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Há coisas que não mudam: o pânico que se gera por uma potencial ausência de combustível, os mergulhos de Marcelo Rebelo de Sousa no primeiro dia de cada ano ou o riso de Lena d’Água. Mesmo depois de deixar de ter sobre si os holofotes mediáticos, mesmo depois de um difícil combate ao vício da heroína, mesmo depois de anos e anos sem encontrar bons compositores que quisessem escrever para si, mesmo com as dificuldades económicas que revelou publicamente em 2017, a gargalhada continua pronta. Conversar com Lena d’Água, por dez minutos que seja, é ouvir o riso solto, a frase inesperada, as fugas permanentes a qualquer guião que pudesse estar delineado.
Lena d’Água tem hoje mais razões para rir. A cantora que o Portugal sub-30 conhece sobretudo com alguma distância, como um nome de um outro tempo algo caído em esquecimento, mas por quem o Portugal dos anos 70 e sobretudo 80 suspirou longamente, prepara-se para editar o seu primeiro álbum de originais em mais de duas décadas e meia: Desalmadamente. Passaram-se 30 anos desde Tu Aqui, o último álbum para adultos de Lena d’Água, e 27 anos desde Ou Isto ou Aquilo, o disco para crianças que a sua editora à época desconsiderou. Foi uma batalha longa, difícil, para encontrar novas canções à altura daquela que é uma das vozes mais marcantes da música pop-rock nacional.
Sentada numa sala de reuniões da editora que publicará este seu novo álbum de originais, perguntámos a Lena d’Água de que é que se orgulha mais deste longo percurso musical não isento de percalços. “Não ter medo”, respondeu-nos, acrescentando: “Mesmo com períodos muito difíceis, até de mágoa, tristeza, revolta, falta de dinheiro e de trabalho, nunca tive medo. Acho que não ter medo é uma força, é preciso não perder o foco nas coisas que importam, que queremos servir. Todos temos mortos, doenças, coisas chatas a acontecer nas nossas vidas, mas é preciso dar a volta, puxar para a cima, agarrar a vida. Este mundo não está para outra coisa”.
O regresso ao último encontro com Variações e os motivos do “desaparecimento”
A primeira vez que encontrámos Lena d’Água para a ouvir falar deste novo disco foi, contudo, há já quatro meses, numa tarde chuvosa de inverno. Em Paço de Arcos, Oeiras, nos estúdios da Valentim de Carvalho — onde Desalmadamente foi gravado e misturado –, a cantora de “Sempre Que o Amor Me Quiser” e “Olha o Robô” conduziu-nos numa viagem por passado e futuro, que foi das memórias que tinha daquelas estúdios nos anos 1980 à conceção do disco que só agora será revelado ao público.
“Adorei quando soube que era para aqui que vínhamos”, começou por dizer Lena d’Água, então rodeada de perto de uma dezena de músicos e técnicos com quem gravou este novo álbum. Eram eles o compositor Pedro da Silva Martins, autor de todos os temas, a banda They’re Heading West, que fez os arranjos, e Luís Nunes, também conhecido como Benjamim. “O Nélson Carvalho [produtor musical e engenheiro de som] está cá e é excelente. É realmente excecional, adorei gravar com ele. Neste edifício já tinha gravado um disco em 1981, outro em 1982, outro em 1983 e outro em 1984 — mas lá em baixo, no estúdio grande”, acrescentou, referindo ainda que os estúdios do piso superior — aqueles em que este Desalmadamente passou de esboço a álbum — funcionavam antigamente como “sala de misturas”.
Entre os álbuns que Lena d’Água já tinha gravado nos estúdios que receberam em tempos Amália Rodrigues e Carlos Paredes, por exemplo, estão Perto de Ti e Lusitânia, este último “o álbum do ‘Sempre Que o Amor Me Quiser’”. São dois dos álbuns mais lembrados da sua carreira, por isso (para quem for supersticioso) um bom sinal daquilo que pode acontecer a este Desalmadamente, mas são também dois discos em que “Lena”, como aqueles que a rodeiam a tratam, trabalhou com um produtor inglês que chocou com os métodos dos artistas e bandas do Portugal dos anos 1980. Chamava-se Robin Geoffrey Cable. “Era uma altura em que o pessoal trazia para estúdio as namoradas e namorados, bebia-se, fumava-se charros, fazia-se tudo. A dada altura chega um inglês que diz: não, aqui dentro só está quem está a gravar. Ali na régie só ficava ele, o técnico — que na altura era o Pedro Vasconcelos –, o compositor e a cantora se esta não estivesse a gravar. Mais ninguém entrava”, recordou.
