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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Há uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o Papa Francisco"

Defensor de Francisco, o cardeal António Marto diz que os católicos ultraconservadores estão a aproveitar a "catástrofe" que são os abusos sexuais na Igreja para "dar um golpe de morte" no Papa.

O cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e um dos principais defensores do Papa Francisco na Igreja em Portugal, considera que a divulgação da carta do antigo embaixador do Vaticano nos Estados Unidos, que alega que o Papa sabia há cinco anos de acusações de abusos sexuais relativas a um cardeal norte-americano, faz parte de “uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte” o líder da Igreja Católica.

Em entrevista ao Observador, esta quarta-feira, o cardeal disse que os crimes de pedofilia praticados por padres católicos, que têm sido divulgados nos últimos anos — e que ganharam dimensão nas últimas semanas, com a divulgação de um relatório sobre centenas de casos nos Estados Unidos e com a visita do Papa à Irlanda — deixaram os membros da Igreja Católica “profundamente chocados” e suscitaram um “sentimento de grande humilhação” na Igreja.

Classificando os crimes como uma “hecatombe” na Igreja e uma “catástrofe de ordem espiritual, de ordem moral e de ordem pastoral”, D. António Marto concorda que os pedidos de desculpa não chegam, mas garante que o Papa Francisco está a trabalhar no sentido de reformar a Igreja também neste campo, emitindo normas mais estritas que impeçam o encobrimento dos casos e implementando formas de realizar julgamentos canónicos aos bispos e cardeais que ocultem casos de pedofilia de que tenham conhecimento “para salvaguardar o bom nome da instituição, esquecendo a dignidade das pessoas que foram feridas e ofendidas”.

Garantindo que “todos os bispos de Portugal estão com o Papa Francisco e lhe manifestam o seu apoio incondicional nesta reforma da Igreja”, D. António Marto acusa a ala ultraconservadora da Igreja Católica de atacar repetidamente o sumo pontífice e de, agora, ter aproveitado a ocasião para “dar um golpe de morte” no Papa. Ainda assim, o cardeal de Fátima acredita que Francisco vai sair “reforçado” de toda esta polémica, “quando tudo se esclarecer”.

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O cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, é um dos principais defensores em Portugal da reforma da Igreja levada a cabo pelo Papa Francisco (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como olha para este momento na Igreja Católica?
Foi uma sequência de acontecimentos muito rápida, que nos apanhou até de surpresa e nos deixou profundamente chocados pela dimensão que esta questão dos abusos manifestou de diversas formas, sobretudo nos Estados Unidos e na Irlanda. A divulgação do relatório da Pensilvânia coincidiu com a viagem do Papa à Irlanda, cujo povo ainda está sentido pelas feridas provocadas por essa série de abusos, e que suscitou um sentimento de grande humilhação…

Para a Igreja?
Na Igreja. E de indignação também. Sentimentos que o Papa fez seus e interpretou em nome de toda a Igreja. Teve a coragem de escrever uma carta a todo o povo de Deus com palavras muito duras para afirmar o compromisso de toda a Igreja em pôr termo a toda esta catástrofe. Atrevo-me a dizer que foi uma catástrofe de ordem espiritual, de ordem moral e de ordem pastoral.

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Os pedidos de desculpa, que se têm multiplicado, são suficientes?
Isso era necessário, era a primeira coisa. Agora, é preciso não esquecer que a Igreja já está a trabalhar no campo. Basta, por exemplo, referir que o Papa instituiu a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, com membros de grande qualidade, seja da parte da hierarquia seja da parte dos leigos independentes.

A Comissão teve um período conturbado, com a saída de Marie Collins no ano passado, e foi reativada este ano.
Sim, o Papa explicou isso agora na entrevista com os jornalistas no voo de regresso a Roma. Não pôs em causa o trabalho da Comissão para julgar os casos. Concretamente, era preciso fazer uma comissão particular para os casos dos bispos, uma vez que outros bispos têm também de participar no juízo, e isso dificultava o trabalho. Bom, e as várias conferências episcopais também já definiram um conjunto de normas para enfrentar os casos que aparecem.

O que é que foi feito em Portugal?
Em 2012. Isso já está publicado, está acessível no site.

