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Continuamos muito dependentes do combate ao fogo pela água, critica José Cardoso Pereira, investigador no Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa
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Continuamos muito dependentes do combate ao fogo pela água, critica José Cardoso Pereira, investigador no Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Continuamos muito dependentes do combate ao fogo pela água, critica José Cardoso Pereira, investigador no Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Incêndios de sexta geração são impossíveis de travar? Sim, "com os métodos tradicionais”, dizem os especialistas (que temem que piorem)

Incêndios violentos serão cada vez mais frequentes. Devido às alterações climáticas, mas também pelo abandono dos espaços rurais. No extremo, têm meteorologia própria. E o seu combate tem de mudar.

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O incêndio de Pedrógão Grande, em 2017, é talvez um dos exemplos mais relevantes usado em Portugal, e noutros países, do que pode significar um incêndio de sexta geração. Mas não terá sido a primeira situação no país: alguns incêndios de 2003 e 2005, por exemplo, foram já muito intensos e violentos — ainda que nenhum, como o de Pedrógão Grande, tenha causado tantas vítimas.

“Os incêndios de sexta geração são intensos, rápidos, dominados pelos combustíveis disponíveis, pelo stress hídrico gerado pelas mudanças climáticas e que, pela quantidade de energia libertada, modificam a meteorologia à sua volta, favorecendo o desenvolvimento de tempestades de fogo”, resume Vitor Reis, presidente da Escola Nacional de Bombeiros, numa resposta por escrito ao Observador.

A forma de os combater vai depender sempre das condições do terreno, das equipas disponíveis e da evolução do incêndio, daí que os especialistas ouvidos pelo Observador tenham dado menos importância à classificação do que ao alerta de que são e vão ser cada vez maiores e mais frequentes. Mas travar um incêndio de grandes dimensões requer muito mais ferramentas do que água, como destacam.

O que são estes incêndios de sexta geração, como podemos combatê-los, o que temos feito e o que falta fazer, são algumas das perguntas que o Observador procurou responder.

O que são os temíveis incêndios de sexta geração?

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Os grandes incêndios são causados pelas alterações climáticas?

Parece uma frase batida, e que se aplica a situações aparentemente não relacionadas, mas isso só demonstra o impacto generalizado que as alterações climáticas podem ter na vida das pessoas, no ambiente e, neste caso particular, no desenvolvimento de grandes incêndios.

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O impacto das alterações climáticas nos incêndios em Portugal (e no sul da Europa) é fácil de explicar: chove menos nos períodos em que costumava chover, como no inverno e na primavera; os verões são mais quentes e as ondas de calor mais frequentes. Assim, a chuva em períodos mais curtos não enche as barragens nem aumenta significativamente a humidade do solo, mas ajuda ao crescimento da vegetação, que depois seca completamente com as temperaturas altas do verão. O resultado é muita vegetação seca (muito combustível) pronta a arder.

“Chove menos ao longo do ano em todo o território, e em particular em algumas regiões, o que tem feito com que a humidade da vegetação tenha vindo a baixar. Quanto menor a humidade, mais fácil é que a vegetação entre em combustão e suporte a propagação do fogo”, diz ao Observador Domingos Xavier Viegas, diretor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, da Associação para o Desenvolvimento da Aerodinâmica Industrial (CEIF-ADAI, Coimbra). “Isso nota-se no dia a dia, quando começam a ocorrer incêndios e estes rapidamente se tornam muito violentos. Há muita libertação de energia, o que dificulta — ou, mesmo, impossibilita — o combate.”

O antigo professor da Universidade de Coimbra destaca, no entanto, que as alterações climáticas não são o único fator a ter influência na propagação do fogo. Outro fator é o abandono das áreas rurais nos últimos 60 ou 70 anos. “Era raro ouvir falar de incêndios que pusessem perigo as casas e as aldeias. Não é que não existissem essas situações, mas não era muito comum”, diz.

Por um lado, houve um abandono das zonas agrícolas, normalmente localizadas em torno das povoações, que serviam de zona tampão, uma barreira à progressão do fogo. Por outro, o abandono da pastorícia e do uso dos matos deixam muito mais combustível disponível para arder nos campos e florestas.

“A conjugação entre o despovoamento rural — que levou a alterações do uso da terra, menos gente a gerir o território e maior continuidade das manchas de florestas e matos —, e o aumento da frequência de secas e ondas de calor, é uma combinação fatal”, reforça ao Observador José Cardoso Pereira, investigador no Centro de Estudos Florestais, do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa (CEF-ULisboa).

