Às segundas, quartas e sextas-feiras, dependendo das idades, a Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa recebe dois grupos de doentes do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz (HSC). Um dos grupos é formado por crianças dos 8 aos 12 anos, o outro por adolescentes e jovens adultos entre os 12 e os 35 anos. Ambos integram o HERO – Programa de Reabilitação Cardíaca Pediátrica, nascido em novembro de 2022, que já chegou a mais de quarenta pacientes.
Criado pela MINICOR – Associação Coragem, do mesmo serviço hospitalar, que integra a Unidade Local de Saúde Lisboa Ocidental, em parceria com a FMH, este programa surgiu para mitigar um dos maiores problemas em crianças com doenças cardíacas: a falta de exercício físico. João Pedro Rato, cardiologista pediátrico no HSC e um dos coordenadores do HERO, explica que “estas crianças não costumam fazer exercício porque têm uma capacidade física diminuída pela doença, por baixa autoestima e porque são limitados pelos seus pares [amigos e colegas de escola da mesma idade], pais e médicos”. O programa comunitário pediátrico, que alia a prática de exercício físico à avaliação cardíaca, física, nutricional e psicológica, “pretende mudar esta realidade”.
Faltam poucos minutos para as 17h15, hora marcada para o início da sessão da turma dos mais novos. À entrada de um dos ginásios da FMH onde a aprendizagem se junta à brincadeira, seis participantes esperam entusiasmados. Fazem-se acompanhar dos pais que, durante 45 a 50 minutos, não arredam pé dali e ficam a assistir o desempenho dos filhos. Uma rotina que se repete duas vezes por semana, à quarta e sexta-feira à tarde. Hoje a sessão conta com uma presença especial. A irmã de um dos alunos vem fazer a aula com o grupo, algo que costuma acontecer de vez em quando e que a equipa de fisiologistas do exercício, da FMH, vê com bons olhos.
Todas aquelas crianças têm em comum o facto de terem um coração muito debilitado, pelas mais variadas razões. Na maior parte das vezes, cardiopatias congénitas, ou seja, malformações cardíacas que ocorrem durante o desenvolvimento do coração do feto no útero materno, trouxeram-nas até ali. João Pedro Rato revela que “uma em cada cem crianças costuma nascer com algum tipo de malformação cardíaca, o que torna as cardiopatias congénitas a forma mais frequente de malformação presente no nascimento”, embora, em alguns casos, só sejam diagnosticadas mais tarde, durante a infância ou mesmo na idade adulta.
Mais raramente, podem ainda surgir doenças cardíacas durante a vida de uma criança que nasceu com um coração normal, são as doenças cardíacas adquiridas. “É o caso das miocardiopatias e também de alterações no ritmo dos batimentos cardíacos (arritmias cardíacas).”
A gravidade destas situações é muito variável, mas este grupo reúne crianças com algumas das condições mais graves. O Zé tem síndrome de Marfan, uma doença hereditária que afeta principalmente a estrutura óssea, o globo ocular e o sistema cardiovascular. O João tem uma atrésia pulmonar, que se carateriza pela existência de uma válvula pulmonar estranha que impede a passagem de sangue para os pulmões. O Gabriel vive com uma miocardiopatia dilatada, uma doença em que o coração “expande” e fica mais fino e fraco, deixando de conseguir bombear corretamente o sangue e que leva à insuficiência cardíaca. O Lourenço e a Leonor têm corações univentriculares, ou seja, nasceram apenas com um ventrículo. Cinco exemplos das raras e complexas alterações da anatomia do coração dos participantes do HERO.
Melhorar a aptidão física enquanto brincam
O ambiente do ginásio está longe de fazer lembrar as instalações de um hospital, onde habitualmente decorrem a maioria dos programas de reabilitação cardíaca dos adultos. A diversão, a alegria e o entusiasmo reinam entre os mais novos. A recebê-los está a dupla de fisiologistas de exercício composta por Vanessa Santos e Raquel Alves.
No espaço, um número incontável de colchões, uma piscina de esponjas, dois trampolins e outros materiais enchem o recinto de cor e aguardam pela chegada das crianças. Antes de a aula começar, é preciso que cada uma coloque um cardiofrequencímetro. Este aparelho, que já lhes é familiar, vai monitorizar a sua frequência cardíaca em tempo real e dizer-lhes quando precisam de interromper o exercício para descansar. “Todas as crianças têm um plano individualizado e a sua frequência cardíaca de treino, que é retirada das provas de esforço que realizam no hospital e que dita a intensidade do exercício físico”, diz Helena Santa-Clara, professora e também coordenadora do programa na FMH.