À hora marcada para as gravações, com “pontualidade britânica”, Robin Geoffrey Cable “fechava as portas” dos estúdios da Valentim de Carvalho. A “malta”, explicou Lena d’Água, “não estava habituada” àquilo: quem queria “falar, comer ou fumar tinha de ir lá para fora”, os músicos e cantores ficavam no interior. Ela não se importou nada: “Foi tão bom, adorei. Não se perdia tempo…”
No peso inferior àquele em que conversou com o Observador que Lena d’Água viu “pela última vez o António”. “O António” é António Variações. “Foi ali em baixo ao fundo das escadas, ao pé da porta. Vinha a sair do estúdio e ele vinha cá de cima, mas do escritório. Foi a última vez que nos encontrámos, achei-o muito magro, disse-lhe isso: ‘estás tão magrinho’. Ele lá me disse: ‘não sei, tenho estado um bocado adoentado, a fazer exames e não sei quê, não sei bem o que é’. Nunca mais estive com ele”, detalhou.
Nesse período de início da década de 80 em que gravou nos estúdios da Valentim de Carvalho, Lena d’Água, filha do futebolista José Águas e irmã do futebolista Rui Águas, já tinha sido a primeira mulher a integrar como vocalista uma banda rock (os Beatnicks), já tinha cantado no coro dos Gemini (com quem foi a Paris em 1978 cantar “Dai Li Dou” no Festival da Eurovisão), já tinha gravado com os Petrus Castrus, já tinha feito teatro e já tinha fundado a banda Salada de Frutas com José da Ponte e com o “seu” compositor, aquele com quem produziu os maiores êxitos da carreira: Luís Pedro Fonseca, que morreu há cinco anos vítima de um ataque cardíaco.
[“Grande Festa”, primeiro single do novo álbum:]
Já fora dos estúdios Valentim de Carvalho (teve contrato assinado com a editora), lançou mais três álbuns: Terra Prometida (1986), novamente produzido por Robin Geoffrey Cable, Aguaceiro (1987), produzido por António Emiliano e Tu Aqui (1989), produzido por Guilherme Inês e Zé da Ponte. Este último álbum, com menos impacto do que o anterior, foi o início da perda de estatuto de “pop star” — isto apesar do termo “consensual” não se aplicar sequer a períodos anteriores. “Eu e o Luís Pedro fomos sempre desconsiderados, eu como cantora e ele como compositor. As pessoas sabem hoje em dia o que vale o Perto de Ti, mas na altura lembro-me que um crítico deu-lhe duas estrelas em cinco possíveis, num jornal — já não me lembro qual. O Luís Pedro sofria bastante com isso, eu também, mas enfim. Estávamos talvez fora de tempo — escrever um tema contra o jardim zoológico em 1983, outro contra a energia nuclear em 1982, fazer em 1980 [com a banda Salada de Frutas] um tema sobre o atentado terrorista numa estação de comboios em Bolonha, talvez fosse fora de época. As pessoas ficavam: ai as pernas [da Lena d’Água]. E o ‘Robot’ e o ‘Dou-te um Doce’…”
Se Tu Aqui, de 1989, colheu pouco entusiasmo, o álbum para crianças que se seguiu (Ou Isto Ou Aquilo, de 1992) foi tido como um disco menor sem sequer ser ouvido. “Não é considerado como coisa séria”, recordou Lena d’Água, antes de soltar o seu riso característico. “Na Sony, editora com que estava à altura, disseram-me que se quisesse podia fazer esse disco mas não estavam interessados, que poderia voltar quando quisesse fazer um disco a sério. É lindíssimo, enfim. Saí e não voltei”, acrescentou.
