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Um “amigo de confiança que veio dos Estados Unidos” que deixa os russos com “fumo a sair-lhes do rabo”. A canção mais recente do músico (e militar) ucraniano Taras Borovok não é dedicada a nenhum camarada de armas, mas sim a um sistema de artilharia que está a ter uma influência inesperada na guerra da Ucrânia. Chama-se HIMARS (sigla para High Mobility Artillery Rocket System) e é um lançador de foguetes produzido nos EUA. E não inspira apenas canções: em julho, uma série de posters dedicados a este sistema apareceram nas paredes da cidade de Kherson, ocupada pelos russos.
São sinais de popularidade que ilustram bem como o armamento fornecido pelos norte-americanos está a galvanizar os ucranianos, graças à sua eficácia — e, possivelmente, a contribuir para mudar o curso do conflito. Ainda esta segunda-feira, Washington anunciou mais um pacote de armamento no valor de mais de 500 milhões de euros, onde se incluem munições para os HIMARS. Nas redes sociais, o governo ucraniano há muito que rejubila: “Os HIMARS já fizeram uma ENOOORME diferença no campo de batalha”, declarou o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, a 9 de julho.
HIMARS have already made a HUUUGE difference on the battlefield. More of them as well as ???????? ammo & equipment will increase our strength and help to demilitarize the terrorist state. I highly appreciate the efforts of the @POTUS & @SecDef to support Ukraine's struggle for freedom! pic.twitter.com/4jsn2hSD6e
— Oleksii Reznikov (@oleksiireznikov) July 9, 2022
Logo no início de julho, os HIMARS foram utilizados pelo exército ucraniano com sucesso: em Donbass, os lança-foguetes serviram para destruir dois armazéns de armamento russo. Analistas militares estimam também que tenha sido com recurso a este sistema que o exército ucraniano conseguiu atingir uma base aérea russa em Melitopol, perto de Zaporíjia. Agora, mais recentemente, têm sido usados pelas forças armadas de Kiev em alvos como pontes, na tentativa de reconquistar a cidade ocupada de Kherson — um contra-ataque que, em caso de sucesso, poderia virar a guerra a favor dos ucranianos. Mas estará a Ucrânia a depositar demasiadas esperanças num único sistema lançador de foguetes?
Linhas de abastecimento russas destruídas e a ameaça de uma “arma secreta” do Kremlin
A eficácia dos HIMARS explica-se sobretudo pela rapidez com que o sistema de artilharia funciona. Mark F. Cancian, antigo militar norte-americano que teve experiência com HIMARS na guerra do Iraque, descreve como: “Em cerca de dois minutos, uma única bateria de foguetes (nove lançadores MLRS) pode disparar 108 foguetes de 23 centímetros, cada um com ogivas de 90 quilos”.
Não admira, por isso, que cada unidade de HIMARS custe cerca de 5 milhões de euros a produzir — a que se soma o custo dos mísseis utilizados, a cerca de 155 mil euros cada.
Numa guerra em que a artilharia se tornou decisiva, os HIMARS têm tido um papel fulcral para Kiev, como explica ao Observador Nicolas Jouan: “Desde que o conflito se tornou numa guerra de desgaste, e especialmente desde que a Rússia concentrou os seus esforços na frente de leste, um dos fatores mais decisivos em termos táticos tem sido a mobilidade, precisão e alcance dos sistemas de artilharia”, diz o analista de Defesa do think tank RAND. “Os HIMARS são um acrescento interessante ao arsenal da Ucrânia, já que têm mais mobilidade e são mais poderosos do que os sistemas de artilharia que estavam a usar antes, como o M777.”
Sidharth Kaushal, especialista em tecnologia militar do Royal United Services Institute, concretiza: “Isto significa que os ucranianos conseguem atingir alvos como armazéns de armamento que estão para lá da linha da frente russa. O efeito disto é perturbar o ritmo de reabastecimento da artilharia e forçar os russos a fazer recuar o armazenamento.”
