O episódio aconteceu no início de março e está agora em tribunal. Um homem foi detido pela Polícia de Segurança Pública na zona da Estrela, em Lisboa, por estar a colar cartazes que tinham impresso um poema contra a violência policial sobre negros, tendo sido acusado de ofender a PSP com o conteúdo desse poema. Crime imputado: “Ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva” por divulgação de “factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade” da autoridade, o que implica uma pena de prisão até seis meses ou multa até 240 dias, indica o artigo 187º do Código Penal.
A detenção e o crime imputado foram confirmados ao Observador por fonte oficial da PSP. Seis meses passados, e depois de a hipótese de um julgamento sumário não se ter concretizado, o caso continua em investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, confirmou a Procuradoria-Geral da República ao Observador.
Os cartazes em causa faziam parte de uma exposição de poesia visual com curadoria de Ana Cristina Cachola. A curadora da exposição — que foi, inicialmente, considerada testemunha do detido e, já em julho, passou a arguida — fala em ataque à liberdade artística e à liberdade de expressão. E a autora do poema, a escritora de origem guineense Gisela Casimiro, que é também colunista do jornal Hoje Macau e uma das responsáveis pelo Instituto da Mulher Negra em Portugal, estranha não ter sido até agora contactada pelas autoridades. “Assumo plena responsabilidade pelo que escrevo e considero que a minha liberdade de expressão está a ser posta em causa sem nenhum fundamento”, afirma.
Certo é que a queixa da PSP dirá apenas respeito aos cartazes — e a quem os estava a colar — e não a outros suportes nos quais o mesmo poema, considerado ofensivo, estava ou já esteve replicado, como o livro de 2018 em que o poema foi publicado pela primeira vez ou a exposição a que os cartazes diziam respeito. Não se sabe, porém, porquê. Aliás, além do homem que estava a colar os cartazes — que sempre manteve este assunto sob reserva e por isso não quer falar à imprensa ou ser identificado — e a curadora da exposição, que saiu em sua defesa, não são conhecidos outros arguidos. E o caso levanta ainda uma outra dúvida: o artigo 187.º, que qualifica o crime em causa, refere-se a “factos inverídicos” e o escrito em causa é uma criação literária não factual.
O Observador apresentou estas e outras questões, por escrito, à direção nacional da PSP e ao Comando Metropolitano de Lisboa. Depois de uma espera de vários dias, com a promessa de uma resposta, a 24 de agosto a PSP acabou por dizer apenas que “o processo em questão está sob a alçada da autoridade judiciária” e, por isso, será mantida “reserva sobre quaisquer outras informações adicionais”.
A defesa da arguida diz esperar o arquivamento do inquérito e entende que não há fundamento para ir a julgamento, por estar em causa a liberdade de expressão.
As outras publicações do poema e o caso do cartoon do Público
O poema de Gisela Casimiro, antes de chegar à exposição e aos cartazes colados na rua em março, já tinha circulado amplamente no espaço público. “Quando for grande quero ser polícia, para bater nos pais de outros meninos em frente aos outros meninos”, lê-se nos primeiros versos. “Nunca dês bastonadas a um preto, senão vão achar que és racista. Se deres bastonadas a um branco estás apenas a ser polícia”, prossegue o texto.
Além de integrar o livro Erosão, publicado em novembro de 2018, o texto de 12 versos foi partilhado na Internet e lido na RTP África. Em fevereiro de 2019 apareceu transcrito num artigo de opinião de Samuel Úria para o portal Sapo.pt (o músico tinha estado na apresentação do livro em 2018, ao lado da autora e do ativista Mamadou Ba).
Gisela Casimiro conta que já depois do episódio na zona da Estrela, ostentou um cartaz com o mesmo poema durante a manifestação Black Lives Matter, em Lisboa, em inícios de junho. “Escrever um poema num livro não é proibido e divulgá-lo na rua também não. Se nenhum elemento da polícia foi ter comigo durante a manifestação Black Lives Matter, porque é que, umas semanas antes, o meu poema não podia ter estado em cartazes colados na rua?”, questiona.