Lena d’Água: “Nunca me armei em sex symbol, só que era muito gira”
Lena d’Água nunca teve outro trabalho, como costuma dizer. Continuou a cantar, a atuar e a gravar discos ao vivo, mas com menos protagonismo. Os motivos para o menor protagonismo foram vários, da adição aos charros de heroína de que já falou em entrevista ao Observador — e que agora recordou, dizendo que essa adição “coincidiu com estes anos” — aos projetos musicais em que depois se envolveu. Primeiro, aceitou o repto do maestro Pedro Osório para iniciar o projeto Canções do Século, que a levou cantar durante sete anos — com Helena Vieira e Rita Guerra — repertório do início ao fim do século XX. Quando voltou “a ter vontade de agarrar as coisas” e a vida, apeteceu-lhe “cantar a Billie Holliday” e montou um repertório à volta dos temas da cantora de jazz, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. “Depois também tive uma fase a cantar versões da Elis Regina.”
Enveredando pelo jazz, primeiro, e pelo rock, depois, Lena d’Água ainda gravou o álbum Sempre, em 2007, ao vivo no Hot Clube de Portugal — “não teve divulgação, tinha aquela sonoridade jazzy, com as harmonias todas escangalhadas, não passou na rádio” — e o disco Carrossel, com a banda Rock’n’Roll Station, em 2014. Este último era um disco “muito rock and roll, com guitarra, baixo e bateria, com temas do meu historial dos anos 1980. Ficou excelente mas como não tinha originais e o rock já estava um bocado… a mim soube-me bem, tinha andado muito tempo com os pianos, contrabaixos e trompetes. Não gosto nada de ginásios e aquilo serviu um bocado como ginásio para mim. Tínhamos expectativas mas infelizmente não não fizemos quase concertos nenhuns”.
Paralelamente à sua necessidade de reclusão — deixou por exemplo Lisboa e foi morar para o Oeste –, Lena d’Água deparou-se com uma grande dificuldade: depois do trabalho com Luís Pedro nos anos 1980, teve dificuldades em arranjar bons compositores que escrevessem para si. Tentou, pediu canções “a vários compositores da minha [sua] geração”, nunca conseguiu. Chegavam-lhe só, recordou ao Observador, “os alucinados das canções para a Lena d’Água, com coisas completamente fora da caixa”, que entendeu não estarem à altura do que queria cantar.
Perguntámos-lhe se chegou a ponderar tentar começar a compor e a resposta é negativa. “Nunca fiz nenhuma canção. Fiz algumas letras, poucas. Não é que não me tenha sentado a escrever umas palavras, umas coisas, mas sentia-me incapaz. Cada um é para o que nasce. Não quer dizer que um dia não venha a fazer uma canção, só para dizer ‘poças, fiz uma’, mas não sendo uma necessidade interior…”, explicou.
Quase desesperou. No outono de 2017, publicou um texto no Facebook revelando estar “sem dinheiro, sem trabalho [e] sem quase ninguém”. Criaram-se ondas solidárias, Lena d’Água começou a tocar regularmente com o jovem músico português Primeira Dama (Manuel Lourenço), mas por certo muitos acreditaram que já não a voltariam a ver gravar álbuns, assinar contratos com editoras multinacionais, voltar aos singles de originais. Enganaram-se.
“Houve momentos em que pensei: e se morro sem conseguir? Mas conseguimos!”
Para chegar à origem deste primeiro álbum de originais de Lena d’Água em mais de duas décadas e meia, é preciso recuar a 2009 e 2010, altura em que uma série de estudantes da Universidade Lusófona fez um documentário sobre a cantora. Chamaram-lhe “Bela Adormecida”. “Fiz amizades fora de tempo por causa desse documentário”, recordou a cantora ao Observador. Uma das amizades fomentadas foi com Rita Redshoes, que lhe escreveu “por causa do documentário”. Outra aproximação que daí resultou foi com Pedro da Silva Martins — o músico dos Deolinda que nos últimos anos também compôs para Cristina Branco, António Zambujo, Ana Moura, Mariza, Sérgio Godinho e Elisa Rodrigues, entre outros.