Durante cada sessão, a equipa de fisiologistas vai monitorizando no tablet que tem consigo as frequências cardíacas de cada participante “e sempre que estes estiverem fora do intervalo de valores definido são alertados para fazerem o exercício mais depressa, caso a sua frequência cardíaca se encontre abaixo do pretendido, ou são avisados para pararem e descansarem até os valores regressarem à zona de segurança”.
A aula começa com um período de aquecimento, de forma a preparar o corpo para o esforço que se aproxima. Alguns minutos depois segue-se a parte principal da sessão. Hoje é dia de fazer um circuito composto por várias estações em que os alunos têm de cumprir diferentes tarefas. Saltam obstáculos, lançam figuras geométricas de esponja, fazem acrobacias na barra e até há quem, como o destemido Lourenço, faça mortais ao saltar para a piscina de esponjas.
Cada um faz os exercícios ao seu próprio ritmo, dentro das suas capacidades e na intensidade que lhe foi recomendada. De vez em quando, ouvem-se as indicações das fisiologistas do exercício: “Leonor, faz o movimento um bocadinho mais depressa” ou “Rodrigo, agora para um bocadinho para descansares”.
Ao longo dos 45 minutos de aula “é preciso criar situações e atividades que nós sabemos que as crianças gostam porque perdem rapidamente o interesse e ficam desmotivadas”, diz Helena Santa-Clara. Para isso, “vão sendo construídos momentos, como saltar no trampolim, em que parece que eles já não estão a treinar, mas apenas a divertir-se, quando na realidade estão a melhorar a agilidade, a força muscular, a componente cardiorrespiratória e a sua aptidão física.”
O relógio vai avançando e entre exercícios que mais parecem brincadeiras trabalham-se coisas sérias. Muitos destes miúdos apresentam uma reduzida competência motora comparativamente com as crianças da sua idade. “A partir dos oito anos as crianças desenvolvem um leque de capacidades a nível do movimento, como correr, saltar, chutar, arremessar, driblar, apanhar e trepar”, explica a professora da FMH. No entanto, estes padrões não são adquiridos de forma automática. A maioria dos miúdos necessita de ter uma oportunidade de aprender e praticar esses movimentos e, geralmente, estes não os têm por causa da sua doença. Este programa dá-lhes essa possibilidade.”
Quando a sessão termina, perguntamos a Lourenço Mirotes o que acha destas aulas. Rápido na resposta diz que gosta muito. “São fixes e divertidas. A melhor parte são as brincadeiras.” Lourenço tem 11 anos e uma das condições mais complexas do grupo, nasceu um coração univentricular [só com um ventrículo]. No entanto, quem o vê em ação durante as sessões do HERO, não imagina que já foi operado três vezes por causa do seu problema. Entre mortais, corridas e saltos, o rapaz continua a mostrar que o exercício físico é fundamental na sua vida e para o seu coração. Diz que, por vezes, fica cansado depois das aulas, mas nunca falta às duas sessões semanais do programa.
Os benefícios do exercício nas doenças cardíacas
Ter uma doença cardíaca não é impedimento para a prática de atividade física, garante a equipa. “Acreditamos que todos podem fazer exercício físico, mas cada um tem o seu limite”, afirma João Pedro Rato. “De forma segura, o que tentamos fazer no HERO é, independentemente da patologia, proporcionar uma vida o mais normal, ativa e com a melhor qualidade possível, capacitando-os para desempenhar atividades do seu quotidiano sem esforço, sobretudo nos casos mais complexos”. Mas os objetivos do programa vão mais longe.
Graças aos avanços técnicos e à evolução dos cuidados prestados nestas doenças, cada vez mais crianças com cardiopatias congénitas atingem a idade adulta. “Atualmente, 85 a 95% destes miúdos chegam à idade adulta, daí que os objetivos do HERO passem também por lhes proporcionar um melhor desenvolvimento motor e psicossocial”.
Aqui respira-se desporto em “todos os cantos”, mas não só. Respira-se também “normalidade, aceitação, autoestima e empatia”, assegura Sílvia Bastos, psicóloga no HSC e do programa HERO. “O facto de os participantes não estarem num ambiente hospitalar, mas num espaço altamente inclusivo e de exercício em grupo é fundamental e inovador, pois estão com outras crianças que, às vezes, têm os mesmos problemas e ajudam-se uns aos outros a superar a si próprios.”