Temos cada vez mais incêndios florestais?

É difícil dizer se há agora mais incêndios rurais do que no passado, ou seja, se há mais ignições (chamas que começam a arder num determinado local) do que antes, isto porque antigamente se registavam apenas as “ignições que davam origem a incêndios importantes” e agora “há um registo muito mais completo das ignições”, explica Domingos Xavier Viegas.

Apesar de lamentar o abandono das zonas rurais, onde as pessoas detetavam e acorriam rapidamente a qualquer foco de incêndio, o especialista em incêndios florestais diz que mais de 90% das ignições continuam a ser detetadas pelos cidadãos. Ainda assim, o professor pede mais recursos no território, quer por sistemas de vigilância de incêndios, quer por brigadas de sapadores florestais ou de bombeiros, “que se posicionem no terreno prontos a acudir em caso de incêndio”.

“Uma coisa, que tem sido muito importante em Portugal, é que o ataque inicial ao incêndio se faz com muita rapidez e eficácia.”
Domingos Xavier Viegas, Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais-ADAI

“Uma coisa, que tem sido muito importante em Portugal, é que o ataque inicial ao incêndio se faz com muita rapidez e eficácia”, defende Domingos Xavier Viegas. “Particularmente nestes dias de risco elevado, mal se deteta um incêndio são despachadas pelo menos três viaturas, três equipas de bombeiros e uma equipa helitransportada. Isso tem permitido que o ataque inicial se faça dentro da primeira hora.”

Domingos Xavier Viegas acrescenta que este ataque inicial rápido tem sido eficaz a conter cerca de 90% das ignições. Apenas 10 a 12% das ignições detetadas se tornam verdadeiros incêndios — aqueles que consomem mais de um hectare de floresta (mais ou menos o tamanho de um estádio de futebol) — e, destes, “só uma pequena percentagem — talvez 2 ou 3% — se tornam grandes incêndios, aqueles que causam grandes problemas”.

“Felizmente, nos anos recentes temos tido uma redução drástica no número de ignições. Sabemos que, se o número de ignições for muito elevado, é mais difícil que o sistema possa responder com eficácia e haverá maior probabilidade de que essas ignições se venham a tornar grandes incêndios.”

O que são os incêndios de sexta geração?

Nem todos os incêndios são iguais: muitos não chegam a alcançar um hectare, mas outros chegam rapidamente (e ultrapassam) os 10.000 hectares — o incêndio de Odemira tinha, na manhã desta terça-feira, consumido mais de 7.000 hectares. A intensidade, combustível disponível, energia libertada e velocidade de propagação do incêndio variam e podem ajudar a classificar os incêndios consoante as suas características.

Da primeira à sexta geração do fogo, a classificação criada no início da década de 2010 por especialistas catalães, pretende refletir as mudanças no comportamento do fogo como resultado do êxodo rural que acontece de forma generalizada na Europa mediterrânica. De acordo com esta classificação, quanto mais anos de acumulação de material combustível existam, mais intenso será o incêndio e, como tal, têm de se mudar as estratégias de prevenção e combate.

José Cardoso Pereira não sabe se esta classificação tem, efetivamente, alguma utilidade prática — talvez não —, mas serve para “explicar às pessoas que a natureza dos fogos se está a alterar, qualitativamente também, não é só serem mais ou menos, maiores ou mais pequenos, mas que estão a adquirir uma intensidade e uns comportamentos e a responder a uns padrões de extremos climáticos que os tornam altamente imparáveis”.

Domingos Xavier Viegas também não dá muita importância a esta classificação, mas admite que serve para destacar que os incêndios com maiores dimensões e mais área ardida são cada vez mais frequentes, sobretudo desde o ano 2000. “Estamos a registar incêndios superiores a 10 mil hectares com cada vez mais frequência. E nos anos particularmente graves, como foi o ano de 2017, chegámos a ter incêndios com mais de 50 mil hectares.”

Mais. A velocidade de propagação dos incêndios de sexta geração é também extremamente elevada, podendo chegar ou superar os 100 mil quilowatts de energia por cada metro (kW/m), diz Vítor Reis ao Observador. “O que pode corresponder a comprimentos de chama iguais ou superiores a 100 metros.” O presidente da Escola Nacional de Bombeiros exemplifica: “O incêndio de Pedrógão Grande situou-se entre os 60.000 e os 80.000 kW/m e o da Sertã, em 2017, entre os 100.000 e os 150.000 kW/m”. E acrescenta: “Falamos de incêndios fora da capacidade de supressão com os métodos tradicionais”.