Lena d’Água e Pedro da Silva Martins não se conheciam pessoalmente, mas já eram “amigos de Facebook” . Um dia, a cantora deu-lhe os parabéns “por causa do ‘Desfado’, aquele tema incrível que ele fez para a Ana Moura”. Outro dia, este há perto de cinco anos, foi Pedro da Silva Martins que lhe enviou uma mensagem. Disse-lhe que “tinha visto o documentário e tinha ficado muito tocado” e, mais importante que isso, disse-lhe algo como: “Um dia, ainda vou escrever para ti”.
O encontrou tardou, mas acabou por acontecer. “Ele nunca mais me dizia nada, até já lhe tinha enviado uma mensagem a perguntar se ainda se lembrava de mim. Já tinha passado bastante tempo. Estava com ganas, a ver a vida cada vez mais curta para a frente e cada vez mais comprida para trás e ainda cheia de voz, de pica e de tesão para fazer coisas. Andava sem ter canções como deve ser para cantar, que é o meu drama há já muitos anos…”, recordou.
Depois desta última mensagem, um conjuntou de circunstâncias juntou um grupo alargado para este disco. A banda They’re Heading West convidou Lena d’Água para as suas sessões mensais de concertos na Casa Independente (que tinham sempre um convidado célebre com o qual o grupo dividia canções). “Foi maravilhoso, havia pessoas a chorar e tudo”, lembrou a convidada ao Observador. O compositor, instrumentista e cantor Benjamim convidou Lena d’Água para cantar com ele no CCB, depois de ela ter ouvido o disco que ele lançou em 2015, Auto Rádio, e ter encontrado o seu nome na lista de influências que Benjamim enumera na sua conta oficial de Facebook. Pedro da Silva Martins, por sua vez, foi convidado pela RTP para compor para o Festival da Canção e lembrou-se da voz de “Lena”. A cantora ouviu a proposta e aceitou o repto, disse-lhe “bora lá”. Mas lembrou-se que poderia juntar mais gente à equipa: “Disse-lhe: olha, vamos convidar os They’re Heading West e o Benjamim. Eles convidaram-me para ir à Casa Independente e ao CCB, podemos ir ao Festival da Canção todos juntos”.
Foram mesmo ao festival da RTP, cantar o tema “Nunca Me Fui Embora” — finalista, não vencedor. “Curiosamente, os They’re Heading West já tinham por essa altura a ideia de gravar um EP [mini-álbum] com a Lena d’Água”, contou Benjamim ao Observador, nos estúdios da Valentim de Carvalho, acrescentando: “Eu e o António [Vasconcelos Dias, membro da sua banda], quando tocámos com a Lena d’Água, também ficámos com a ideia de gravar alguma coisa com ela”. Não eram os únicos, como prova a interrupção de que Benjamim foi alvo nessa fase final de gravações e misturas, a que o Observador assistiu. A interrupção veio de Pedro da Silva Martins: “E eu também já tinha a ideia de gravar um disco com a Lena!”
Porque não estarem todos envolvidos num novo disco de canções originais? Numa reunião, Benjamim e Serginho (dos They’re Heading West) discutiram o assunto: “Estávamos ali a ver quem é que podia escrever as canções e de repente o Pedro convidou a Lena para ir ao Festival da Canção. Portanto OK, tínhamos o assunto resolvido”. Pedro da Silva Martins viu ali uma boa “identidade de grupo” que poderia resultar num disco — e cedeu melodias e letras, compondo canções “com a guitarra e com a voz”, como apontou Lena d’Água. Foi “a alma” dos temas. Os restantes ouviram as canções e fizeram-nas crescer com arranjos de banda. Até Gui, saxofonista dos Xutos & Pontapés, juntou-se à equipa para uma participação especial no tema “04 minutos”.