Para a psicóloga, esta componente psicológica e social traz benefícios evidentes, nomeadamente o reforço da autoestima, a valorização pessoal, a participação social e, consequentemente, a melhoria da qualidade de vida. A estes juntam-se ainda a gestão do medo e preocupações por parte dos adultos. “A existência de um espaço em que as crianças podem exercitar-se de forma acompanhada e monitorizada e de os pais poderem ver o que os filhos podem e conseguem fazer dá-lhes muito mais tranquilidade, confiança e esperança, fazendo com que olhem para eles de outra maneira”, sublinha.
Apesar dos múltiplos benefícios comprovados nos programas de reabilitação cardíaca para adultos e das vantagens que o exercício físico traz para as crianças e adolescentes, os programas de reabilitação pediátrica são pouco utilizados e quase inexistentes. “O nosso Serviço Nacional de Saúde está assoberbado com os desafios das doenças que precisam de respostas imediatas, o que torna muito difícil implementar projetos desta natureza”, diz João Pedro Rato. Por um lado, “porque estamos agora a dar os primeiros passos nesta área – o HERO é o primeiro do género, e, por outro, porque criar um programa destes envolve financiamento, encontrar os parceiros certos e muito trabalho extra-horário laboral”.
No caso do HERO, além da MINICOR – Associação Coragem, que ajuda a suportar as despesas, o programa conta também com o apoio da Câmara Municipal de Oeiras que, no ano passado, atribuiu um valor de 13 mil euros para a aquisição de equipamento. “Contamos com a mesma verba em 2024.”
A seguir à aula dos participantes mais novos do HERO, passamos para a dos adolescentes e adultos jovens, que acontece três vezes por semana. Saímos do ginásio e seguimos a fisiologista do exercício principal, Vanessa Santos, que nos diz que a sessão já deve ter começado e que o programa conta também com uma modalidade online para as crianças que se encontram mais afastadas de Lisboa. À terça e quinta-feira ao fim do dia, nove alunos de regiões como Setúbal, Algarve, Porto e Açores reúnem-se com os fisiologistas da FMH através da plataforma Teams, da Microsoft.
Percorremos corredores e subimos escadas até que chegamos ao pavilhão multidesportivo. “Hoje a sessão decorre aqui, mas também costumamos fazer na sala de exercícios, onde temos ergómetros [bicicletas estáticas, elípticas, passadeiras] e máquinas de musculação”, conta. Os alunos já se encontram a fazer o aquecimento sob a orientação de Raquel Alves e de Márcio Fernandes, o terceiro fisiologista do exercício da equipa. Espalhados pelo pavilhão, encontramos bolas de diferentes tamanhos (de futebol, de basquete), cordas, pinos, entre outros materiais que serão usados ao longo da próxima hora.
Tal como na sessão dos mais novos, a aula está estruturada em três momentos diferentes: aquecimento ou ativação geral, a parte principal e o retorno à calma. Entre cada etapa da sessão e durante a parte principal deve haver períodos de pausa curtos. “A pausa deve ser ativa e permitir a hidratação dos alunos, de forma a que as frequências cardíacas não desçam muito e para que se consiga manter a continuidade do exercício sem fadiga excessiva”, diz Vanessa Santos.
Sofia Corte Real interrompe a aula para conversar connosco por alguns minutos. Tem 21 anos foi diagnosticada com uma doença chamada tetralogia de Fallot. “É um problema congénito que apresenta quatro malformações no coração [hipertrofia do ventrículo direito, estenose da artéria pulmonar, sobreposição da aorta e comunicação interventricular]. Acho que todos a temos aqui só que em diferentes níveis”, diz.
A sua doença fez com que tivesse de ser operada apenas com oito meses. Juntou-se ao programa HERO há cerca de um ano e desde, então, tem notado várias diferenças em si. “Sabe bem vir para aqui depois de um dia de faculdade e de stress. Já temos aqui um grupo de amigos com quem é bom conviver e fazer desporto”, revela. Além dos benefícios a nível social e emocional, “não me canso tanto a fazer os exercícios. Hoje já consigo fazer aqui caminhadas em que antes tinha de parar a meio.”
