O Museu Municipal de Faro exibe, a partir de sábado passado, uma parte da sua coleção de cartazes dos primórdios do cinema (1904-16), lançando ao mesmo tempo um volumoso álbum-catálogo (Cinema em Cartaz, Caleidoscópio, 334 pp., 33,92 €) com importantes estudos de especialistas portugueses e franceses — incluindo Stéphanie Salmon, historiadora dos Pathé Frères e diretora das colecções históricas da Fondation Jérôme Seydoux-Pathé, de Paris — que confirmam e põem em perspetiva a invulgaridade internacional deste espólio reunido em condições ainda desconhecidas por Joaquim António Viegas (1888-1945), cenógrafo e pintor nascido e criado na capital algarvia.
Os seus herdeiros, intuindo a originalidade e magnitude deste património, decidiram em 1991 doá-lo à única instituição local que lhes pareceu capaz de o salvaguardar, com tudo o que isso supõe e exige — e é muito — de acondicionamento apropriado, restauro delicado, registo fotográfico qualificado, valorização condigna e — necessariamente — estudo artístico e enquadramento historiográfico, todo um empreendimento iniciado em 2003 para o qual, ao longo destes dezoito anos, entre impasses e marcha lenta, o município algarvio tentou captar atenções que proporcionassem entendimento mais profundo do que lhe havia caído em sorte: “um dos mais representativos a nível mundial do período anterior à Primeira Guerra Mundial” (Adelaide Ginga, p. 43).
A parceria com uma editora com reputação na área patrimonial, como a Caleidoscópio, foi passo acertado no bom caminho. A edição trilingue é uma raridade no nosso país e teve certamente em conta que grande parte destes cartazes são de origem francesa. O prefácio solicitado a Mário Augusto, popular jornalista de cinema, atesta a tentativa de aproximar o maior número de pessoas da contemplação deste acervo artístico.
Resistindo — e muito bem — ao centralismo de cinematecas nacionais, macro-arquivos públicos que absorvem e depois armazenam em bunker muito especializado materiais mais tarde raramente vistos, a Câmara Municipal de Faro, e o Museu Municipal que dela depende, optaram por levar adiante uma tentativa direta de classificação patrimonial desta coleção, num processo que aguarda ponderação do Ministério da Cultura desde 8 de Janeiro deste ano. Não é uma pretensão exagerada, pois a própria Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema acabou por reconhecer a valia e raridade desse arquivo privado por doação confiado a cuidados públicos. Tal classificação garantirá aos cartazes da coleção Joaquim António Viegas — que inclui outros, de circo e teatro — um tratamento especial que os protegerá de quaisquer eventualidades e contratempos, e será firme e exemplar demonstração de que uma instituição local pode ser capaz de receber e gerir patrimónios artísticos que lhe sejam confiados por particulares, levando-os, quando for caso disso, a máximos absolutos de salvaguarda.
E não é caso para menos. Embora a exposição apenas possa mostrar uma trintena de cartazes franceses, em três salas dum convento que é monumento nacional adaptado a museu, com todos os constrangimentos que daí resultam em termos de ajustamento arquitectónico, o álbum-catálogo agora publicado compensa a condensação que qualquer escolha seria forçada a fazer, permitindo perceber outros, e de outras proveniências (italianos, escandinavos, norte-americanos, ingleses…), e a variedade de ilustradores envolvidos, boa parte dos quais vinham da edição livreira tanto quanto os primeiros actores de cinema saíam dos palcos de teatro e ópera, carregados de prestígio profissional.
Joaquim António Viegas, enquanto cenógrafo ativo nos principais cine-teatros de Lisboa e Porto, é que estava em posição muito privilegiada para recolhê-los in situ no término das respetivas exibições, de forma direta e por conhecimentos no meio, acumulando a par e passo uma coleção de cartazes representativa dos primórdios do cinema, tal como exibido em salas portuguesas. Jean-Louis Capitaine admite, porém, que alguns deles possam ter sido colhidos de salas espanholas. No país onde o cinema fora inventado, a França, o próprio cartaz publicitário como arte aplicada e fortíssimo meio de comunicação em contexto urbano tinha acabado de ganhar consagração definitiva com a Exposição Universal de Paris, depois que as artes gráficas japonesas e os progressos da cromolitografia se fundiram em obras de Jules Chéret e Henri de Toulouse-Lautrec, entre outros.
Em 1902, a Pathé-Frères contrata um ilustrador — curiosamente, o sergipiano Cândido Aragonez de Faria (1850-1911) — para conceber “o primeiro cartaz de cinema do mundo” (p. 137), para a adaptação cinematográfica dum livro de Zola, A Taberna. São precisamente do Atelier Faria os dois cartazes mais antigos da coleção Viegas, datados de 1904-5, e alguns dos melhores em exposição. Genericamente concebidos para distribuição internacional, com estilo sem arestas culturais que denunciassem proveniência estrangeira, um recanto da folha era deixado livre para impressão posterior do título do filme em línguas “a pedido”, e o motivo visual escolhido uma cena que o distinguisse, à maneira do que era comum encontrar em capas de livros ou de folhetos literários de grande circulação popular.