Houve ensaios, rascunhos e versões incontáveis daquilo que que se ouve em Desalmadamente. O grupo trabalhou e conviveu na Junqueira, Almirante Reis, Santa Apolónia, Alvito, até em casa de Lena d’Água — “Foram lá todos, amorosos, lindos, antes de tudo isto acontecer, antes mesmo do festival”. Não faltou entusiasmo, garantiu-nos a cantora: “O Pedro não conseguia estar quieto, a dada altura tínhamos umas 20 canções”. Todos juntos, atiraram-se desalmadamente ao disco. Não foi fácil, claro, conciliar agendas entre tanta gente. “Eles têm bastantes projetos e coisas a acontecer. Eu é que penei mais. Houve momentos em que pensei: e agora, se eu morro sem conseguir? Mas conseguimos. Nem sei como estou feliz!”, exclamou a voz das canções.
As editoras interessadas: “Tanto uns como os outros ficaram com as orelhas em pé”
Para a composição das canções, Lena d’Água mostrou textos seus a Pedro da Silva Martins. “Tenho um livro de poemas de juventude editado há muitos anos. Contei-lhe histórias de vida, também, e o Pedro apanha muito bem as coisas. Apanhou algumas expressões minhas — o “opá”, por exemplo, estou sempre nisto — e muitas frases e ideias: os tarots, os gatinhos, o hipocampo, há ali muita coisa minha”.
Ter encontrado um compositor com talento e capacidade de descortinar o intérprete foi uma motivação forte para voltar a gravar, apontou a cantora de “Sempre Que o Amor Me Quiser”: “O Pedro é muito inteligente, é romântico, tem muito humor e é malandreco. Temos semelhanças. Mostou-nos as canções com a voz dele e não canta lá muito bem, é um amor, é um querido, assim com uma vozinha. Normalmente vai melhorando e trabalhando as letras à medida que há ensaios, porque aí experimenta-se a tonalidade das canções, os balanços e andamentos, os arranjos”. Num certo sentido, Lena d’Água sente que este disco a fez pensar que foi como se todo este tempo “estivesse à espera que o Pedro crescesse”. Ele, mais novo, é da idade da filha de Lena d’Água e nasceu no mês — maio de 1976 — em que a cantora começou a cantar ao vivo com os Beatnicks. “Acho isso lindo”, acrescentou.
Do outro lado, o do compositor, a vontade de Pedro da Silva Martins foi “compor canções para algo que não queria que soasse ao disco de regresso da Lena passada uma série de anos sem gravar álbuns de originais”. O que o músico e compositor (que disse que ainda se lembra que “ver a Lena d’Água na rua era assim uma coisa: pá, a Lena d’Água…”) pretendia era que Desalmadamente soasse “a um disco que acontecesse na sequência de outros que a Lena poderia ter feito, a um disco da Lena de agora. O que é ela faria hoje se tivesse feito — nas últimas décadas -~ três discos a cada dez anos? Foi um bocado essa a intenção das composições, o ponto de partida”.
A responsabilidade era grande, até pelo “historial de parceria que a Lena d’Água teve com o Luís Pedro Fonseca”. Exigia-se dedicação e talento, mas ajudou que “este pessoal seja incrível” e tenha conseguido potenciar as melodias e letras de Pedro da Silva Martins. “A sonoridade casou bem com a minha voz e com o meu gosto”, concordou por sua vez Lena d’Água, explicando que para muita gente o seu nome “é uma coisa assim já distante, na medida em que tinha 20 e tal anos, era gira e não sei quê, e agora estamos no presente, no real, na realidade”. Porém, hoje, continua a ser “a mesma pessoa”, simplesmente tem “mais 30 e tal ou 40 anos de vida em cima”.