À semelhança de Sofia, também Maria Inês Bruno, de 32 anos, acredita que as sessões do HERO a ajudam “a ganhar resistência” a nível físico. “Não me canso tanto no dia a dia e sinto uma maior segurança e confiança na prática de exercício físico”. Tem a mesma doença que Sofia (tetralogia de Fallot), mas ao contrário da colega de treino já foi submetida a duas cirurgias, a primeira quando tinha pouco mais de um ano e a segunda aos cinco.
A entrada no programa HERO permitiu-lhe voltar a praticar exercício físico, algo que já não fazia desde o 5º ano de escolaridade. “Nessa altura deixei de fazer Educação Física porque as pessoas diziam que não se queriam responsabilizar dada a minha condição e, como consequência, comecei a sentir que não era competente em nada que estivesse relacionado com exercício físico”. Algo que mudou com a sua vinda para o programa.
Por esta altura, a aula já está a terminar. Enquanto fazem os alongamentos, Vanessa Santos diz que nota uma grande diferença na evolução dos alunos: “Muitos deles não traziam competências físicas nenhumas. Alguns não sabiam correr, saltar, nunca tinham lançado uma bola de basquete ou feito um lançamento. E hoje em dia já fazem isso tudo. Os seus padrões motores aumentaram e melhoraram, assim como a aptidão física”.
Para que as sessões decorram sem problemas de maior, há sinais a que alunos e fisiologistas do exercício devem estar atentos, além da vigilância e monitorização da frequência cardíaca. “Alterações no ritmo cardíaco, transpiração mais abundante do que o habitual, lábios ou pele azulada, tonturas, má disposição são alertas que devem ser tidos em conta e que podem culminar numa situação mais preocupante”, indica Vanessa Santos. De modo a acautelar estes cenários, todos os fisiologistas do exercício têm formação em suporte básico de vida e os espaços da faculdade estão equipados com desfibrilhadores automáticos externos (equipamento utilizado na paragem cardiorrespiratória) e outro material de primeiros-socorros.
O primeiro passo para participar no HERO começa com o encaminhamento dos doentes para o coordenador do projeto. “A referenciação dos doentes é feita através do cardiologista pediátrico que os acompanha [em outros hospitais do país] e que envia as crianças para mim, no Serviço de Cardiologia Pediátrica do HSC”, explica João Pedro Rato. No hospital são submetidos a uma avaliação cardíaca, nutricional e psicológica, e de seguida são avaliados a nível físico pela equipa da FMH para verificar se podem fazer o tipo de exercícios que integram estas aulas.
Entre a bateria de exames realizados para avaliar o risco individual de cada criança, encontram-se, habitualmente, um eletrocardiograma (ECG), um ecocardiograma e, um dos mais importantes para a prática de exercício físico, uma prova de esforço (para avaliação da atividade elétrica do coração antes, durante e após a realização de um esforço físico “máximo”). “É este exame que nos dá os parâmetros de segurança para a prática de exercício. Desta forma, é possível descobrir até que nível de esforço a criança pode ir e definir a intensidade adequada para as atividades físicas”, explica.
Atualmente, a equipa multidisciplinar do programa é constituída por dez profissionais: um cardiologista pediátrico, duas técnicas de cardiopneumologia, uma dietista, duas psicólogas, do Hospital de Santa Cruz, e também pela professora e três fisiologistas do exercício, todas da FMH. Do lado dos alunos, o HERO tem, neste momento, 30 participantes ativos: seis crianças e 15 adolescentes e jovens adultos na modalidade presencial e nove na turma online.
Embora tenha passado apenas um ano e oito meses desde que o programa nasceu, fruto de uma necessidade verificada, o HERO está a crescer ao mesmo tempo que os alunos vão melhorando a sua aptidão física. “Ainda não temos nenhum estudo que nos possa dizer que os participantes estão bem melhor, mas vamos avaliando a sua evolução por volta dos seis e doze meses, dependendo da variável que estamos a avaliar, e os resultados são animadores”, assegura João Pedro Rato, apontando a diminuição do cansaço e a melhoria da destreza física de alguns alunos como exemplos. Até lá, até que a evidência científica seja publicada e apareçam mais programas a promover a prática de exercício físico e a integração destas crianças, o Lourenço, a Sofia e a Maria Inês, assim como os restantes membros do programa, continuarão a vir à FMH fazer a sua dose de atividade física. E a melhorarem a sua qualidade de vida.
Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.
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