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Há 100 anos, um livro de John Maynard Keynes antecipou o futuro da Europa

O grau premonitório de "As Consequências Económicas da Paz" é tal que a interpretação da História e da Economia parece ciência de regra e esquadro. Carlos Maria Bobone lembra porquê.

O Tratado de Versalhes ficou para a História como uma espécie de manual negro da diplomacia. Vistas à distância, todas as suas cláusulas e o seu espírito parecem anunciar a vingança que o Nazismo traria: a Alemanha humilhada, empobrecida e afogada em dívidas haveria de reagir; não havia, sequer, maneira de cumprir o Tratado. As condições eram de tal maneira pesadas, a Indústria Alemã sofria tais perdas, que seguir o Tratado significaria destruir a Alemanha.

De trás para a frente, a História parece-nos lógica; no entanto, logo em 1919, pouco depois do fim da conferência, saiu um pequeno livro que há de figurar para sempre na galeria das previsões mais certeiras de todos os tempos.

O grau premonitório de As Consequências Económicas da Paz é tal, que a interpretação da História, das relações do Homem com as matérias-primas e até das ambições diferentes das sociedades nos parece uma ciência de regra e esquadro. A argúcia de John Manyard Keynes é tão evidente, a sua interpretação dos papéis de Clemenceau e de Wilson tão cristalina, a lógica de cada raciocínio tão clara, que a notável coincidência entre as previsões de Keynes e os acontecimentos históricos nem seria necessária para fazer deste o grande livro de interpretação de Versalhes.

Uma das primeiras edições do livro de John Maynard Keynes

E, na verdade, as consequências só tornaram imorredoura uma tese que, no seu tempo, já era quase universal. Se a Sociedade das Nações é, desde o princípio, vista como uma organização prenhe de boas intenções algo confusas, vazia e impotente em toda a sua retórica grandíloqua e hipócrita, ou se até os povos vitoriosos olharam para as cláusulas do Tratado com a má consciência que permitiu, nos anos seguintes, que Hitler atropelasse os acordos sem consequências de monta, muito disso se deve à análise de Keynes.

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Em 1919, Keynes não tinha ainda escrito as suas grandes obras dos anos trinta, como o Tratado sobre o Dinheiro ou a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, mas já era um académico suficientemente reputado para ser nomeado pelo governo Inglês como consultor nas reuniões que viriam a firmar o Tratado de Versalhes e a formar a Sociedade das Nações. Keynes, aliás, tinha quatro anos antes publicado um Estudo sobre A Economia da Guerra na Alemanha que o capacitava melhor do que ninguém para perceber as grandes forças e fraquezas da Indústria Alemã, e em que medida as restrições impostas pelos vencedores teriam impacto na economia dos vencidos.

Acontece que o livro de Keynes, escrito na ótica do observador privilegiado, não é apenas um relatório técnico com previsões económicas mais ou menos certeiras. O que é interessante nas Consequências Económicas da Paz é a forma como a minúcia técnica evolui para uma obra sobre a Justiça das sanções, com uma balzaquiana galeria de personagens e ambições em conflito, com uma muito clara demonstração do peso das mexidas macroeconómicas nas vidas das pessoas comuns e uma visão estratégica muito interessante sobre a importância de rios, bancos e caminhos-de-ferro nas relações de poder entre as várias nações.

Keynes diz que “A Europa está tão ligada que se a França destruir a Alemanha destrói-se a si mesma”; e, de facto, um mundo voltado para a especialização implica largas quantidades de produtos importados e uma exportação constante das indústrias de ponta do país; o reforço das fronteiras, para Keynes, não protegia os países: atacava-os, na sua vida económica e industrial.

A partir do Tratado de Versalhes, Keynes traça um retrato do capitalismo e das relações de interesse na Europa que vão muito para lá do Tratado. Para Keynes, o objetivo do Tratado passaria por restaurar o equilíbrio numa Europa que precisaria desse equilíbrio para sobreviver e para, dentro do possível, manter o sistema económico e governativo que a segurara nas décadas anteriores. Acontece, porém, que a Europa seria, nisto, inimiga de si própria. Para o equilíbrio de poder era necessária a mesma reserva que levava Clemenceau a olhar para a Alemanha como uma ameaça constante, que só poderia ser contida por uma “paz Cartaginesa”. Para a manutenção do sistema capitalista, seria necessária manter os padrões de acumulação que a Guerra tinha tornado impossíveis. E, mesmo que a visão dos grandes Homens da conferência fosse lúcida, Lloyd George, Clemenceau e Wilson tinham, ao mesmo tempo, de provar a generosidade para com o mundo e salvaguardar os interesses dos seus países. O jogo de intenções contraditórias, de mundos em conflito e de subtilezas diplomáticas é verdadeiramente apaixonante; Keynes, além de o identificar com olho de romancista, também o prova com o seu óculo científico.

