Quando em 2015 a Altice ficou com a então PT Portugal, adquirida à Oi, logo Armando Pereira entrou para o conselho de administração da operadora portuguesa como presidente (“chairman”). O cargo era não executivo. A Altice tinha em Portugal outra empresas e escolheu, mais tarde, precisamente gestores dessas operadoras (que teve de vender) — Alexandre Fonseca e João Zúquete da Silva — para entrarem nos quadros daquela que era a maior empresa de telecomunicações em Portugal.
Armando Pereira deixou a função na PT Portugal em janeiro de 2017, mas desde que a Altice ficou com a operadora logo começaram a surgir mudanças no Forum Picoas.
São alguns dos negócios feitos com a PT Portugal (comercialmente designa-se Altice Portugal) que estão sob investigação no DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), cujo inquérito foi iniciado há três anos, e no âmbito do qual foram feitas buscas durante os últimos dois dias (quinta e sexta feira). Foram detidas três pessoas, entre os quais Armando Pereira, que estava em Portugal de férias. Armando Pereira tem morada na Suíça, mas em Portugal continua a ter um refúgio em Guilhofrei, em Vieira do Minho, distrito de Braga. A Quinta das Casas Novas, com mais de 15 hectares, foi quinta-feira alvo de buscas.
Braga é uma terra que vai ter profundas ligações nesta investigação, que já fez mais dois detidos — Jessica Antunes e Álvaro Gil Loureiro — estando as autoridades a tentar localizar um outro elemento — Hernâni Vaz Antunes.
Estes três nomes estão ligados não apenas pela terra, mas também por vários negócios que vão tendo em comum. Armando Pereira não aparece, oficialmente, ligado às empresas e mesmo na Altice, da qual foi cofundador com Patrick Drahi, já não surge associado.
Não é segredo que Armando Pereira e Hernâni Vaz Antunes têm ligações. Hernâni Vaz Antunes é considerado braço-direito de Armando Pereira. Ambos emigraram jovens. Armando Pereira para França; Hernâni Vaz Antunes para o Canadá. Bem mais tarde começaram a ter negócios conjuntos, com epicentro precisamente no distrito de Braga.
Hernâni Vaz Antunes é conhecido como o comissionista e terá estado envolvido na intermediação do negócio de compra da PT pela Altice à Oi, pelo qual, aliás, e conforme foi noticiado pelo Expresso, pediu, em tribunal, uma comissão de 69 milhões de euros. Armando Pereira testemunhou nessa ação, dando força à tese de que Hernâni Vaz Antunes era um intermediário no negócio. A providência cautelar caiu, mas a Altice estará no centro de ganhos para os dois empresários, na tese do Ministério Público.
“As suspeitas que levaram à realização das diligências indiciam a viciação do processo decisório do Grupo Altice, em sede de contratação, com práticas lesivas das próprias empresas daquele grupo e da concorrência”, segundo comunicado do DCIAP, admitindo que estes podem configurar indícios de crimes de corrupção privada.
O DCIAP aponta mais indícios, como “práticas de deslocalização fictícia da domiciliação fiscal de pessoas e de sociedades, com aproveitamento abusivo da taxação reduzida aplicada em sede de IRC na Zona Franca da Madeira”, o que pode configurar crimes de fraude fiscal qualificada. Estima-se desde já “uma vantagem ilegítima alcançada pelos suspeitos em sede fiscal” superior a 100 milhões de euros. Acresce a estes indícios eventuais crimes de branqueamento e falsificação “com a utilização de estruturas societárias constituídas no estrangeiro”.
Hernâni Vaz Antunes, que terá um mandado de detenção, ainda não foi encontrado. O empresário bracarense, cuja filha está detida para interrogatório, tem residência no Dubai, onde também tem empresas registadas. O Luxemburgo é outro dos pontos onde algumas sociedades destas ligações foram constituídas, assim como a Zona Franca da Madeira.
As vendas de imóveis da Altice
Smartdev e Almost Future são duas das empresas que compraram imóveis à Altice, e que pertenciam à antiga PT, que tinha um vasto portefólio de imóveis, nomeadamente em Lisboa. Um dos edifícios vendido — o designado edifício Sapo na Fontes Pereira de Melo — foi, conforme noticiou a Sábado em março de 2021, vendido à Smartdev, empresa sediada na Zona Franca da Madeira. O edifício terá sido comprado por 7 milhões de euros em 2020.
A Smartdev é maioritariamente detida por um dos arguidos no processo que agora levou Armando Pereira a ser detido — Álvaro Gil Loureiro, associado a Abel Barbosa. O edifício Sapo surge, nesse mesmo ano, na carteira de outra empresa que já tinha outros imóveis adquiridos à Altice. É aqui que surge a Almost Future.
Constituída em 2015 pela Kpartner, em Vila Verde (também no distrito de Braga), passou, no ano seguinte, a ter quatro novos sócios — José da Silva Pinto, Natália Rodrigues, José Maria Vieira e a Vintagepanóplia (que ainda vai ser protagonista desta história), que passou a ser a maior acionista. Todos estes elementos são de regiões do distrito de… Braga. Em 2020, a Almost Future foi convertida numa sociedade de investimento coletivo (SICAFI), gerida pela Silvip, gestora de fundos.
