“Notre-Dame” é o livro que Ken Follett dedica à catedral de Paris que foi parcialmente destruída por um incêndio. É um livro que parte da visão pessoal do autor sobre os acontecimentos de abril para depois lembrar a história do monumento, além de refletir sobre influência que a Notre-Dame teve na hora de escrever “Os Pilares da Terra”, provavelmente aquele que é o livro mais popular do escritor galês.
O Observador publica um excerto em que Ken Follet faz um resumo histórico dos momentos mais marcantes da construção da catedral.
Em 1163, a Catedral de Notre‑Dame era demasiado pequena. A população de Paris aumentava. Na margem direita do rio Sena, o comércio crescia para níveis sem igual no resto da Europa medieval; e, na Margem Esquerda, a universidade atraía estudantes de muitos países. Entre as duas margens, numa pequena ilha, erguia‑se a catedral, e o bispo Maurice de Sully lamentava que ela não fosse maior.
E havia outro motivo de insatisfação. O edifício tinha sido construído segundo o estilo românico caracterizado por arcos redondos. Mas surgia então um novo e empolgante movimento arquitetónico em que se destacavam os arcos em ogiva, que permitiam a entrada de mais luz nos edifícios. Era o estilo que passou a ser designado por gótico, e tinha sido introduzido a uns meros dez quilómetros da Notre‑Dame, na Basílica de Saint‑Denis, onde eram sepultados os reis de França. O estilo gótico adotado na basílica apresentava de forma brilhante várias inovações técnicas e visuais: para além dos arcos em ogiva, exibia pilares formados por várias colunas das quais partiam arcos que se elevavam em direção a uma abóbada alta, mais leve; um deambulatório em semicírculo na extremidade leste que permitia aos peregrinos passarem junto das relíquias de Saint Denis, enquanto no exterior existiam elegantes arcobotantes que facilitavam a abertura de janelas maiores, dando a impressão de que a gigantesca basílica estava prestes a levantar voo.
Maurice de Sully terá visto a nova Basílica de Saint‑Denis e apaixonou‑se por ela. Comparativamente, a Notre‑Dame parecia antiquada. Ele talvez até sentisse uma certa inveja do abade Suger, de Saint‑Denis, que encorajara dois mestres‑pedreiros, um após o outro, a fazer experiências ousadas, com resultados extraordinários. Foi então que Maurice de Sully ordenou que a sua catedral fosse abatida e substituída por um edifício gótico.
Permitam‑me fazer uma pausa. Tudo isto parece muito simples, mas é na verdade espantoso. A Catedral de Notre‑Dame de Paris e a maioria das grandes igrejas góticas, que são, sem qualquer dúvida, os edifícios mais belos das cidades europeias, foram construídas na Idade Média, uma época marcada pela violência, pela fome e pela peste.
A construção de uma catedral era um empreendimento gigantesco que se arrastava ao longo de décadas. A catedral de Chartres foi construída em vinte e seis anos e a de Salisbúria em trinta e oito, um tempo invulgarmente curto. Para construir a Notre‑Dame de Paris foram necessários quase cem anos, sem contar com o tempo para fazer as obras de melhoramentos ulteriores.
Foram recrutados centenas de operários e custou uma fortuna. Hoje, os custos equivalentes seriam os de uma viagem à Lua.
Este edifício imenso foi construído por pessoas que viviam em cabanas de madeira com telhados de palha e que dormiam no chão, pois apenas os ricos tinham camas. As torres da Notre‑Dame têm sessenta e nove metros de altura, mas os construtores não possuíam conhecimentos matemáticos para calcular o esforço em estruturas daquelas. Procediam por tentativa, correndo o risco de erro. Por vezes, os edifícios que construíam ruíam: a catedral de Beauvais desmoronou‑se duas vezes.
Para nós, não há nada de especial em ir a uma casa de ferragens comprar um bom martelo com cabeça de aço por apenas alguns euros, mas os utensílios dos construtores de catedrais eram rudimentares e o aço tão caro que era usado com parcimónia, muitas vezes apenas na ponta de uma lâmina.
A Notre‑Dame, como todas as outras catedrais, era ricamente decorada, porém, os construtores usavam túnicas simples de tecido grosseiro. A catedral possuía baixelas, cálices, crucifixos e candelabros de ouro e de prata, mas os fiéis bebiam por copos de madeira e usavam junco a arder como meio de iluminação, apesar do intenso fumo que era libertado.
Como era isto possível? Como é que uma beleza tão majestosa pode nascer da violência e da imundície da Idade Média?
Estas questões encontram resposta num fator que os estudos históricos sobre catedrais quase sempre ignoram: o clima.