O texto “tem uma intenção bem diferente daquela que a PSP alega”, sublinha a autora. “Não incita à violência contra a polícia, não identifica sequer uma força policial ou algum agente em concreto. É uma reflexão baseada numa notícia de jornal que li, com várias figuras de estilo sobre violência policial associada ao racismo. Descobri com esta situação toda que a polícia tem sentimentos e que feri os sentimentos da polícia. De forma irónica, é a conclusão a que chego. Acontece que a polícia não pode ter emoções, tem é de ser justa, objetiva e imparcial”, defende.
O episódio acabou por ganhar dimensão depois de ter sido noticiado que a pretendia apresentar uma queixa-crime ao Ministério Público por causa de um cartoon publicado a 14 de agosto no suplemento satírico Inimigo Público, do jornal Público. A direção nacional da PSP, liderada por Manuel Magina da Silva, considerou que o cartoon, ao representar uma manifestação racista onde aparecia uma personagem com uniforme da polícia, configura o crime de “ofensa a organismo”, previsto no artigo 187.º do Código Penal — tal como considerou no caso do detido na zona da Estrela. Luís Pedro Nunes, diretor do Inimigo Público, e Manuel Carvalho, diretor do Público, disseram ao Observador não saber se a referida participação judicial chegou a avançar.
Como tudo aconteceu: detido em alegado flagrante delito
Ana Cristina Cachola estava em casa na madrugada de 6 para 7 de março quando acordou de repente e foi espreitar o telemóvel. Eram três da manhã. Tinha várias mensagens e chamadas não atendidas da mesma pessoa: um homem que tinha conhecido dias antes e cuja profissão é afixar cartazes nas ruas de Lisboa. Ligou-lhe de volta e recebeu uma má notícia.
O homem estava detido desde a 1h45 na esquadra da Estrela e, por causa disso, tinha deixado a meio o trabalho que Ana Cristina Cachola lhe encomendara: a colagem de cartazes onde constava um poema intitulado “Quando Eu For Grande”.
Detido em suposto flagrante delito por, pelo menos, dois agentes da PSP, era acusado de ofender a credibilidade da polícia, precisamente por causa do poema. E, no entanto, não era ele o autor do texto, mas sim a escritora e artista Gisela Casimiro — que, nesse dia 7 de março, iria inaugurar a sua primeira exposição individual num espaço pertencente à galeria de arte contemporânea O Armário, também situada na zona da Estrela. Ana Cristina Cachola era a curadora da exposição, organizada no âmbito do projeto feminista “quéréla”, e tinha sido ela a contratar o homem dos cartazes, tendo-lhe pedido que os afixasse junto à galeria ou em zonas da cidade onde funcionam espaços culturais.
A colagem dos cartazes — 400, no total, nos formatos A4 e A3 — tinha acontecido ao longo de três dias, até ao momento da detenção, e fazia parte integrante da exposição, intitulada “O Que Perdi em Estômago, Ganhei em Coração”, onde surgiam alguns textos antigos e outros inéditos da própria Gisela Casimiro.
“Para esta exposição, eu e a Gisela decidimos transformar os poemas em cartazes e em peças de som, ou seja, gravações com a voz da autora”, explica Ana Cristina Cachola. “Ao mesmo tempo, decidimos que o poema ‘Quando Eu For Grande’ ocuparia uma parede da exposição e seria também colocado na rua sob a forma de cartazes. Estes cartazes não serviam para anunciar a exposição, constituíam uma ação dentro do projeto expositivo, eram parte integrante da exposição porque partimos do conceito de arte urbana.”
A mostra abriu a 7 de março e foi suspensa dias depois devido à declaração de Estado de Emergência, por causa da pandemia, mas reabriu em junho e prolongou-se até 15 de julho.