É precisamente a Lena d’Água de hoje que canta “Eu bem sei que é tarde / Perdemos tanto tempo” — no tema “Opá”. É com o que viveu nas últimas décadas que a cantora se apropria hoje dos versos escritos por Pedro da Silva Martins em “Formatada”, onde diz ter sido “formatada / para calar / para comer / nada sentir / não reagir / e não pensar”, onde garante ter sido “preparada / para sofrer / e trabalhar / a competir / e a consumir / sempre a render”. Mais à frente, na mesma canção, canta “enfim / algo em mim não resultou assim / como alguém idealizou”. Já em “Queda Para Voar”, há uma espécie de carreira revista:
“O dom que eu já sabia
que seria a fama, também a minha desgraça
que traria o drama, consigo a devassa
e com tudo isto vinha a poesia”
Como se escolhem singles perante a beleza e delicadeza das dez canções e dos arranjos, que fazem de tudo isto uma espécie de uma banda sonora de um verão que nunca existiu, meio caminho entre passado e presente, um certo respirar melancólico que se ouve no som da banda? “Andámos por várias”, contou Lena D’Água, acrescentando que “Desalmadamente” (“e só o espelho agora é que envelhece, ó ai / e assim até parece que o mundo não dói“) era “representativa da minha história, da minha vida, do meu presente”, que ouve na “Opá” qualquer coisa de “Sempre Que o Amor Me Quiser”, que Benjamim não foi o único a sugerir “Grande Festa” para single mas foi o mais decidido: “Grande Festa, tem de ser a Grande Festa, é a tua cara, esta música é a tua cara, é a tua voz, é a Lena d’Água”, disse-lhe o músico.
Houve lágrimas a rodos nos últimos meses: “Chorei a ouvir a ‘Opá’, chorei a ouvir a ‘Desalmadamente’, fartei-me de chorar a ouvir as canções mesmo em maquetes, quando ainda não estavam direitinhas… por ser tudo tão belo, tão lindo!”, exclamou ainda Lena d’Água, acrescentando: “Senti: meu deus, é mesmo isto que eu sinto. Não chorei de tristeza, mas de comoção”. Quando foram apresentar um conjunto de canções às editoras, os músicos que acompanham Lena d’Água sugeriram-lhe não ir, para que os representantes das editoras ouvissem as canções mais à vontade. Ela aceitou, “deixem lá isso, fico aqui com os meus cães, depois digam-me coisas”. As “duas editoras grandes” ficaram interessadas, revelou a cantora ao Observador: “Pá, ó Lena, tanto uns como os outros ficaram com as orelhas em pé [risos]”, ouviu a cantora.
“Nós desaparecemos, mas os homens mantêm-se. E não estão todos magros e lindos”
Quantas mulheres compositoras e cantores com mais de 40 anos fazem digressões por todo o país e são convidadas para gravar em editoras e tocar em auditórios e festivais? Não são muitas — e Lena d’Água está certa de que não é por acaso e de que também é vítima disso. “As mulheres em geral a partir de uma certa idade deixam de ser tão chamadas para festivais. Éramos pouquíssimas, sempre fomos, só no fado havia mais. Depois a partir de uma certa idade os convites começaram a diminuir”, defendeu.
Em Portugal não há, para a cantora, um acesso igual de oportunidades na música a mulheres mais velhas e homens mais velhos: “Devíamos ter o mesmo acesso aos discos e concertos, porque os homens da minha idade mantêm-se todos no ativo. Nós, mulheres, vamos desaparecendo e eles ficam, mas não estão todos lindinhos [risos], todos magros e lindos”.
Na nova geração, Lena d’Água vê “boas compositoras a escrever” — cita regularmente Luísa Sobral, Márcia, Rita Redshoes e Joana Espadinha — mas sente que só agora “uma série de miúdas escrevem umas para as outras, isso é de um valor… durante tantos anos não havia nada disso, a pessoa escrevia para si própria”.
Não se sabe se uma destas compositoras a que Lena d’Água alude ainda irá escrever para a voz de ouro do Portugal dos anos 1980, que acaba de provar que se lhe derem boas canções, vai cantá-las como quase ninguém. Não é tanto uma questão de alcance vocal, de afinação (também é, também é) mas de uma voz inconfundível que está ainda com uma segurança e carisma que não se encontram regularmente. O que acontecerá no futuro é uma incógnita, mas sempre o foi para Lena d’Água. O presente é a reposição da justiça, a possibilidade de se tratar bem quem nos tratou bem. Lena d’Água está feliz e está com vontade de apresentar este álbum ao vivo, primeiro já no Teatro Villaret, no dia 6 de junho. “Agora não sofro. Com o rock aquilo era rasgado [gargalhada forte], também é bom, mas agora não é assim. Agora não me dói nada, estas canções ‘não me aleijam’ — como diz o Ricardo [Araújo Pereira]. Cantá-las é como beber água, é assim…. ah que bom!”