O período entre 950 e 1250 d. C. é conhecido entre os climatólogos como “anomalia climática medieval”. Durante trezentos anos, o tempo nas regiões do Atlântico Norte foi mais quente do que habitualmente. As provas deste fenómeno podem ser obtidas nos anéis dos troncos das árvores, em amostras de gelo dos glaciares e em sedimentos de lagos que indicam alterações climáticas de longa duração no passado. Continuaram a existir anos ocasionais de más colheitas e de fome, mas em média a temperatura era mais alta. Tempo mais quente significava melhores colheitas e uma população mais saudável. E foi assim que a Europa emergiu da longa depressão conhecida por Idade das Trevas.
Sempre que os seres humanos conseguem produzir mais do que necessitam para sobreviver, surge alguém que lhes leva o excedente. Na Europa medieval havia dois grupos assim, a aristocracia e a Igreja. Os nobres faziam a guerra e, entre as batalhas, caçavam para manter os seus talentos equestres e o espírito sanguinário. A Igreja construía catedrais. O bispo Maurice de Sully tinha dinheiro suficiente para o seu projeto ou, pelo menos, para o iniciar.
Contratou um mestre‑pedreiro cujo nome desconhecemos, o qual criou um plano de construção que não foi, porém, desenhado em papel. No século xii, a arte de fazer papel era nova na Europa e este artigo constituía um luxo dispendioso. Livros como a Bíblia eram escritos em pergaminho, uma pele fina, igualmente dispendiosa.
Os construtores executavam os seus desenhos num traçado no chão. Era despejado gesso no solo, esperavam que endurecesse e faziam desenhos com recurso a um utensílio com uma ponta de ferro, como se fosse um prego. Ao início, os traços resultavam brancos, mas com o decorrer do tempo esbatiam‑se, permitindo que fossem traçados novos desenhos sobre os anteriores. Alguns traçados no chão sobreviveram e eu pude observá‑los nas catedrais de York e de Wells.
Deve ter havido grandes discussões entre Maurice de Sully e o seu mestre‑pedreiro. Enquanto o bispo explicava o que pretendia — uma igreja moderna banhada de luz —, o construtor pensava na maneira como concretizar esse sonho. Mas ambos sabiam que, à medida que a construção avançasse e com o decorrer do tempo, o projeto iria sendo modificado por novas ideias e novas pessoas.
A altura do edifício terá sido um assunto importante durante esses encontros. Segundo o historiador Jean Gimpel, em Os Construtores de Catedrais, todas as cidades queriam ter a igreja mais alta:
A jovem sociedade medieval, simbolizada pela burguesia, foi, no seu entusiasmo, dominada por este espírito do “recorde do mundo”, que lançou as naves das catedrais em direção ao céu.
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A nave da Notre‑Dame teria 32,8 metros de altura — a mais alta do mundo (embora não por muito tempo: foi ultrapassada pela de Chartres alguns anos mais tarde).
Entretanto, foi decidido o desmoronamento da anterior catedral, mas os materiais foram reaproveitados. As pedras melhores foram empilhadas no local para formar as fundações da nova igreja. Até o entulho foi aproveitado, uma vez que as paredes de uma catedral medieval são uma sanduíche de duas camadas de pedra preenchida por entulho.
Encomendou‑se mais pedra. Não se tratou da famosa “pedra de Paris” cinzento‑rosa, tecnicamente conhecida como pedra calcária de Lutécia, usada na construção do Museu do Louvre, da igreja dos Invalides, das casas hollywoodescas de milionários do cinema e das lojas de Giorgio Armani em todo o mundo. Essa pedra só foi descoberta no século xvii e provém de pedreiras a quarenta quilómetros a norte de Paris, na região de Oise. Na Idade Média, o custo do transporte de pedra seria proibitivo. Na Notre‑Dame utilizou‑se pedra calcária de inúmeras pedreiras vizinhas, na periferia da cidade.
O construtor separou a pedra em função das suas características: a mais dura era destinada ao suporte das estruturas que tinham de resistir a cargas muito pesadas; a pedra mais macia e mais fácil de esculpir era reservada para os pormenores decorativos que não tinham de suportar pesos.
Após a finalização do plano, os construtores necessitavam de um sistema de medidas comum. Uma jarda, uma libra e um galão não eram o mesmo em todo o lado. Cada estaleiro tinha a sua própria medida de uma jarda, uma vara de ferro que indicava aos operários o comprimento exato de uma jarda.
Por esta altura, a cidade de Paris devia já ter os seus próprios instrumentos de medida normalizados, expostos junto ao cais, na margem direita do Sena. Era já uma cidade comercial, provavelmente a maior da Europa, e, nesses locais, era importante que uma jarda de tecido, uma libra de prata ou um galão de vinho fossem iguais em todas as lojas da cidade, de forma a permitir aos clientes saberem o que estavam a comprar. (Haveria também, sem dúvida, mercadores que se queixavam de regulamentação governamental abusiva!) Assim, é provável que a jarda do mestre‑pedreiro da Notre‑Dame fosse igual à dos outros mercadores de Paris.