A esta eficácia soma-se o facto de os ucranianos estarem a utilizar os HIMARS sobretudo durante a noite. Num sistema altamente dinâmico e móvel, como explica a CNN, a utilização noturna torna ainda mais difícil para o exército russo detetar de onde estão a ser disparados os foguetes.
Os sinais de que a Rússia está preocupada com o uso deste sistema começam a ser conhecidos. O Institute for the Study of War detetou, por exemplo, publicações reveladoras no canal de Telegram Moscow Calling, onde a “operação especial” russa costuma ser elogiada: os responsáveis pelo canal escrevem agora que a introdução dos HIMARS no teatro de operações iniciou uma nova fase do conflito. “O Moscow Calling insinuou fortemente que os recentes ataques ucranianos a armazéns, centros de comunicação e bases militares russas estão a ter um impacto devastador e potencialmente irreversível no desenvolvimento de ofensivas futuras por parte da Rússia”, resume o ISW.
Também Igor Girkin, antigo combatente russo no Donbass conhecido pela sua avaliação crítica da atuação recente do exército russo, declarou no Telegram que “os sistemas de defesa aérea russos revelaram-se ineficazes perante os ataques em massa dos mísseis dos HIMARS”.
Nicolas Jouan confirma essa avaliação: “As forças de artilharia russa terão sofrido perdas relevantes e estão agora a ir buscar reservas à artilharia da era soviética, como os 2S7”, afirma, referindo-se ao pesado sistema de artilharia que foi usado pela primeira vez pelos soviéticos no Afeganistão.
Oficialmente, porém, Moscovo não confirma que esteja em apuros por causa dos HIMARS. Bem pelo contrário: recentemente, o especialista militar Alexei Leonkov afirmou na televisão russa que o Kremlin tem uma “arma secreta” capaz de destruir os mísseis lançados pelos HIMARS. “O sistema americano foi vítima de hacking”, disse no Canal 1. “E o nosso sistema secreto será utilizado em todo o lado. É um bom sistema, que ainda não posso identificar, mas que funciona com distâncias muito maiores”. Esta terça-feira, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, disse também que a Rússia já destruiu seis dos HIMARS fornecidos pelos norte-americanos à Ucrânia.
Os especialistas consultados pelo Observador, contudo, têm sérias dúvidas de que os russos tenham desenvolvido um sistema de defesa aérea eficaz contra os mísseis dos HIMARS. “Parece-me altamente duvidoso”, diz Sidharth Kaushal. Também o analista militar Oleg Zhdanov afirmou que “não há nenhum antídoto para este tipo de armas”. “Uma solução de defesa contra estes sistemas simplesmente não existe. A única forma é, quando se vê um foguete a vir na nossa direção, fugir.”
Esta terça-feira, o Pentágono desmentiu a notícia de que Moscovo já tenha destruído seis HIMARS: “São declarações claramente falsas do ministro Shoigu”, disse o porta-voz do organismo.
Há vida para lá dos HIMARS. A “pausa operacional” russa que ajuda a explicar a mudança no terreno
Os HIMARS, porém, não explicam tudo. No início do mês de julho, Vladimir Putin anunciou uma “pausa operacional” no terreno. Agora, os analistas militares confirmam que não se tratava de bluff e que as forças russas estão de facto a diminuir os ataques e a reorganizar-se. “Os russos estão literalmente a rapar o fundo do tacho para encontrar novas tropas e equipamento”, resumiu ao New York Times o antigo comandante Frederick B. Hodges.
A aparente pausa na ofensiva russa explica-se, por isso, também pela incapacidade do seu próprio exército. “Embora os HIMARS sejam um dos fatores [para a situação atual], a decisão russa de impor uma pausa operacional deve-se a muitas outras razões”, diz ao Observador Sidharth Kaushal. “O número limitado de operacionais, a exaustão das tropas depois de ofensivas bem-sucedidas, mas sangrentas, e a necessidade de integrar os novos recrutas nas unidades pré-existentes provavelmente também têm um papel aqui.”