“Os incêndios de sexta geração são intensos, rápidos, dominados pelos combustíveis disponíveis, pelo stress hídrico gerado pelas mudanças climáticas e que, pela quantidade de energia liberada, modificam a meteorologia à sua volta, favorecendo o desenvolvimento de tempestades de fogo.”
Vitor Reis, Escola Nacional de Bombeiros

A probabilidade de incêndios catastróficos é cada vez maior, tanto em Portugal como no sul da Europa. Não importa que sejam de sexta geração (ou de uma categoria ainda mais grave que venha a surgir), o que “devíamos estar atentos é que podemos vir a enfrentar incêndios ainda maiores do que vimos no passado”, alerta Domingos Xavier Viegas. “Não sei de que dimensão”, admite, mas “devemos garantir que as autoridades e os cidadãos estão preparados”.

“Incêndios de sétima geração? Nem imagino bem o que possa ser”, diz José Cardoso Pereira. “Já estamos suficientemente atrapalhados com a sexta [geração], não precisamos da sétima para nada, o que não quer dizer que ela não nos venha cair ao colo.”

Os incêndios criam uma meteorologia própria?

Quantas vezes ouvimos dizer que o vento mudou de direção e apanhou os operacionais de combate ao incêndio desprevenidos? Estes ventos que mudam subitamente não serão aqueles gerados na atmosfera, cuja mudança é relativamente previsível pelos serviços de meteorologia, diz Domingos Xavier Viegas. O que é mais difícil de prever são as mudanças no comportamento do fogo, sejam as mudanças de direção ou o aumento da velocidade de propagação.

A forma como o incêndio interage com a atmosfera e cria os seus próprios ventos, alterando o comportamento do fogo, é por isso um dos alvos de estudo da equipa do CEIF-ADAI. Esta equipa já identificou situações em que o fogo pode mudar radicalmente, como as que dependem da configuração do terreno: quando os fogos chegam aos desfiladeiros tendem a aumentar a velocidade a que avançam. Outra das situações é quando duas frentes de incêndio, que correm paralelamente, se encontram — como aconteceu em Pedrógão Grande — e tornam a propagação muito rápida.

Incêndio em Pedrógão Grande, há um ano, matou 66 pessoas, feriu 253 e atingiu 261 habitações

Os incêndios mais intensos, com muito calor libertado, podem desencadear processos convectivos (correntes de ar para cima) e dar origem a tornados e turbilhões de fogo, refere Domingos Xavier Viegas. “São fenómenos muito pouco frequentes, mas quando acontecem podem ter efeitos muito destrutivos, daí que seja importante reconhecê-los e antecipar a sua formação”, diz. “A nossa preocupação tem sido melhorar esse conhecimento para transmitir às autoridades.”

Esta subida de massas de ar quente e fumos pode desencadear outro fenómeno: a formação de nuvens (cúmulos) que sobem em grande altitude. Ora, uma massa de ar quente que sobe, tende a arrefecer, a condensar e, frequentemente, dá origem a descargas elétricas, explicou Joaquim Sande Silva, investigador na Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Coimbra, na “História do Dia” desta terça-feira da rádio Observador. Estas trovoadas secas podem até desencadear novos focos de incêndio quando a descarga atinge a superfície do solo e a vegetação está seca.

Mais preocupante, na opinião de Joaquim Sande Silva é, no entanto, o colapso da coluna de convecção (que leva as massas de ar quente para cima), quando as nuvens arrefecem e se tornam mais densas e pesadas. “Há circunstâncias em que esse ar pode descer abruptamente a partir de grande altitude e chocar com a superfície da terra, dando origem a ventos horizontais extremamente violentos”, explica Joaquim Sande Silva. Foi este fenómeno, chamado de “downburst”, que esteve na origem da maior parte das mortes no incêndio de Pedrógão Grande, em 2017.

A formação de pirocumulos como resultado das massas de ar quente do incêndio

As massas de fumo quente sobrem (1), arrefecem (2), formam nuvens em altitude (3), que podem provocar tempestades (4) e relâmpagos (6) ou, pior, colapsar num fenómeno de "downburst" (5)

Bureau of Meteorology/Australian Government

Limpar os matos continua a ser fundamental?

