes era uma paz injusta, pelo que era necessária uma certa condescendência em relação às transgressões alemãs.
Keynes viu claramente a injustiça e os problemas do tratado, e com isso criou a ideia generalizada de que os Alemães não o mereciam. Talvez com outro tratado o desenvolvimento da política europeia fosse diferente; mas também é verdade que, sem a clarividência de Keynes, talvez muitos dos políticos europeus confiassem mais na Paz de Versalhes, e fossem intransigentes com o cumprimento das suas condições. Quem sabe o que a ignorância da verdade poderia ter evitado?