É um conjunto de normas? Pode relembrar o que contém o documento?
É um conjunto de normas, que a Santa Sé obrigou todas as conferências episcopais a fazer e a aplicar de modo concreto em cada país. São normas em ordem à prevenção e à proteção relativamente ao abuso de crianças e de adultos vulneráveis.

Aqui na diocese de Leiria-Fátima, o que há implementado? Existe alguma instituição formal?
Não existe uma instituição formal em cada diocese. Existem estas normas que serão aplicadas quando aparecer um determinado caso. Todas as medidas de prevenção e de proteção são a prioridade absoluta. Isso é a primeira coisa. Depois, há que promover também toda uma cultura de proteção e prevenção das crianças, dos menores.

Como é que a Igreja pode fazer isso?
Tem de envolver todo o povo de Deus. Esta última carta do Papa refere-se exatamente a isso. Toda a comunidade cristã — não é só a hierarquia — tem de se sentir envolvida e comprometida neste processo de criar uma cultura de prevenção e de proteção. Nas atitudes, nos comportamentos e depois na formação, em atividades de formação específicas para estes casos.

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Esta viagem do Papa Francisco à Irlanda foi muito conturbada porque aconteceu no meio da polémica e acabou com a divulgação da carta do arcebispo Carlo Maria Viganò, antigo núncio nos Estados Unidos. Como é que interpreta o documento? Põe ou não em causa o Papa Francisco?
O Papa teve uma resposta muito inteligente, de pedir aos jornalistas que mostrassem o seu profissionalismo em fazer eles próprios uma investigação e um juízo. Agora estão a vir ao de cima os desmentidos de muita coisa que o arcebispo diz. Em primeiro lugar, a carta já estava preparada há muito tempo, com jornalistas. Uns dos Estados Unidos, outros de Itália. Concretamente, o jornalista Marco Tosatti, que ele próprio confessou ter participado, ter estado três horas com o arcebispo a redigir o texto, e disse que foi escolhido o momento próprio da viagem do Papa à Irlanda para que a “bomba” — assim diz ele — tivesse efeitos multiplicados. Portanto, fico com toda a impressão de que se trata de uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o nosso Papa Francisco. Neste momento, é necessário que toda a Igreja manifeste o seu apoio ao Papa Francisco. Concretamente eu, como cardeal, e posso dizer que todos os bispos de Portugal estão com o Papa Francisco e lhe manifestam o seu apoio incondicional nesta reforma da Igreja.

Está a falar-me do timing da publicação da carta. E o conteúdo?
Do conteúdo… Pelo menos dois cardeais, um deles presidente da Conferência Episcopal e outro o de Washington, e ainda um outro de Filadélfia, dizem que a única vez que o arcebispo falou com eles foi para lhes comunicar a nomeação e para lhes dar os parabéns pela notícia alegre, e depois na tomada de posse. Que nunca lhes falou destes casos.

Ou seja, teria conhecimento dos casos do cardeal McCarrick mas nunca disse aos bispos americanos.
Não disse aos bispos americanos. Assim como hoje o secretário do Papa Bento XVI vem dizer que ele não se pronunciou sobre o relatório do arcebispo, como foi noticiado nos Estados Unidos.

E nunca impôs sanções ao cardeal?
Não diz isso. É estranho que o arcebispo se refira a sanções que nunca foram conhecidas publicamente. Mas surgiu uma notícia nos Estados Unidos de que o Papa Bento teria confirmado a carta do arcebispo. E agora o secretário, o arcebispo Georg Gänswein, veio dizer que é uma falsa notícia, que o Papa Bento XVI não se pronunciou sobre isso.

O que diz a carta do arcebispo Carlo Maria Viganò

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Este é o parágrafo em que o antigo embaixador do Vaticano nos EUA revela a conversa que teve há cinco anos com o Papa Francisco sobre as acusações que pendiam sobre o cardeal Theodore McCarrick:

“Imediatamente depois, o Papa perguntou-me, com um tom cativante: “Como está o cardeal McCarrick?”. Eu respondi com toda a franqueza e, se quisermos, tão ingenuamente: “Santo Padre, eu não sei se conhece o cardeal McCarrick, mas se perguntar à Congregação para os Bispos, há um arquivo deste tamanho sobre ele. Ele corrompeu gerações de seminaristas e sacerdotes, e o Papa Bento XVI impôs-lhe que se retirasse para uma vida de oração e penitência”. O Papa não fez o menor comentário sobre as minhas palavras tão sérias e não mostrou no seu rosto qualquer expressão de surpresa, como se a coisa já fosse conhecida há algum tempo, e mudou imediatamente de assunto. Mas, então, com que propósito é que o Papa me fez aquela pergunta: “Como está o cardeal McCarrick?”. Evidentemente, ele queria ter a certeza de se eu era um aliado de McCarrick ou não.”