Antes dessa conversão houve, no entanto, a entrada na empresa de novos sócios — Hernâni Vaz Antunes e as duas filhas, Jessica Antunes e Melissa Antunes. Entraram com 200 mil euros, depois da empresa ter dado aos anteriores acionistas 900 mil euros (libertou excesso de capital). Em novembro de 2020 seria convertida em SICAFI e é já nesta qualidade que surge na sua carteira de imóveis o edifício Sapo, adquirido por esta sociedade nesse mês por 7,5 milhões de euros.
Um mês depois da transição para SICAFI, a Almost Future surge com um novo conselho de administração que tem como presidente José Maria Vieira e como vogais André de Abreu Coutada e Rui Moreira Pedroso. No conselho fiscal surge Álvaro Gil Loureiro.
É a Almost Future que surge associada a compras, diretamente à Altice, de outros edifícios. A Sábado noticiou a compra de um edifício na Estefânia e outro na Andrade Corvo, por, respetivamente, 3,7 milhões e 2,1 milhões de euros. De acordo com o relatório de 2022, a Almost Future já vendeu o da Andrade Corvo por 3,44 milhões, continuando o da Estefânia na carteira da entidade, mas com uma avaliação de 4,4 milhões de euros. A Almost Future tinha, no final de 2022, ativos avaliados em 25 milhões de euros, sendo 23,3 milhões em imóveis, segundo os relatórios consultados pelo Observador.
O Jornal de Negócios noticiou, por outro lado, em janeiro de 2019, que a Almost Future tinha comprado cinco edifícios da PT (não identificados) por 13,7 milhões de euros. Na altura, a Altice indicou ao jornal que os imóveis eram na cidade de Lisboa “essencialmente devolutos”, dizendo mais tarde à Sábado que os imóveis vendidos pela Altice tiveram em conta “preços de mercado e tendo sempre por base avaliações levadas a cabo por entidades avaliadoras independentes e credenciadas”.
No final de 2020 a Almost Future vendeu um outro imóvel, na Rua da Moeda (devoluto), que também pertencera à PT por 2,9 milhões de euros. Segundo a Sábado, foi vendido pela Almost Future à Jacques Real State, uma empresa de Braga que tinha sido constituída esse ano e que dias antes da compra viu entrar um novo sócio no seu capital — a Smartdev.
Álvaro Gil Loureiro, que estará detido, surge noutros negócios associados indiretamente a Hernâni Vaz Antunes. Há duas empresas centrais neste esquema — a Vintagepanóplia e a Vaguinfus, que têm sedes, respetivamente, na Zona Franca da Madeira e em Braga.
As duas empresas têm participações na Gomes & Novais, que também é detida por Álvaro Gil Loureiro, e na Edge Technology, na qual surgem vários outros protagonistas. Além da Vintagepanóplia e da Vaguinfus são acionistas desta tecnológica — sediada também em Braga e que, segundo o Público, entrou no rol de fornecedores da Altice — Joaquim Vaz Antunes, a Van Holding e Melissa Antunes.
A família Vaz Antunes é igualmente acionista da Vaguinfus, tal como José Silva Pinto que também tem posição na Vintagepanóplia, assim como André Abreu Coutada e Rui Manuel Pedroso. Um esquema complexo que, segundo o Público, tinha ramificações também em fornecedores de tecnologia da Altice, nomeadamente na Tnord.
O Público indicava, em julho de 2021, que a Vaguinfus era acionista da Tnord, que é agora da Altice. E também era proprietária, através da Dunas de Contraste, da portuense Tirion Portugal Works Management, que também terão sido fornecedoras da Altice. A Dunas de Contraste tinha como administrador único José da Silva Pinto que assumiu a gerência da Tirion em 2021, depois da renúncia do cargo de André Abreu Coutada. Foi também este gestor que terá estado, segundo a Sábado, na escritura de venda, pela Vintagepanóplia, de uma moradia a Alexandre Fonseca, que passou de CEO da Altice em Portugal para co-CEO do grupo a nível mundial. Uma vivenda avaliada em mais de um milhão de euros.
O epicentro de Braga, com vários protagonistas em papéis cruzados, levou agora às buscas que já fizeram três detidos e que serão este sábado presentes a juiz para interrogatório. Os negócios envolvendo a Altice estão a ser investigados e o Nascer do Sol ainda fala de uma outra operação — a compra dos direitos televisivos do FC Porto pela Altice e que terá tido Bruno Macedo como intermediário, alegadamente a troco de uma comissão, com a promessa de a distribuir por mais duas pessoas, uma delas Hernâni Vaz Antunes, noticiou em novembro de 2021 a Sábado.
Estando a Altice no centro desta investigação, a operadora já fez saber que iniciou uma investigação interna relacionada com os processos de compra e a aquisição e venda de imóveis. Além disso, determinou às empresas participadas que suspendam pagamentos às sociedades visadas pela investigação (não referindo quais), suspendam qualquer nova compra a essas entidades e que reforcem os procedimentos de aprovação dentro do grupo em qualquer aquisição.