Com o seu traçado no chão e o instrumento de medida na mão, o construtor desenhou o formato da catedral no chão onde se erguera a igreja velha; poderia agora dar‑se início à construção.
De um momento para o outro, Paris precisava de mais artífices e operários, em especial pedreiros, carpinteiros e argamassadores. Havia alguns que residiam na cidade, embora não em número suficiente para este novo projeto tão ambicioso. Os artífices de catedrais eram verdadeiros nómadas, viajando de cidade em cidade através da Europa em busca de trabalho, difundindo assim inovações técnicas e novos estilos durante as suas deslocações. À medida que se espalhava a notícia de que Paris estava a construir uma catedral, eles começaram a chegar da província e de outros países, como a Itália, os Países Baixos e a Inglaterra.
Para além dos homens, havia também mulheres. Jean Gimpel, já aqui mencionado, leu o registo de impostos do município de Paris do século XIII e encontrou muitos nomes femininos na lista dos artífices que pagavam impostos. Gimpel foi o primeiro historiador a assinalar o papel das mulheres na construção das nossas grandes catedrais. A ideia de que as mulheres são demasiado fracas para aquele tipo de trabalho é absurda, mas talvez seja verdade que a estrutura de um braço masculino se adeque mais ao ato de martelar. De qualquer modo, as mulheres eram mais frequentemente estucadoras e argamassadoras do que operárias de escopro e martelo. Trabalhavam muitas vezes como parte de uma equipa familiar constituída por marido, mulher e filhos mais velhos, sendo assim fácil imaginar o homem a cortar a pedra, a mulher a fazer argamassa e os jovens a irem buscar e a transportar areia, cal e água.
A construção de quase todas as catedrais era um empreendimento internacional. A principal catedral inglesa, em Cantuária, foi concebida por um francês, Guillaume de Sens. Homens e mulheres de diferentes nações trabalhavam lado a lado nesses estaleiros, pelo que hoje qualquer cidadão estrangeiro tem o direito de sentir a Notre‑Dame como uma herança sua, tal como os franceses sentem.
Este era um trabalho perigoso. Mal uma parede se elevava acima da altura do pedreiro, este tinha de trabalhar sobre uma plataforma e, à medida que ela se ia elevando mais, o mesmo sucedia à plataforma. Os andaimes medievais eram estruturas precárias feitas de ramos atados com cordas, e as pessoas de então bebiam muita cerveja. Guillaume de Sens caiu do andaime em Cantuária e morreu, sendo apenas um entre muitos.
Os trabalhos de construção da Notre‑Dame começaram na fachada leste, como era habitual. Havia uma razão prática para isto. Mal o coro ficasse concluído, os padres podiam começar a realizar missas nesse local, enquanto o resto da igreja era construído.
Todavia, a construção da Notre‑Dame correu mal. Desconhecemos o motivo, embora o dinheiro fosse a causa mais comum de atrasos. (Outras causas poderiam atribuir‑se a greves, atrasos no fornecimento de materiais e desmoronamentos.) Quando os fundos diminuíam, os operários eram despedidos e o trabalho avançava lentamente até chegar mais dinheiro. Foram necessários dezanove anos para a consagração do altar‑mor.
Mas, mesmo nessa altura, o coro não estava completamente terminado, porque surgiram rachas nas pedras. O mestre‑pedreiro calculou que a abóbada era demasiado pesada, mas encontrou uma solução feliz: para reforçar as paredes, acrescentou os elegantes arcobotantes que conferem todo o encanto à fachada leste, fazendo lembrar um bando de pássaros a levantar voo.
A partir de então, o trabalho avançou a um ritmo ainda mais lento. Ao mesmo tempo que a catedral de Chartres se erguia rapidamente, a apenas oitenta quilómetros de distância, a Notre‑Dame avançava aos poucos.
Novos estilos iam surgindo. As rosáceas, talvez a particularidade mais amada da catedral, foram um acréscimo tardio, introduzidas na década de 1240 pelo primeiro mestre‑pedreiro cujo nome conhecemos, Jean de Chelles. Os vitrais foram fabricados perto do final dos trabalhos de construção, quando a estrutura já estava firmemente estabelecida.
As duas torres gémeas ficaram prontas em 1250, e é provável que a última fase tenha sido o processo de fundição dos sinos. Como era praticamente impossível transportá‑los fosse a que distância fosse, foram fundidos no local. É provável que os construtores da Notre‑Dame tenham aberto uma fossa perto da base da fachada oeste para que os sinos pudessem ser içados diretamente daí para as torres.
Por volta de 1260, a catedral estava mais ou menos acabada. O bispo Maurice de Sully morrera em 1196. Não chegou a ver a sua grandiosa obra terminada.