Cartazes hipercoloridos promoviam filmes a preto e branco ou de coloração muito tosca. Alguns deles — “verdadeiras raridades”, que os nossos olhos podem admirar em Faro — eram cartazes de enormes dimensões: acoplando na horizontal quatro partes iguais, os seus 2,40 x 3 m pretendiam “recriar na rua”, diz Adelaide Ginga à p. 31, “a imagem de um filme projetada no ecrã”. Imagine-se o impacto urbano de “Le Nabab” (1913), uma disputa parlamentar com dezenas de deputados agitados, em adaptação dum clássico de Alphonse Daudet, ou de “Le Tournoi de l’écharpe d’or” (1912), um confronto de cavaleiros medievais soberbamente desenhado por Maurice Lalau (1881-1961), ambos produzidos nesse formato XXXL. Outros, como “Babylas va se marier” (1912), em 1,2 x 1,6 m — um modelo mais comum, “a norma definitiva” (Capitaine, p. 47) adaptável às fachadas dos locais de projeção e a carroças móveis de propaganda —, transitam visualmente entre os affiches comerciais, a herança de Toulouse-Lautrec e a banda desenhada popularizada em jornais e suplementos infantis (o cartaz é de Gus Bofa, 1883-1968). Por vezes, todo o destaque gráfico é dado a atores da Comédie e da Académie Française, ou do Théatre National de L’Ódeon, como Gabrielle Robinne, Léon Bénard, Berthe Bovy, Gabrielle Réjane ou Romuald Joubé, que passam ao cinema personagens célebres de escritores franceses canónicos, em poses majestosas e hieráticas que fazem lembrar o retrato de corte e a estatuária clássica.
No exuberante cartaz da primeira adaptação de Les Misérables de Victor Hugo (1911; cat. p. 94), por exemplo, surge como figura única “o senhor” (sic) Henri Étiévant — ele próprio também realizador de cinema de 26 filmes, de 1911 a 1939 — no papel do duro polícia Javert. Max Linder, actor em evidência, seria também realizador de cinema, com cartazes produzidos pelo Atelier Faria.
Em rodapé, anunciava-se habitualmente o aluguer e a venda de aparelhos de projeção, expandindo a febre do cinematógrafo. Portugal não lhe foi indiferente, muito pelo contrário, pois “esteve desde o primeiro momento no mapa da difusão cinematográfica”, com “rápida mobilização dos principais centros de espectáculo do país em se dotarem de infra-estruturas e meios técnicos para receber esta nova arte” (Ginga, p. 40), tornando possível estabelecer similitudes cronológicas entre as produções cinematográficas estrangeiras e a sua exibição nas principais salas de Portugal, “chegando quase a um sincronismo efetivo” (p. 41). A primeira distribuidora de filmes em Portugal foi fundada em 1908 por Carlos Stella, um austríaco residente. “Les chiens contrebandiers”, um filme de Lucien Nonguet para a Pathé, em 1906, foi estreado a 5 de novembro desse ano no Salão High-Life da rotunda da Boa Vista, no Porto; o respetivo cartaz, desenhado pelo brasileiro Cândido Faria, também está na coleção Joaquim António Viegas. “Fantômas” de Louis Feuillade (estúdios Gaumont, 1913), surgiu no Chiado Terrasse no início de agosto desse mesmo ano, anunciado por um raro cartaz a preto e branco que é um dos mais impactantes desta exposição (1 x 2,2 m).
Muito representado na coleção Joaquim António Viegas — e com toda a razão! — está Maurice Lalau, ilustrador de livros e litógrafo que inventou a graficromia, impressão sucessiva de cores lisas de quase aquarela, posta a serviço dum traço seguro e definido, como nos cartazes para “Le Jugement de Salomon” (1912) e “Les Mystères de Paris” (1913), logo na primeira sala. Louis Malteste, igualmente ilustrador de livros — e de humor no célebre “L’Assiette au Beurre” —, escritor sob pseudónimo, fez muitos cartazes publicitários e de cinema, como o do filme “Ténébros!!! Qui? Quoi? Qu’est-ce???” de Paul Garbagni (1913), um belo cartaz mas infelizmente o único deste género nesta coleção, a que faltam o de “Le Petit Jacques”, o de “Le Chevalier de Maison-Rouge” (1914; Alexandre Dumas, 1845), e sobretudo um para a referida adaptação serial da obra-prima de Victor Hugo, sobre a participação do ator Henri Krauss enquanto Jean Valjean. (Não se consegue ter tudo…)
A exposição deixou nos arquivadores da reserva técnica a parte italiana, nórdica e americana da coleção dos cartazes de cinema de Joaquim António Viegas, e outros ainda, de publicidade e circo, jamais vistos, prometendo o Museu Municipal de Faro exibi-los em ocasião futura. Não são menos impactantes. Para já, um aviso a quem passe pela capital algarvia: uma visita a esta surpreendente mostra, e a leitura do seu álbum-catálogo, são muito recomendáveis.
“1907-1914: a primeira era de ouro do cinema francês na coleção de cartazes do Museu de Faro”
De terça a sexta-feira das 10 às 18h, sábado e domingo das 10,30 às 17h.
Curadoria de Jorge Carrega, da Universidade do Algarve