Explica ele que o mundo do pré-guerra assentava na manutenção de vários fatores que a Europa se habituara a ver como permanentes mas que, na verdade, poderia ser impossíveis de recriar. A vida Europeia dependia de um complicado e artificial sistema de organização em que vários países tinham as suas indústrias especializadas, mas em que uma circulação estável e padronizada dos bens – aliada à subsistência alimentar trazida do novo mundo – permitia uma economia de auto-subsistência. Esta economia era, também, assente na grande acumulação de capital, que permitia a exploração dos recursos do Novo Mundo, e que se mantinha numa curiosa aliança com a moral Vitoriana. Isto é, essencial para a economia do pré-guerra era que o capital se mantivesse disponível e que a ostentação não fosse escandalosa, sob perigo de revolta das classes trabalhadoras. O consumo não só arruinaria o crédito e a vantagem Europeia face aos outros continentes – a capacidade financeira – como traria a público a desigualdade que o puritanismo de certa maneira escondia. Como diz Keynes, “a virtude do bolo estava em nunca ser comido”.

Georges Clemenceau, primeiro-ministro francês durante a Primeira Guerra Mundial

Ora, com a guerra a comer recursos e a mostrar, com isso, que as fortunas financeiras de nada valiam se não se conseguiam transformar nos inexistentes ou cada vez mais caros bens, a ideia de poupança sofreu um abalo grande. Ao mesmo tempo, o crescimento, até populacional, dos Estados Unidos tornava a vantagem da Europa cada vez mais pequena. Antes da Guerra, a grande capacidade de produção do Novo Mundo tinha de ser escoada para o continente com mais população e maior poder de compra – a Europa; com o crescimento dos Estados Unidos o novo mundo ganha alternativas — já não é a Europa a impor preços porque tem concorrência. Por último, a transformação da Europa num grande cenário de guerra fez das relações comerciais, mais ou menos livres e necessárias à subsistência de cada país, matéria de relações de poder.

Clemenceau, com o Tratado, quer reforçar o poder da França, não lhe interessa reforçar a dependência em relação à Alemanha, que só traria perigo ao seu país num cenário de Guerra. Assim, o tecido económico Europeu – especializado – era posto em causa pelo próprio Tratado. Keynes diz que “A Europa está tão ligada que se a França destruir a Alemanha destrói-se a si mesma”; e, de facto, um mundo voltado para a especialização implica largas quantidades de produtos importados e uma exportação constante das indústrias de ponta do país; o reforço das fronteiras, para Keynes, não protegia os países: atacava-os, na sua vida económica e industrial.

Temos, assim, um Tratado que procura a paz através de um aumento dos fatores que mais vezes geram a guerra: num tempo em que a desigualdade será mais sentida sem o freio da moral vitoriana, em que o reforço das fronteiras económicas aumentará as dificuldades de escoamento de produtos, levando assim ao desemprego, e mostrará também as deficiências das várias indústrias nacionais.

A França, como compensação pelas suas Indústrias, exigia não só uma larga parta da produção de carvão da Alemanha, mas também algumas das suas fontes essenciais, como a grande Indústria concentrada na Alsácia; ora, a perda da Alsácia não só tornava praticamente impossível à Alemanha extrair o carvão necessário para o seu próprio uso, como prejudicava países como a Suécia, largamente dependentes dos excedentes Alemães. A perda do controlo do Reno e dos caminhos-de-ferro tornava a exportação alemã muito mais difícil. Não é apenas questão de se aplicarem sanções a uma economia fixa, com condições de produção constantes; as próprias sanções prejudicam a produção, mas continuam a taxá-la como se esta vivesse o seu esplendor.

Temos, assim, um Tratado que procura a paz através de um aumento dos fatores que mais vezes geram a guerra: num tempo em que a desigualdade será mais sentida sem o freio da moral vitoriana, em que o reforço das fronteiras económicas aumentará as dificuldades de escoamento de produtos, levando assim ao desemprego, e mostrará também as deficiências das várias indústrias nacionais, pondo a nu a escassez, agravada pelo encarecimento dos bens essenciais, num tempo em que tudo isto se dá com uma memória ainda fresca da guerra, será natural o fracasso do Tratado.

O que é mais curioso, no entanto, é que o Tratado não é apenas um fracasso económico. Antes de a economia responder mal às cláusulas apresentadas, já o tratado é visto, em muitos círculos, como um erro político e, até, como uma deslealdade. Embora pareça apenas uma diferença académica, os Alemães não perderam exatamente a guerra em toda a linha – aceitaram os 14 pontos de Wilson necessários para a obtenção da paz.

Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante o período da Primeira Guerra Mundial

Estes pontos, no entanto, precisavam, como qualquer pessoa que os leia percebe, de bastante clarificação. É isso, então, que permite o confronto, em plena conferência, entre a “paz cartaginesa” de Clemenceau e os 14 pontos de Wilson.

Clemenceau olha para a Alemanha à maneira de um velho Estadista de uma potência rival. A Alemanha é o grande contra-peso da França no equilíbrio Europeu e, ao longo do século XIX, bateu sucessivamente os gauleses, quer em campanhas militares, quer no desenvolvimento económico e demográfico. Para Clemenceau, a Alemanha é sobretudo uma ameaça, e a conferência uma oportunidade para, pelo menos, restaurar a igualdade entre os países. É de todo o interesse para a França que a produção do carvão e do aço baixe na Alemanha para níveis iguais aos dos franceses. Clemenceau está a negociar a rendição de um inimigo, enquanto Wilson deveria estar a fazer uma coisa completamente diferente.

Keynes explica, com razão, que Wilson saiu da guerra como um herói. A intervenção dos Estados Unidos na guerra, em nome da justiça, foi tão bem-sucedida que criou doutrina entre os negócios estrangeiros americanos. Ainda hoje a “doutrina Wilson”, com a sua interpretação do papel missionário dos Estados Unidos, em nome da Democracia e da Paz, justifica muita da ação externa Americana. Esta doutrina, porém, provou ser muito mais aceite em tempo de guerra do que em tempo de paz. Isto é: a América aceitou intervir para derrotar aquilo que consideravam o inimigo; mas o passo natural para Wilson, o de consertar o inimigo e contribuir com isso para a paz mundial, já não seria necessariamente o passo imediato para os Americanos. Wilson entra na conferência com os seus catorze pontos, algo vagos e pouco preparados. Quando é preciso determinar até que ponto irão as compensações pelos danos causados, a influência da “paz Cartaginesa” é muito maior. A habilidade dos políticos Europeus inflitrou-se nos catorze pontos de Wilson, não só por estarem os Europeus mais preparados para a discussão de pormenor, nem apenas por serem os políticos europeus mais habilidosos, conseguindo satisfazer Wilson com a linguagem hipócrita da Sociedade das Nações mas mantendo os princípios da paz Cartaginesa: o próprio sistema democrático ajudou a destruir a doutrina de Wilson em tempos de paz. Wilson também precisava de ser eleito, e para isso não precisava d Alemanha, mas sim dos Americanos.

Keynes viu claramente a injustiça e os problemas do tratado, e com isso criou a ideia generalizada de que os Alemães não o mereciam. Talvez com outro tratado o desenvolvimento da política europeia fosse diferente; mas também é verdade que, sem a clarividência de Keynes, talvez muitos dos políticos europeus confiassem mais na Paz de Versalhes, e fossem intransigentes com o cumprimento das suas condições.

A paz de Versalhes, também fruto dos jogos de poder, acaba assim por exigir a má consciência dos vitoriosos. Por um lado, a rendição Alemã não implicava necessariamente aquilo que o Tratado impôs. Já com a retirada dos exércitos, já respeitados no essencial os catorze pontos de Wilson, reúnem-se as potências e aquilo que seria de pormenor transforma-se num encargo pesadíssimo. Além disso, todos estes pesados encargos são embrulhados numa linguagem de cooperação universal e de ajuda mútua que, se não mostram a má consciência das potências vitoriosas, pelo menos confundem as populações. Se o objectivo passa por ajudar a Alemanha, porque é que ela é prejudicada? Se o objectivo é castigá-la, porque é que se fala em cooperação universal?

Quando, anos depois, se dá o acordo de Munique, é preciso lembrar que a permissividade das potências não se deve apenas à cegueira ou à cobardia. Nos tempos em que Churchill bradava quase sozinho, avisando o Parlamento dos desrespeitos alemães a Versalhes, é preciso ver aquilo que, graças a Keynes, quase todos os ingleses viam: a paz de Versalhes era uma paz injusta, pelo que era necessária uma certa condescendência em relação às transgressões alemãs.

Keynes viu claramente a injustiça e os problemas do tratado, e com isso criou a ideia generalizada de que os Alemães não o mereciam. Talvez com outro tratado o desenvolvimento da política europeia fosse diferente; mas também é verdade que, sem a clarividência de Keynes, talvez muitos dos políticos europeus confiassem mais na Paz de Versalhes, e fossem intransigentes com o cumprimento das suas condições. Quem sabe o que a ignorância da verdade poderia ter evitado?

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