Apesar de tudo o que me diz, o conteúdo da carta pode estar correto e pode ser verdade que o Papa Francisco sabia há cinco anos dos casos.
Lá na carta não diz que ele disse ao Papa Francisco isso. Só diz que disse ao Papa que existia um dossiê grande sobre o cardeal, mas não diz que lhe disse sobre os abusos.

Está convencido de que é tudo uma campanha…
Uma campanha organizada, da parte dessa ala tradicionalista ultraconservadora, que quer pôr em xeque o Papa Francisco, e que chega a este extremo de, pela única vez na história, pedir a demissão de um Papa.

Não acredita que o Papa Francisco soubesse das acusações há cinco anos?
Não acredito. E espero que o Papa Francisco um dia se pronuncie. Acredito mais no Papa Francisco do que no arcebispo Viganò.

E acredita que o Papa se vai pronunciar em breve sobre o caso?
Isso não sei dizer.

Olhando para o contexto geral de todo este problema dos abusos sexuais, parece-lhe que a Igreja tem feito o suficiente? Continuamos permanentemente a conhecer novos casos que foram ocultados durante anos…
Isto, como estamos a presenciar, acontece em contextos muito diferenciados. Aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu na Irlanda, aconteceu no Chile. Não consta, por exemplo, que tenha tido uma proporção semelhante nos nossos países, Portugal, Espanha, Itália, e outros. Sobretudo, aquilo que foi revelado na Pensilvânia refere-se sobretudo até 2002. A partir daí, reduziu-se drasticamente todo esse fenómeno.

Acredita que ainda há mais casos antigos por revelar?
Não sei. Sou surpreendido por isto. Penso que entre nós não haja. Pelo menos, lembro-me de que, em 2012, este problema foi discutido, quando surgiram os casos nos Estados Unidos, na assembleia dos bispos aqui em Portugal. Na altura, foi perguntado, e eu disse isso na conferência de imprensa, porque era o vice-presidente, se nas dioceses de Portugal havia algum caso. Todos os bispos disseram que não conheciam. Só depois daí é que se veio a saber daqueles três casos, que são da ordem pública. É preciso também conservar uma certa racionalidade para não confundir a parte com o todo. Se é certo que houve centenas ou milhares de padres e bispos que tiveram este comportamento indigno e criminoso, não podemos esquecer que há milhares e milhares de padres que têm ajudado milhões de crianças, no campo da necessidade de alimentação, por exemplo em África, da instrução, da educação, da própria salvação da vida no meio das guerras fratricidas. Isso também tem de contar.

Mas a verdade é que este problema existe.
O problema existe, é uma espécie de hecatombe. Mas não podemos ficar obcecados, no sentido de que só existe isso.

Tem sido um dos principais defensores da reforma da Igreja que o Papa Francisco está a levar cabo. Não acha que é preciso também uma reforma neste campo? No sentido de tomar atitudes concretas, que não sejam apenas a repetição de pedidos de desculpa?
Mas isso está previsto. A primeira coisa é o estar ao lado das vítimas, na atitude de solidariedade e ajuda a sanar as suas feridas e a reparar os danos que sofreram, do ponto de vista psíquico, e mesmo do ponto de vista económico, etc. Isso é da justiça e da verdade, e a reparação faz parte disso. Depois, quem souber destes casos deve dizer, em primeiro lugar. Não seguir a cumplicidade.

D. António Marto foi criado cardeal pelo Papa Francisco em junho deste ano (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Deve dizer a quem?
À autoridade eclesiástica responsável para os processos canónicos e às autoridades civis, porque as autoridades civis têm muito mais meios para a investigação dos casos do que a Igreja, para chegar à verdade das coisas.

É que uma coisa é certa: muitos destes casos sabem-se agora porque durante anos e anos foram encobertos pelas autoridades eclesiásticas.
Sim, sim. Foi a cumplicidade do silêncio, da cobertura, para salvaguardar o bom nome da instituição, esquecendo a dignidade das pessoas que foram feridas e ofendidas.