Não importa se os incêndios são pequenos ou grandes, uma das medidas mais importantes antes da sua ocorrência é a diminuição da quantidade de materiais que podem arder. Ou como diria a dirigente espanhola, Ángela Iglesias, a solução é matar o fogo à fome, tirando tudo o que é vegetação e deixando apenas o solo nu.

Em Espanha, a proposta de alguns especialistas é que, em cada ano, se consiga diminuir a quantidade de materiais combustíveis em 1% do território. Para Domingos Xavier Viegas, reduzir a carga de combustíveis pelo fogo controlado ou limpeza da floresta em 1% do território é pouco, mas nem isso estamos a fazer — exceto o que é feito pelo próprio fogo. “Em Portugal, arde em cada ano 2 a 3% do território rural. Naturalmente que essa é uma forma de tratamento, mas é uma forma de tratamento que não desejamos. Seria preferível que houvesse uma gestão da vegetação com meios que fossem menos prejudiciais para o ambiente, que não causassem a destruição e os danos que os incêndios podem trazer”, refere o diretor do CEIF-ADAI.

Num relatório que apresentou à Agência para Gestão Integrada de Fogos Rurais no âmbito do incêndio na Serra da Estrela em 2022, José Cardoso Pereira verificou que só metade da rede primária (faixas sem vegetação com, pelo menos, 125 metros de largura) do Parque Natural da Serra da Estrela tinha sido feita até ao início do verão passado e que “ninguém controla muito bem o que está feito ou se está limpo” e que só um terço dos fogos controlados planeados tinham sido executados. O investigador mostrou-se surpreendido, mas as autoridades competentes disseram-lhe que estes valores eram superiores à média nacional.

Incêndio da Serra da Estrela é o mais extenso desde Pedrógão Grande

Criar faixas de descontinuidade, onde a floresta é interrompida por caminhos que servem de travão ao incêndio ou de acesso aos veículos de emergência, é uma das medidas a ser posta em prática, ainda que, admite Domingos Xavier Viegas, no caso de incêndios muito violentos, possam não ser muito eficazes. “Não quer dizer que não devam ser implementadas, porque, se houver uma descontinuidade na vegetação, é mais fácil para os bombeiros criarem uma faixa com máquinas de rasto para travarem o incêndio. Agora, se não houver medidas nenhumas, claro que elas não são eficazes.”

É também com o objetivo de se criar estas barreiras, que o investigador defende a aplicação da lei que prevê a limpeza de matos junto às casas e às estradas, neste caso, para criar uma descontinuidade entre a floresta e a vegetação e os bens das pessoas. “Se houver pouca carga de combustível em volta das habitações é muito mais provável que as casas sobrevivam e não tenham danos causados pelo fogo se ele lá chegar”, reforça Domingos Xavier Viegas.

“Dá-me a impressão de que em alguns territórios, de algumas regiões, já não se está a fazer limpeza que se devia. Isso é visível nos incêndios que estamos a ter nestes dias, ou que tivemos no ano passado, em que as pessoas tinham de estar à última hora a procurar defender as suas casas e os seus bens, principalmente porque não tinham feito este trabalho com antecedência”, destaca Domingos Xavier Viegas.

A água é importante no combate aos incêndios?

Ángela Iglesias, chefe do Serviço de Defesa contra Incêndios do Ministério espanhol de Transição Ecológica, ao falar de incêndios de sexta geração diz, citada pelo El Mundo, que “nem que lhe deitássemos em cima toda a água que pudéssemos — e temos aviões com seis toneladas de capacidade —, conseguimos sequer fazer-lhe algo, porque 90% dessa água se evapora quando toca no fogo”.

O diretor do CEIF-ADAI, no entanto, diz que “não é bem assim”. A água continua a ser eficiente e necessária para reduzir a intensidade dos incêndios, mesmo quando é lançada por meios aéreos. “Agora, não podemos iludir-nos, as descargas por meios aéreos, só por si, não são eficazes. Precisamos de meios no terreno para consolidar o efeito dessas descargas.”

Domingos Xavier Viegas lembra que uma vez que a água seque, a combustão continua, o incêndio é retardado, mas não eliminado. “Daí que também advoguemos pelo emprego de produtos químicos retardadores, que aumentam o efeito da água e mantém o efeito da supressão durante mais tempo, podendo até evitar reacendimentos.”