E os HIMARS têm as suas próprias limitações. No artigo publicado no site do Center for Strategic and International Studies, o antigo militar Cancian explica que estes lançadores de foguetes só são eficazes contra alvos que estejam parados.
Isso significa que, embora sejam eficazes para atacar a capacidade de reabastecimento russa e, portanto, ajudem a travar novas ofensivas, não são tão competentes contra alvos em movimento — ou seja, não são a panaceia que garante que a Ucrânia é capaz de levar a cabo um contra-ataque e reconquistar territórios ocupados pelos russos, como Kherson. “Os HIMARS limitam a capacidade da Rússia levar a cabo operações ofensivas, mas não forçam os russos a sair da Ucrânia. Para isso são necessários homens e armamento”, resumiu ao Wall Street Journal o analista militar Konrad Muzyka.
Os analistas ouvidos pelo Observador concordam. Kaushal nota que os HIMARS podem ajudar à reconquista de Kherson pelo facto de já terem sido usados para atacar pontos centrais como a ponte Antonivsky, mas considera muito mais relevantes outros fatores, como “um exército russo desgastado e o facto de os russos estarem concentrados no Donbass”. Já Jouan aponta outro dado: “Um desafio que a Ucrânia vai ter de enfrentar é continuar a assegurar treino adequado para as suas tropas, bem como fornecimento constante de munições e peças para que os sistemas HIMARS possam continuar a ser utilizados.”
Sem apoio continuado dos EUA, HIMARS não servem para nada
Um HIMARS pode bem ser “um amigo de confiança”, como canta Taras Borovok, mas a amizade que é essencial os ucranianos manterem é a dos Estados Unidos — sem ela, não há forma de garantir a manutenção destes sistemas, através de treino, munições e manutenção.
A administração de Joe Biden tem estado investida no apoio a Kiev e o Presidente norte-americano justificou essa decisão num artigo publicado no New York Times em finais de maio, altura em que os EUA decidiram começar a fornecer os HIMARS à Ucrânia. “Apoiar a Ucrânia na sua hora de necessidade não é apenas a coisa certa a fazer. É do nosso interesse nacional garantir uma Europa pacífica e estável e deixar claro que a força não torna tudo correto. Se a Rússia não pagar um preço elevado pelas suas ações, vai enviar uma mensagem a outros potenciais agressores de que eles também podem tomar território e subjugar outros países”, escreveu Biden, justificando assim a entrega de mais armamento pesado a Kiev.
No entanto, o Presidente norte-americano impôs uma condição, que ficou explícita no artigo: “Não encorajamos ou permitimos à Ucrânia que conduza ataques para lá das suas fronteiras.” O receio de Washington é que, caso um míssil norte-americano caia em território russo, Moscovo interprete isso como um ataque direto por parte dos EUA e retalie, iniciando uma guerra que envolva os dois países (e potencialmente outros Estados-membros da NATO).
Precisamente por isso, os EUA têm recusado fornecer à Ucrânia mísseis de longo-alcance como os ATACM (com um alcance de 300 quilómetros). Mas os analistas militares consideram que, apesar dessa condição, nada indica que os norte-americanos estejam a abrandar na sua vontade de apoiar a Ucrânia: “Mesmo não estando dispostos a fornecer armamento que possa atingir o território russo, há poucos sinais de que a vontade norte-americana de armar os ucranianos para atingir as tropas russas no seu próprio território esteja a abrandar”, resume Sidharth Kaushal.
“Ainda é cedo” para fazer o balanço final sobre o papel que os HIMARS estão a ter nesta guerra, avisa Nicolas Jouan. “Contudo, é quase certo que o fornecimento dos HIMARS às forças ucranianas está a tornar a vida das tropas russas mais difícil.”
Daí a concluir que os HIMARS vão garantir a vitória a Kiev vai um salto lógico demasiado grande. Como resumiu um antigo estratega do Departamento da Defesa norte-americano, Chris Dougherty, este sistema pode ter ajudado a “estancar a sangria” que os ucranianos estavam a sofrer no Donbass. “Mas o que é que se faz depois disso?”, questionou.