“Isto vai ser falado forever!” Maria Amália, 81 anos, não duvida de que está a viver um momento que ficará para a história. Está desde o meio-dia, com a amiga Maria Henriques, posicionada num dos muitos círculos brancos marcados no piso do Santuário de Fátima para assegurar as distâncias de segurança entre peregrinos nas celebrações de 12 e 13 de outubro. O inglês na voz surpreende, mas justifica-se: há 55 anos, emigrou para Toronto, depois de uma primeira vida como peixeira na Nazaré. “A vida de emigrante é uma vida dura“, lamenta. Volta todos anos a Portugal para peregrinar com a amiga que conhece há décadas — e que também foi emigrante no Canadá, mas já regressou definitivamente ao país de origem — até Fátima.
Desta vez, a pandemia da Covid-19 veio complicar a vida às peregrinas: não vieram em maio, porque a peregrinação mais importante do ano acabou por se realizar com o recinto completamente vazio. Maria Amália, que no Canadá trabalha como empregada de limpeza, conseguiu um voo de regresso a Portugal no início do verão e é no país de origem que se tem protegido da pandemia. Ainda assim, não perdeu a oportunidade de cumprir o ritual e veio a Fátima. O medo da doença fê-las apanhar um táxi na Nazaré: 50 quilómetros, meia-hora e um taxista que só será pago quando fizer a viagem de regresso. “Se gastarmos o dinheiro todo aqui, já não pagamos ao motorista”, brinca a mulher.
Fátima faz parte da vida das duas nazarenas desde que se lembram. Maria Amália conheceu aqui o primeiro namorado, quando tinha 14 anos. Maria Henriques, de 75 anos, peregrina ao Santuário de Fátima anualmente, sem falta. A pandemia afastou-a de muitas partes da vida — não vê a família há um ano e meio sem ser por videochamada e tem medo de ir ter com os filhos, por causa da doença —, mas não foi capaz de a demover de peregrinação ao santuário.
As duas Marias que vieram da Nazaré fazem parte do grupo de cerca de 4.500 peregrinos que nesta segunda-feira preencheram — mas não encheram, já que a lotação máxima era de 6 mil pessoas — o recinto do Santuário de Fátima, desta vez sujeito a rigorosas medidas de contenção da pandemia, depois de uma enchente inesperada no dia 13 de setembro ter obrigado a instituição a fechar o recinto de urgência.
Ali perto, acabados de chegar, encontramos Miguel, Joaquim e Fernando, três amigos que partiram do Porto na quinta-feira e chegaram a Fátima sem grande esperança de entrar no recinto. Joaquim caminha todos os anos até Fátima há uma década, mas para Miguel e Fernando a primeira vez foi mesmo em ano de pandemia. O caminho de 210 quilómetros, que devia ter sido feito em sete dias, foi feito em cinco — quarenta quilómetros por dia, 46 no troço entre Águeda e Coimbra.
“Depois de fazer uma caminhada destas, a procissão das velas tem outro significado”, contam os amigos, que na última parte do percurso tiveram uma surpresa: as mulheres dos três conseguiram localizá-los a 10 quilómetros de Pombal e ajudaram-nos a transportar as mochilas na caminhada final.
A par da pandemia, o “monstro pandémico” do populismo
Foi perante uma assembleia de 4.500 pessoas que o bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, assinalou o arranque das celebrações que fecha o ciclo de grandes peregrinações anuais a Fátima — com a pandemia como tema central. “Pensemos, como exemplo, naqueles e naquelas que estão a fazer esforços incríveis, em condições dramáticas, para socorrer as pessoas atingidas pela pandemia“, disse o bispo à multidão dispersa pelo recinto do Santuário de Fátima.
Ornelas lembrou particularmente as situações dos hospitais e dos lares, mas também dos “campos de refugiados sem condições”, mas destacou que a pandemia da Covid-19 também deixou crescer nas sociedades outros “monstros pandémicos”, referindo-se aos populismos.
“Para além desta pandemia e das outras que sempre ocorreram e podem ocorrer, este projeto de Humanidade-Mãe e Maria-Nova Humanidade é atingido por muitos monstros pandémicos que põem em perigo a vida e o futuro de todos”, disse o bispo. “Durante esta pandemia, a par da mais heroica abnegação e generosidade de tanta gente, têm-se manifestado muitas e poderosas atitudes manipuladoras, populistas, interesseiras e egoístas, sem remorso de usar o sofrimento e o desconcerto, a desorientação, para tirar dividendos políticos e económicos.”
Antes do arranque oficial das celebrações no recinto do santuário, a tarde em Fátima ficou marcada por uma conferência de imprensa com D. José Ornelas, o cardeal António Marto e o reitor do Santuário de Fátima, padre Carlos Cabecinhas, em que os responsáveis anunciaram que a parte do plano de reestruturação implementado pela instituição no que toca à redução do número de trabalhadores está concluída, com a saída de 47 pessoas — entre rescisões amigáveis, demissões por iniciativa do trabalhador e não-renovação de contratos a termo. Porém, mesmo com o impacto financeiro da pandemia nas contas do Santuário de Fátima como motivo para a reestruturação, as contas da instituição continuam sem ser divulgados, como acontece há 15 anos.