Alarmada com o que se estava a passar, Ana Cristina Cachola saiu de casa naquela madrugada e dirigiu-se rapidamente à PSP. “Levei vários documentos alusivos à exposição e ainda o livro da Gisela Casimiro, para demonstrar que o texto dos cartazes era um poema e não uma qualquer mensagem ilegal”, recorda agora, classificando o ambiente que encontrou na esquadra da Estrela como “normal”, apesar de o homem dos cartazes “estar desconfortável” com a situação.
“Expliquei que aquele afixar de cartazes fazia parte de um projeto expositivo. Falei de liberdade artística e de liberdade de expressão, mas os agentes não se demoveram. Disseram-me que os cartazes configuravam um crime previsto no artigo 187.º do Código Penal e não conseguiram conjugar este artigo com os meus argumentos”, relata a curadora, então ouvida pela PSP a título informal.
Indicada como testemunha na ocasião, ficou a saber que o caso seria levado a um juiz no dia útil seguinte — segunda-feira, 9 de março — para um julgamento sumário que teria o homem dos cartazes, entretanto posto em liberdade, como único arguido. O processo sumário é um procedimento legal comum em casos de pequena criminalidade e de flagrante delito.
De facto, foram ambos a tribunal acompanhados por advogados que conseguiram contactar apressadamente naquelas horas. Mas nem foi necessário. De acordo com o relato feito ao Observador, o julgamento sumário não chegou a realizar-se. Terão sido informados no Juízo de Pequena Criminalidade do Tribunal da Comarca de Lisboa, no Parque das Nações, que o caso seria remetido para o Ministério Público para mais averiguações. Entretanto o país entrou em Estado de Emergência devido à pandemia do novo coronavírus e o inquérito atrasou-se.
“Temos de trabalhar todos para que estas falhas desapareçam”
À data de hoje, o homem continua como arguido, com termo de identidade e residência. Ana Cristina Cachola, que além de curadora independente de arte contemporânea é professora e investigadora na Universidade Católica, foi entretanto notificada pelo Ministério Público para prestar declarações e a 23 de julho passou a arguida, acusada do mesmo crime e com a mesma medida de coação. Indicou como testemunha a autora do poema, Gisela Casimiro, por entender que também ela deve ter direito a ser ouvida num processo que implica um texto da sua autoria.
“Penso que há falta de formação e uma desinformação muito grande na PSP”, conclui Ana Cristina Cachola. “Falta-lhes sensibilidade para os vários artigos na lei que salvaguardam as liberdades, nomeadamente a liberdade de expressão ou a liberdade artística. Aliás, também nos temos deparado com falta de formação na PSP em situações de crimes de ódio racial ou de discriminação de género”, acrescenta, lembrando que é isso que dizem relatórios da Comissão Europeia e das Nações Unidas.
“Temos de trabalhar todos para que estas falhas desapareçam o mais depressa possível”, defende.
Ao recordar agora o que se passou, Gisela Casimiro diz que ficou “estarrecida”. “Por um lado, alguém estava a ser prejudicado por uma coisa que tinha sido eu a escrever. Por outro lado, senti-me censurada”, diz, apontando também razões discriminatórias à ação da PSP, por ser uma mulher negra que escreve poesia: “Quando finalmente cria um lugar e está prestes a inaugurar a primeira exposição a solo, fica em parte silenciada, por não poder ter o seu trabalho na rua”, analisa.
A autora do poema diz que manteve o silêncio durante algum tempo por não querer prejudicar o colador de cartazes, que quer manter o anonimato. A curadora diz que o problema com os cartazes foi abertamente referido na inauguração e no dia de encerramento da exposição, perante o público presente. “Mas até ser arguida entendi dever respeitar o silêncio do outro arguido e não fui mais longe na divulgação do caso”, justifica.