José Cardoso Pereira, por outro lado, diz que o combate aos incêndios está muito dependente da água e que falta uma maior intervenção de “sapadores, de bate-fogo, de enxada e machado”. O investigador admite: “É possível em algumas circunstâncias e noutras não, mas ainda assim é muito pouco utilizado”. O especialista em gestão de combustíveis florestais diz que “não se gasta muito tempo, nem muito esforço, a tentar parar os incêndios” e que se perdem janelas de oportunidade, quando o fogo diminui de intensidade, de o fazer.

“Eu percebo que a primeira prioridade é proteger as casas e as pessoas e as povoações, mas a certa altura, quando isso é levado a este extremo, pode tornar-se contraproducente, porque podem perder-se oportunidades de conter a propagação do fogo, conter certas frentes de chama, e impedir que elas avancem e ponham em risco outras povoações a jusante, na direção do vento.”
José Cardoso Pereira, Centro de Estudos Florestais do Instituto Superior de Agronomia

Para ilustrar, o combate mais baseado nas mangueiras do que nas enxadas, José Cardoso Pereira usa a análise que fez aos incêndios da Serra da Estrela em 2022. Com base nos dados do SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal) dos rádios dos bombeiros que estavam a combater o fogo, foi possível perceber que a maioria esteve localizado na faixa de 50 metros das casas e estradas. “Se a prática é usar água, precisa de um autotanque; se precisa de um autotanque, precisa de uma estrada; e depois consegue descolar do autotanque, quanto muito, o comprimento da mangueira.”

“Eu percebo que a primeira prioridade é proteger as casas e as pessoas e as povoações, mas a certa altura, quando isso é levado a este extremo, pode tornar-se contraproducente, porque podem perder-se oportunidades de conter a propagação do fogo, conter certas frentes de chama, e impedir que elas avancem e ponham em risco outras povoações a jusante, na direção do vento”, diz o investigador do CEF-ULisboa, destacando que durante a noite e em dois dias com condições mais favoráveis se podiam ter apostado mais em travar o fogo, em tirar vegetação do seu caminho para lhe diminuir a intensidade.

José Cardoso Pereira acaba por admitir que estas medidas muito defensivas se justificam porque “os fogos adquirem tais características que se desiste de os combater e se vai evacuar as povoações, tirar as pessoas do caminho”. E acrescenta: “Em certa medida temos de compreender: deixou-se o território chegar a um ponto tal, que nas situações meteorológicas mais extremas, se calhar não há muito mais que se possa fazer”.

A antecipação do comportamento do fogo é fundamental para se implementarem outras medidas de combate ao incêndio que tenham como objetivo travá-lo. Sabendo o que o fogo fará e quando, permite-se recolocar as equipas no terreno a uma distância segura e que permita abrir aceiros com máquinas de rasto, criando descontinuidades (cortar o mato no caminho do fogo), ou usar fogo tático — um fogo provocado de forma a colidir com a frente do incêndio para o anular. “Evidentemente, são situações que envolvem muitos riscos e podem nem sempre funcionar [como se espera]. Daí que todas as decisões tomadas sobre esse tipo de meios tenham de ser muito ponderadas. Como tal, exigem tempo, durante o qual pode acontecer perda de território que é queimado”, refere Domingos Xavier Viegas.

Vitor Reis concorda: “É fundamental a existência de planeamento e antecipação, tendo por base a análise ao incêndio do ponto de vista estratégico e tático, procurando janelas de oportunidade para aplicação dos métodos de extinção ao incêndio que possam ter eficácia, inclusive métodos de ataque indireto, à distância”. O presidente da Escola Nacional de Bombeiros destaca a importância de “combinar um conhecimento aprofundado sobre o comportamento do fogo com conhecimento especializado em meteorologia”. Só assim que podem identificar “com algumas horas de antecedência” as janelas de oportunidade para recolocar os meios no terreno.

Afinal, o que é que ainda falta?

“Não há ideias revolucionárias que não tenham sido já trazidas à cena e começadas a ser postas em prática”, afirma José Cardoso Pereira. O problema, refere o investigador, é que o ritmo a que são implementadas é muito lento, com muitos entraves causados pela cultura das instituições e pelas burocracias.

“Quando surge uma ideia, vai para o parlamento, decreta-se e fica ali congelada, de pedra e cal, completamente imune a qualquer experimentação e, muitas vezes, sequer a qualquer monitorização”
José Cardoso Pereira, Centro de Estudos Florestais do Instituto Superior de Agronomia

Depois de 2017, com a criação de uma estrutura para a gestão integrada do fogo, coordenada pela AGIF, o investigador esperava outros resultados. “A integração é ter objetivos comuns nas vertentes de prevenção, vigilância e detenção, e de combate. “Se a coisa não flui, dá documentos muito bonitos, mas pouca prática ou uma prática muito lenta”, diz. E justifica: “São complicadas e pesadas as burocracias individuais de cada uma das instituições” que integram a agência: Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) e Unidade de Emergência de Proteção e Socorro da GNR.

