No século passado, os restos mortais de D. Pedro IV foram enviados para o Brasil, a propósito da comemoração dos 150 anos da independência daquele país, em plena ditadura. Cinquenta anos depois, a história repete-se e, desta vez, é o coração do “Rei Soldado” que viaja de Portugal para o Brasil — envolto em polémica, pelas recordações da ditadura, e em cuidados redobrados.
O coração de D. Pedro saiu de Portugal este domingo e chega esta segunda-feira ao Brasil. O plano das festividades está bem definido e, garante o responsável pelas comemorações, Alan Coelho de Séllos, “o coração será recebido no Brasil com honras de Estado e será tratado como se Dom Pedro I fosse vivo entre nós”.
Esta última parte do discurso do chefe das cerimónias foi, de facto, levada à letra. A viagem entre Portugal e o Brasil ficou a cargo da Força Aérea Brasileira e o coração do rei é transportado no espaço reservado para os passageiros, em ambiente pressurizado e dentro de uma caixa destinada a proteger obras de arte. A acompanhar a viagem estão três representantes portugueses, incluindo o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, e um representante do governo brasileiro.
Esta viagem foi negociada e avaliada pelo município do Porto nos últimos quatro meses e, de acordo com o comunicado da câmara municipal, “a segurança da relíquia estará garantida”. Primeiro, foi feita uma vitrine, desenhada pelo arquiteto Luís Tavares Pereira, que posiciona o coração “à altura de um coração no corpo humano, tomando como referência a altura média dos indivíduos em Portugal e do Brasil (homens 1,74m e 1,63m), o que coloca o coração sensivelmente a 1,30m”. Para o Brasil foi ainda enviado um kit com formol, a substância química que permite a conservação do coração, e com material para partir o vidro da vitrine, em caso de emergência.
O avião com origem em Lisboa vai então aterrar na base aérea de Brasília, com direito a honras militares, e o coração que esteve este fim de semana, pela primeira vez, em exposição no Porto segue para a Praça dos Três Poderes. As cerimónias oficiais só começam, no entanto, esta terça-feira. Até lá, o órgão que D. Pedro fez questão, escrevendo no seu testamento, que ficasse em Portugal vai ficar guardado no Palácio do Itamaraty, longe de qualquer olhar.
É então na tarde de terça-feira que o coração de D. Pedro se cruza com Bolsonaro, na rampa do Palácio do Planalto, e será “objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”, adiantou Alan Coelho de Séllos. Estas medidas habituais começam com as honras militares no Palácio do Planalto e passam pelo hino nacional e pelo hino da independência do Brasil, “que, aliás, é uma composição de D. Pedro I que, além de imperador, era um bom músico nas horas vagas”.
Até ao Palácio do Planalto, o coração será escoltado pelos Dragões da Independência, o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas do Exército brasileiro. Os deputados foram também convidados a participar nas cerimónias, visitando a sala onde está o coração de D. Pedro, dentro de uma urna desenhada de propósito para esta ocasião. Aqui, o objetivo, como explicou o responsável pelas cerimónias, “é reproduzir as circunstâncias apropriadas, cientificamente adequadas, para a conservação da relíquia, com a menor exposição possível a movimentos”.
Inicialmente, a agenda feita pelo ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil apontava para uma passagem pelo Congresso Nacional, mas esta não vai realizar-se.
Brasil pediu oficialmente a Portugal trasladação do coração de D. Pedro
Depois deste dia de cerimónias oficiais, o coração do rei que deu a independência ao Brasil fica em exposição na sala Santiago Dantas, no Palácio de Itamaraty, até 8 de setembro. Ali, a temperatura é regulada de acordo com as exigências de conservação do coração do “Rei Soldado”. Aliás, antes de aceitar a mudança temporária para o Brasil, a Câmara Municipal do Porto fez vários pedidos e, além das condições de conservação, foi pedido “que o coração não andasse de cidade em cidade”, revelou o gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, ao Folha.
Mais tarde, já no dia 6 de setembro, Marcelo Rebelo de Sousa vai deslocar-se até ao Brasil e marcar presença na cerimónia que vai incluir os chefes de Estados dos países de língua portuguesa.
A política e os restos de D. Pedro que ficaram no Brasil durante a ditadura militar
A transladação do coração de D. Pedro tem sido alvo de críticas vindas, sobretudo, da esfera académica. Neste contexto, é questionada a pertinência e utilidade da exposição e o momento político em que acontece a chegada do coração que esteve até agora fechado a cinco chaves na Igreja da Lapa, no Porto.
Uma das vozes mais críticas é precisamente a historiadora e arqueóloga responsável pela análise dos restos mortais de D. Pedro, Valdirene Ambiel, que faz, aliás, a comparação entre o que está a acontecer agora com o momento em que os restos mortais de D. Pedro foram enviados para o Brasil, por Portugal, durante a ditadura militar, em 1972.
Também citada pelo Folha, Valdirene Ambiel faz questão de afirmar que só vê um “contexto político” nesta história. “Não há contexto histórico, ou propósito educacional para trazer esse coração por pouquíssimo tempo”, explicou, acrescentando que, “a partir do momento em que há o uso de órgãos humanos para uma simples exposição, sem o contexto de ensino, a exibição torna-se algo simplesmente bizarro”.
À semelhança daquilo que está a acontecer agora com o coração do rei, Portugal enviou os restos mortais a propósito das comemorações dos 150 anos da independência do Brasil. Há, no entanto, duas diferenças a apontar: o coração tem bilhete de regresso para o Porto e não vai circular entre várias cidades brasileiras, ao contrário das ossadas, que tiveram, inclusive, direito a desfile nas ruas durante cinco meses.