Imagine que sabe de um caso na diocese. O que fazia?
Em primeiro lugar, como vem nas normas de 2012, tem de se fazer imediatamente um processo canónico.

O que é que isso significa?
Instituir um tribunal eclesiástico para averiguar, para fazer as primeiras investigações. Em segundo lugar, aconselhar as pessoas a fazer a denúncia à autoridade civil.

A diocese não faria essa denúncia? Tem de ser a vítima?
Em princípio, deverá ser a vítima. Mas em alguns países é obrigatório a própria diocese fazer a denúncia à autoridade civil.

Mas a diocese aconselha a vítima nesse sentido.
Sim, sim. Isso é obrigatório.

Considerado por muitos uma das figuras mais progressistas da Igreja em Portugal, o cardeal D. António Marto acusa os ultraconservadores de quererem atacar o Papa Francisco (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Recentemente saiu a notícia de que os padres portugueses que foram condenados continuam como padres. Como é que a Igreja penaliza os padres que são condenados na justiça?
Em princípio, a Igreja toma a última medida depois de conhecer o resultado do julgamento civil nas várias instâncias. Portanto, se há um caso que já é conhecido nas três instâncias, depois vai para Roma para o processo canónico, e de Roma é que dão a última decisão. Pode ser suspensão… Depende da gravidade do que se fez. Pode ser suspensão ou pode ser redução ao estado laical. Por exemplo, um dos casos em Portugal é esse.

Quais devem ser os próximos passos que a Igreja e o Papa Francisco devem dar para lidar com este problema? Emitir normas mais estritas para impedir que os bispos não divulguem os casos às autoridades civis, por exemplo?
Normas mais estritas para que divulguem os casos, sim. Mas isso eu creio que está previsto. Pode faltar essa parte, agora não tenho toda a legislação de Roma presente. Mas está previsto também o julgamento o canónico dos bispos ou cardeais que negligenciem essa parte, que incorram no encobrimento dos casos, que não os divulguem às autoridades civis.

Falava há pouco da fação mais tradicionalista da Igreja…
Ultraconservadora… De facto, há vários tradicionalismos. Alguns são tradicionalistas mas, apesar de tudo, fiéis ao Papa. Há outros que não.

O Papa Francisco, que tem sido atacado por estas fações da Igreja, vai sair desta polémica mais enfraquecido na imagem de reformador que tinha até agora?
Esta luta é de uma minoria dentro da Igreja. Mas uma minoria muito aguerrida e ativa, sobretudo nas redes sociais.

"Eles [ultraconservadores] não aceitam a reforma do Papa Francisco... Primeiro tentaram com aqueles cardeais que levantaram aquelas dúvidas, mas ainda dentro daquele respeito institucional, e agora procuraram dar um golpe de morte aproveitando esta ocasião"

O cardeal Raymond Burke, por exemplo?
Sim… Mas não é a pessoa dele. Ele está à frente desta facção, mas o que lhe dá eco depois é a mediatização que se faz, sobretudo nas redes sociais. Depois, há uma ala ultraconservadora muito forte, mesmo até economicamente, nos Estados Unidos. Mas penso que a Igreja, na sua maioria, compreende o Papa Francisco e sabe que é um homem firme, que é um homem transparente, humano como todos nós, mas a voz dele é imprescindível hoje para a Igreja e para a sociedade, para o mundo.

Perguntava-lhe se a imagem dele sai afetada com esta polémica.
A minha resposta, embora não tenha sido direta, era precisamente para dizer isso. A imagem do Papa Francisco vai sair reforçada quando tudo se esclarecer. Acredito no Papa Francisco, como homem de verdade, de transparência, que sabe que a sua missão é reformar a Igreja para a tornar mais evangélica, mais fiel ao Evangelho. Mas isto naturalmente não se processa como um mar de rosas.

Quais são, então, as motivações dessa ala mais conservadora?
Pois, se eles não aceitam a reforma do Papa Francisco… Primeiro tentaram com aqueles cardeais que levantaram aquelas dúvidas, mas ainda dentro daquele respeito institucional, e agora procuraram dar um golpe de morte aproveitando esta ocasião.

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