Um guia para perceber a lei da limpeza dos terrenos. Excesso de zelo, ou seguro contra incêndios?

Outra limitação, é a falta de hábito de se experimentar, ver se uma medida resulta ou não com um projeto-piloto, por exemplo. “Quando surge uma ideia, vai para o parlamento, decreta-se e fica ali congelada, de pedra e cal, completamente imune a qualquer experimentação e, muitas vezes, sequer a qualquer monitorização”, critica o investigador do CEF-ULisboa. “Faz muita falta, sobretudo porque estamos confrontados com situações novas. Geração nenhuma se deparou com esta conjugação de padrão de despovoamento, de ocupação da terra e de clima.”

Para lidar com situações extremas, não chega usar as soluções de sempre: estradas e caminhos, pontos de água e aviões, diz o investigador. Não chega pensar só na gestão silvícola e na limpeza dos matos, são precisas alterações profundas ao uso da terra, defende. “Há situações em que estes fogos só se param com uso da terra substancialmente diferente, com mais área de agricultura e mais área de pastorícia. O que é uma coisa extremamente exigente com os padrões de despovoamento que temos no interior”, afirma José Cardoso Pereira. Para o conseguir seria preciso uma “reformulação das políticas públicas numa escala que não temos feito até agora”.

“É um bocado cegueira continuarmos a comportar-nos como se não tivessem havido alterações absolutamente drásticas nas circunstâncias e achar que isto vai lá com soluções demasiado incrementais e de escala demasiado pequena”, diz José Cardoso Pereira. “Continuamos a reagir como se tivéssemos todo o tempo do mundo.”

O investigador do CEF-ULisboa deixa até uma proposta arrojada: deixar que a natureza volte a invadir aldeias que estão despovoadas. “Há sítios do território em que já se chegou a um ponto de despovoamento e de depressão económica que é de, pelo menos, considerar a renaturalização”, como se está a fazer no Vale do Coa.

Mas não para ter pessoas a viver nesses locais. Isso é uma das críticas que faz aos municípios que permitem a construção fora da malha urbana consolidada, em áreas completamente rodeadas de árvores. “É um desastre à espera de acontecer”, diz. Para quem já lá vive, não há nada a fazer se não proteger as pessoas, mas é preciso impedir novas construções no meio de grandes manchas florestais, defende.

Vamos ter de aprender a viver com o fogo?

Durante o combate aos incêndios, é raro não se ouvirem críticas às ação dos bombeiros e de outros operacionais no terreno, mas não podem restar dúvidas que o combate aos fogos florestais está melhor do que no passado. Tão melhor que normalmente não se deixa arder aquilo que estaria destinado a arder, ou seja, a vegetação que de tão seca deveria ser queimada. Celebra-se a extinção do incêndio, mas o combustível continua lá à espera de uma nova ignição para voltar a arder.

“É o chamado paradoxo do fogo”, diz Domingos Xavier Viegas. “Quanto mais se combate o fogo, mais problemas se estão a criar.” Ou seja, o combate é tão eficaz que não se diminui o suficiente a carga de combustíveis, a medida essencial para prevenir a ocorrência de fogos muito grandes. “Este tem sido um dos grandes males da nossa sociedade ocidental: temos procurado eliminar o fogo da floresta e da natureza.”

José Cardoso Pereira concorda: “Já não se põe a questão de os suprimir, mas como é que convivemos com eles e fazemos com que eles tenham o mínimo de danos possíveis”. Não os grandes incêndios, diz, mas controlar a ocorrência dos fogos mais violentos de forma a ser possível conviver com fogos menos intensos.

Em Portugal, tradicionalmente, os pastores e agricultores faziam queimadas, que reduziam a quantidade de matos que poderiam arder num incêndio e que melhoravam as condições para desenvolverem as suas atividades. Os pastores e agricultores podem continuar a fazê-lo de uma forma controlada com o auxílio das autoridades competentes, diminuindo o risco de inadvertidamente causarem um incêndio ou de provocarem a própria morte. “Oxalá fosse mais usado”, diz o investigador de Coimbra. “É necessário manter o fogo na natureza.”

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